CAPÍTULO SETE

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NO JARDIM DE CRISTAL

Raisa apressou-se pelo corredor, e os sapatos de dança sussurravam no piso de mármore. Ela
pretendia retornar aos aposentos e trocar de roupa, mas não sabia bem o que vestir. A calça e a
túnica dos clãs estavam totalmente imundas. Ela não tinha outras roupas casuais e, de qualquer
forma, o novo e solene Amon em seu uniforme de gala parecia pedir algo mais formal. Mas e se
ele tivesse trocado a calça e a camisa? Ela se sentiria tola por estar de vestido.
Espere aí. Ela era a princesa-herdeira, que vinha de um baile. Por que deveria se sentir tola?
Qual era o problema com ela?
Magret estava esperando e segurava uma xícara de chá com as duas mãos. Seus cabelos
grisalhos estavam em tranças.
- Você voltou mais cedo do que o esperado, Alteza - disse ela, levantou-se e fez uma
mesura. - Pensei que ficaria até mais tarde.
- E ficarei. Vou ver Amon agora - disse Raisa, sentando-se diante do espelho e retirando o
diadema. Ela decidira ficar com o vestido, mas soltar os cabelos. Depois, ela...
- Agora? - Magret fitou-a. - A esta hora?
Raisa piscou para ela.
- Ora. Sim. - E quando Magret continuou a franzir a testa, emendou: - Qual é o
problema?
- Você não pode se encontrar com um rapaz sozinha e no meio da noite!
O que foi que Magret não compreendeu?
- É o Amon. Nós sempre passávamos a noite ao ar livre. Lembra quando a cozinheira nos
encontrou debaixo da mesa do padeiro ao nascer do sol? Nós queríamos estar lá quando os
pãezinhos de canela saíssem do forno. - Raisa passou uma escova pelos cabelos embaraçados e
pensou que agora Amon não caberia debaixo da mesa do padeiro. Não com aquelas pernas
compridas.
- Você não vai sair desacompanhada a esta hora - falou Magret, com teimosia.
- Eu confirmei que vou - disse Raisa e arrumou os cabelos numa trança frouxa. - De
qualquer forma, ninguém vai saber.
- Se você for, vou falar com Lady Francia, que vai interromper a rainha - disse Magret e
projetou o queixo para a frente com ar de triunfo.
- Você não faria isso - disse Raisa, que agora se lamentava por não ter ido direto para o
encontro.
- Eu faria, Alteza. Você fará 16 anos em junho e poderá se casar. Se algo lhe acontecer, será
culpa minha. Quero dizer, afinal, ele é um soldado.
- Sangue. De. Hanalea. Não vou me casar com ninguém, Magret. Não por um bom
tempo. - Vou ter uma centena de amantes antes disso, só para provocar, era o que ela queria dizer.
Além disso, é mais provável que eu me meta em encrenca no salão de jogos com Micah, ou
debaixo do nariz da minha mãe no salão de banquetes, do que com Amon, pensou Raisa.
Elas olharam com expressão severa uma para a outra por alguns momentos, num impasse.
- Ótimo - disse Raisa. - Então, venha comigo.
Magret baixou os olhos para o robe. Obviamente, ela pensara que sua noite já estava
encerrada.
- Alteza, eu não acho...
Raisa assumiu a expressão imperiosa de princesa.
- Se você insiste em vir, poderia muito bem preparar uma bandeja para Amon. Ele ficou de
guarda na porta durante todo o jantar, portanto, não comeu.
Quinze minutos e muitos resmungos depois, elas saíram dos aposentos, Raisa na frente e
Magret atrás, irradiando desaprovação e trazendo uma grande bandeja de prata.
Elas subiram alguns degraus, que ficavam mais estreitos e íngremes à medida que subiam.
- Vocês vão se encontrar no telhado, então? - ofegou Magret, dois degraus atrás de Raisa.
- Vamos nos encontrar no jardim de cristal - disse Raisa e parou no topo do último degrau
para deixar que Magret se recuperasse. Teria sido muito mais fácil subir pela escada secreta, mas
esse era um segredo que ela não pretendia compartilhar com a aia.
Ela também não o compartilhara com Micah. Depois que fosse revelado, não poderia ser
ocultado novamente, caso o rapaz se tornasse incômodo ou inconveniente.
O jardim de cristal devia ter sido um local para exposições no passado, projetado por alguém
que amava jardins. Elas passaram por portas altas de bronze, decoradas com vinhas, flores e
animais engenhosos e insetos entalhados no metal. O ar em seu interior era úmido, com aroma
de terra e flores, além do cheiro de coisas brotando. O soalho de ardósia escura captava a luz do
sol durante todo o dia e devolvia o calor durante a noite. A água quente das fontes termais
circulava através de canos, controlados por uma série de válvulas para que as temperaturas
pudessem se ajustar e atender às necessidades de plantas tropicais, desérticas e temperadas.
A rainha Marianna tinha pouco uso para os jardins e preferia que suas flores fossem arranjadas
em vasos, mas Raisa compartilhava com o pai a paixão por cultivar a terra. Nas raras ocasiões em
que ele ficou no Castelo de Fellsmarch, passaram horas em silêncio na companhia um do outro,
podando raízes e desbastando as mudas.
Nos últimos três anos, os dois estiveram ausentes, e o jardim cresceu demais e foi
negligenciado, e as plantas mais agressivas expulsaram os tipos mais frágeis e delicados. Havia
painéis quebrados aqui e ali, cobertos com lã ou rudemente remendados com pedaços que se
ajustavam mal. Algumas áreas do jardim eram frias demais para qualquer planta que não fosse
nativa.
Raisa conduziu Magret até a entrada do labirinto. Amon estaria esperando em uma das
passagens laterais, em um pavilhão próximo à fonte.
Acho que vamos ter que procurar um novo lugar para nos encontrarmos, pensou a garota,
agora que Magret sabe sobre este aqui.
Embora ela talvez não fosse capaz de encontrar a trilha de volta.
Confiante, Raisa abriu caminho através dos túneis cheios de folhas, com Magret em seus
calcanhares, como se a mulher temesse que a garota pudesse correr e deixá-la presa ali. As paredes
do buxeiro tinham praticamente crescido juntas em alguns lugares, e mais de uma vez elas
tiveram que forçar os emaranhados de galhos.
- Você vai estragar o vestido na primeira noite - reclamou Magret, que lambeu o dedo e
esfregou-o numa marca na saia de cetim de Raisa.
Raisa ouviu Amon antes de vê-lo. Ele andava de um lado para o outro e resmungava para si
mesmo. No início, ela pensou que o rapaz estivesse reclamando do seu atraso, mas parecia que
estava treinando algum tipo de discurso.
- Alteza, posso dizer que estou honrado por você... ah... estou satisfeito por ser lembrado...
aaaah. - Ele balançou a cabeça com desgosto e limpou a garganta. - Alteza, fiquei espantado...
não... surpreso quando falou comigo, e espero que possa considerar nossa amizade... Pelos ossos
de Hanalea! - exclamou ele e deu um tapa na própria testa. - Que idiota.
Raisa ergueu a mão, indicou que Magret deveria ficar onde estava e deu um passo à frente.
- Amon?
Ele deu um pulo e girou, com a mão automaticamente indo até o cabo da espada. Tentou
mudar para um gesto elegante, estendendo a mão na direção dela e fez uma mesura.
- Alteza - coaxou, empertigou-se e a fitou. - Você... hum... parece bem.
- Alteza? - Ela deu um passo na direção dele, o cetim farfalhando, e o queixo erguido
imperiosamente. - Alteza?
- Ora - disse ele e corou furiosamente. - Eu... ah...
Ela segurou as mãos dele e ergueu o olhar bem alto, fitando o queixo quadrado dos Byrne, o
nariz reto e mergulhando nos olhos cinzentos.
- Pelos ossos, Amon, sou eu. Raisa. Alguma vez na sua vida você já me chamou de "Alteza"?
Ele refletiu.
- Pelo que me lembro, várias vezes você me obrigou a lhe chamar assim - falou secamente.
O rosto dela ficou quente.
- Eu nunca fiz isso!
Ele ergueu a sobrancelha, uma expressão da qual ela se lembrava muito bem. Muito irritante.
- Certo - admitiu ela -, está bem. Talvez algumas vezes.
Ele deu de ombros.
- Provavelmente é melhor se eu me acostumar a falar assim - disse ele. - Se eu for ficar na
corte.
- Suponho que sim - concordou ela. Eles ficaram parados, com as mãos entrelaçadas de
modo constrangedor por um momento. Subitamente ela ficou muito consciente do contato. Seu
coração parou por um instante.
- Então - disse ele. - Você parece... bem - repetiu. Era como se ele não conseguisse
decidir para onde deveria olhar, o que lhe dava uma aparência um tanto esquiva.
- E você parece... alto - retrucou ela, afastando bruscamente as mãos. - Você está com
fome? Magret trouxe o jantar.
Ele hesitou e olhou em volta, finalmente encontrando Magret emburrada perto de uma
árvore de jade. Ergueu a sobrancelha novamente.
- Você trouxe Magret? Para cá?
Raisa deu de ombros.
- Ela não me deixou vir sozinha. Agora é mais difícil - explicou Raisa.
- Oh! - ele hesitou. - Bem, eu estou com fome - admitiu ele.
Raisa fez um gesto para Magret, que pôs a bandeja numa pequena mesa de ferro fundido à
beira d'água, acendeu as tochas, e então se retirou para um banco próximo o suficiente para que
ainda pudesse ouvir a conversa.
- Por favor - pediu Raisa a Amon. - Sente-se.
Ela se ajeitou em uma cadeira e decidiu mordiscar um pequeno cacho de uvas, embora ainda
estivesse empanturrada por causa do jantar. Ficou feliz pela distração da comida, feliz por terem
algo no que se concentrar, além de um no outro.
Com cuidado, Amon retirou a túnica do uniforme e pendurou-a nas costas da cadeira. Por
baixo da túnica, ele vestia uma camisa de linho branca como neve. Ele enrolou as mangas acima
dos cotovelos e exibiu os braços bronzeados e musculosos.
- Desculpe - disse ele e finalmente se sentou. - Estou acostumado a lavar minha roupa,
na Academia Wien, por isso eu tento manter os punhos fora da minha sopa.
Entusiasmado, Amon comeu o pão, o queijo e as frutas que Magret trouxera, e fez tudo
descer com a sidra. Uma vez ergueu o olhar e flagrou Raisa olhando para ele.
- Me desculpe - falou ele, limpando rapidamente a boca com um guardanapo. - Eu
cavalguei muito hoje. Estou faminto e me acostumei a comer na caserna. É tipo um salve-se
quem puder.
Para Raisa, era um alívio conversar com alguém que não tentava adulá-la. Que dizia o que
pensava. Que não era tão delicado que ela se sentia desajeitada e pouco hábil com as palavras.
- Então - disse ela -, você servirá na Guarda este verão?
Ele acenou com a cabeça, mastigou e engoliu.
- E todo verão a partir de agora.
- Você vai ter muito trabalho?
- Sim, meu pai vai fazer questão de garantir que a rainha seja compensada pelo que pagou.
- Ele revirou os olhos. - Talvez eu consiga ver você, se for designado à sua guarda pessoal. Mas
é improvável que aconteça no meu primeiro ano na Guarda.
- Ah - murmurou Raisa, decepcionada. Ela se sentia solitária desde o retorno a Fellsmarch,
vinda de Demonai. Havia Micah, sem dúvida, mas estar com ele não era exatamente relaxante,
nem mesmo com uma acompanhante.
Ela desejara passar um verão com o Amon do qual ela lembrava. Não lhe ocorrera que ele
estaria tão diferente. Ou que não teria tempo livre.
- Eu tinha esperança de que pudéssemos cavalgar novamente até as Quedas do Grota de
Fogo. Ouvi dizer que há um novo gêiser que jorra 15 metros no ar.
- Sério? - Amon inclinou a cabeça. - Você não foi lá ver?
- Eu estava esperando você. Lembra da época em que íamos nadar nas Fontes do Demônio?
- Eles pescavam trutas no Grota de Fogo e preparavam o que pegavam em uma das fissuras de
vapor que causavam rupturas na paisagem.
- Ah. - Ele pareceu pouco à vontade. - A rainha pode não gostar mais da ideia de nós
cavalgarmos sozinhos por aí.
- Por que não?
- Por várias razões. - Ele fez uma pausa e, quando ela não respondeu, emendou: - Uma
delas é que agora está mais perigoso do que antes.
Raisa contorceu-se, impaciente.
- Todos dizem isso.
- Porque é a verdade.
- E por que mais? - insistiu Raisa.
- Eu sou um soldado e já sou maior de idade. Você só será adulta no meio do verão. É
diferente. As pessoas vão falar.
Raisa fez um som irritado.
- As pessoas vão falar de qualquer forma. - Mas ela sabia que Amon tinha razão. Após um
silêncio incômodo, mudou de assunto. - Conte-me sobre Vau de Oden.
- Bem. - Amon hesitou, como se quisesse ter certeza de que ela tinha falado sério. - A
academia é dividida pelo rio Tamron: Academia Wien, o colégio de guerreiros, fica de um lado, e
a Academia Mystwerk, o colégio de feiticeiros, do outro. Eles devem ter achado que era melhor
manter as duas separadas, no início. Essas foram as duas primeiras, mas atualmente há outras
escolas também.
"Há cinquenta cadetes na Academia Wien todo ano. Eles vêm de toda parte, de Tamron, de
Fells, de Arden e outras regiões, mas eles não podem levar essas diferenças para o campo de
treinamento. Há uma coisa chamada a Paz de Vau de Oden que é imposta com muito rigor. Vau
de Oden é um pequeno domínio independente. Fica na fronteira entre Tamron e Arden, mas
não pertence a nenhum deles."
- E onde vocês ficam? - perguntou Raisa, dando um chute no ar para tirar os sapatos e
recolhendo os pés para baixo do vestido enquanto Magret olhava com expressão de
desaprovação.
- Cada classe fica junta até nos tornarmos proficientes - disse Amon. - Depois, podemos
escolher nosso próprio alojamento.
- O número de meninas e meninos é bem equilibrado na Academia Wien? - perguntou
Raisa, casualmente.
Ele balançou a cabeça.
- Nós de Fells mandamos meninas para lá, mas no sul as coisas são diferentes. Eles têm
ideias estranhas sobre o que as garotas podem fazer. Alguns dizem que é influência da Igreja de
Malthus.
- Ah. - Raisa assentiu seriamente, fingindo compreender. Amon parecia tão informado,
tão eloquente perto dela, e ela era a princesa-herdeira do reino! Não deveria saber dessas coisas? A
mãe dela, a rainha, sabia sobre elas? Talvez não. Marianna também nunca viajava para fora do
reino.
Raisa foi dominada pelo súbito desejo de ir a algum lugar, de sair de Fells.
- Então são cerca de três quartos de meninos e um quarto de meninas - continuou Amon.
- As garotas são bem capazes. Ser um soldado não tem a ver apenas com a força bruta, como
descobriram alguns dos sulistas. - Ele deu uma risada.
- O que vocês fazem então? - perguntou ela. - Vocês têm aulas teóricas ou... ou
treinamento, ou o quê? - Certo, pensou ela, olhando-o com o canto do olho. Aulas teóricas
não iam botar esses músculos nos braços e no peito dele.
- Um pouco de teoria, um pouco de prática - disse Amon e pareceu feliz com o interesse
dela. - Nós aprendemos estratégia, geografia, a cavalgar, sobre armamento, esse tipo de coisa.
Estudamos as grandes batalhas da história e analisamos o resultado. Quanto mais adiantado você
está, mais prática é a aplicação.
- Eu gostaria de poder ir - resmungou Raisa.
- Você? - Amon parecia surpreso. - Bem, seria muito perigoso, acho. Atualmente, ir e
voltar da escola é um desafio.
- Por quê? - Raisa tocou o colar de rosa agreste. Talvez seu desejo de ver terras estrangeiras
viesse do pai comerciante.
- Você sabe que há uma guerra civil em Arden: cinco irmãos disputam o trono, cada um
com um exército. Portanto, se você está em idade de servir no sul, mesmo que só esteja passando,
corre o risco de ser engajado à força no exército de alguém. E a idade de servir tem limites
amplos; dos 10 aos 80 anos ou por aí.
Ele se afastou da mesa, esticou as pernas, massageando os músculos das coxas, como se
estivessem doloridos.
- Além disso, você nunca sabe quando vai cruzar linhas inimigas ou parar no meio de uma
batalha. Os desertores e bandos de mercenários desempregados estão por toda parte. Atualmente,
as pessoas nem tentam te identificar antes de atacar.
- Meu pai está em Arden - disse Raisa e estremeceu. - Você sabia?
Ele assentiu.
- Meu pai me contou. - Amon fez uma pausa e parecia desejar retirar o que disse. - Ele é
Demonai e já foi guerreiro. Tenho certeza de que ficará bem. Quando ele vai voltar para casa?
Ela balançou a cabeça.
- Não faço ideia. Gostaria que ele voltasse logo. É que eu me sinto... preocupada, sabe?
Como se alguma coisa fosse acontecer. - Raisa pensou no que Edon Byrne lhe contara, sobre a
anarquia no interior e a necessidade de guardas para uma simples caçada. O que mais estava
acontecendo que ela não sabia?
- O que você acha que deveríamos fazer diferente? - perguntou ela. - Quanto às guerras,
quero dizer.
Ele corou.
- Não cabe a mim...
- Não ligo se cabe a você ou não! - Ela se inclinou sobre a mesa na direção dele. - Quero
saber o que você pensa. Apenas entre nós.
Amon a estudou, como se não tivesse certeza se devia ou não acreditar nela.
Quando eu for rainha, pensou Raisa sombriamente, as pessoas não terão medo de dizer o que
pensam.
- Apenas entre nós?
Ela assentiu.
- Bem... - disse ele, e seus olhos cinza estavam fixos nela. - Papai e eu temos conversado.
A guerra civil em Arden não vai durar para sempre. Para falar a verdade, eles ficarão sem
soldados. Um daqueles irmãos Montaigne sanguinários vai acabar saindo vitorioso, e quando isso
acontecer, ele vai precisar de dinheiro. Vai olhar para o norte, para o sul e para o oeste em busca
de novos territórios. Acreditamos que há coisas que poderiam ser feitas agora, que ajudariam a
nos proteger no futuro.
- Tais como? - interrompeu Raisa.
- Livrar-se dos mercenários - falou Amon sem rodeios. - Eles sempre estão à venda e os
Montaigne são traiçoeiros. Precisamos de um exército inquestionavelmente leal, composto por
nativos. Mesmo que seja pequeno. Caso contrário, a rainha poderia ser derrubada pelos próprios
soldados.
- Mas - Raisa mordeu o lábio - onde nós recrutaríamos? Os tempos são difíceis. Quem se
ofereceria?
Ele deu de ombros.
- Os homens de Fells estão vendendo as espadas para Arden - falou ele. - Enquanto isso,
estamos importando problemas do sul. Por que pagar estrangeiros para lutar por nós? Dê às
pessoas uma razão para ficar em casa, no local ao qual pertencem.
- Que razão? - insistiu Raisa.
- Não sei. Algo pelo que lutar, no que acreditar. Uma vida decente. - Ele ergueu as mãos.
- Como se eu fosse um especialista. Sou apenas um cadete, mas é isso que meu pai acha.
- Você sabe... o capitão Byrne discutiu isso com a rainha? - perguntou Raisa.
Amon desviou os olhos dela e desenrolou as mangas com atenção exagerada.
- Ele tentou. Mas a rainha Marianna tem muitos conselheiros, e papai é apenas o capitão da
Guarda. - Raisa tinha a sensação de que ele estava guardando para si quase tanta coisa quanto
tinha falado.
- E quanto ao general Klemath? O que ele acha? - perguntou Raisa. Klemath era pai de
Kip e de Keith, seus insistentes pretendentes.
- Ora - disse Amon e esfregou o nariz -, para começo de conversa, foi ele quem trouxe
os mercenários. Não é provável que apoiasse uma mudança.
- Nós temos os magos - disse Raisa e pensou que esse era o tipo de conversa que ela deveria
ter com a mãe. - Temos lorde Bayar e o restante do conselho. Eles nos protegerão dos
habitantes das terras baixas.
- Sim - Amon assentiu. - Se você puder confiar neles.
- Você se tornou cético no sul - acusou Raisa, esfregando os olhos e percebendo que fora
um longo dia. - Você não confia em ninguém.
- É assim que se sobrevive no sul - disse Amon e olhou para a fonte.
Raisa abafou um bocejo.
- Também é assim que se lida com pretendentes. Você não confia em nenhum deles.
A cabeça de Amon ergueu-se bruscamente.
- Pretendentes? Isso já começou?
- Já? - Raisa deu de ombros. - Tenho quase 16. Minha mãe se casou aos 17.
Amon parecia desanimado.
- Mas você não tem que se casar imediatamente, tem?
Raisa balançou a cabeça.
- Não vou me casar nem tão cedo - declarou ela sem rodeios. - Não por muitos e muitos
anos - emendou, quando Amon não pareceu confiante. - Minha mãe ainda é jovem, e ela vai
governar por muito tempo. - Raisa ficou contente por bancar a especialista dessa vez. Ela estava
ansiosa pela corte, mas casamento era outra coisa.
- Rai. Você vai ter que se casar com um velho? - perguntou Amon com a sinceridade típica
dos Byrne. - Não que eu ache seu pai... bem, ele é muito mais velho que a rainha, é só o que
estou dizendo.
- Depende. Eu poderia me casar com a realeza dos clãs, ou mesmo um rei ou um príncipe
menos importante de Tamron ou Arden. Poderia ser um homem mais velho, acho. Essa é uma
boa razão para adiar o casamento o máximo possível.
Será que minha mãe amou meu pai?, perguntou-se Raisa. Ou será que havia sido meramente
um casamento político? Antes de partir para Demonai, eles se pareciam mais com uma família.
Quanto da atual aversão de Raisa ao casamento tinha a ver com o que ela via entre os pais?
A garota ergueu os olhos e viu Amon a observando. Ele desviou o olhar rapidamente, mas ela
vira solidariedade nos olhos cinzentos.
Ele era tão diferente de Micah. Micah era intoxicante, sempre desafiando tudo em que ela
acreditava. Amon era confortável, como um par de mocassins folgados. E, ainda assim, as
mudanças nele eram intrigantes.
Ela olhou Magret. A ama adormecera profundamente, esticada num dos bancos do jardim,
roncando de boca aberta.
- Ora - disse Amon, acompanhando o olhar dela. - Nós a perdemos. - Ele se levantou.
- E eu vou trabalhar ao nascer do sol. Com sua permissão, vou me retirar.
Ele parecia exausto, pensou Raisa com uma onda de culpa.
- Claro. Mas, primeiro, tenho uma coisa para lhe mostrar - disse ela, ainda sem vontade de
deixá-lo ir embora. Ela ainda queria negociar um novo tipo de acordo. - Há uma passagem
secreta. É um tipo de atalho. Podemos seguir por ali.
Amon hesitou e franziu a testa.
- Aonde isso vai dar?
- Você vai ver - falou Raisa misteriosamente.
Amon inclinou a cabeça na direção de Magret.
- E quanto a ela?
- Deixe-a dormir - insistiu Raisa. - Ela parece bastante confortável.
- Pode ser que ela nunca encontre a saída sozinha - comentou Amon.
- Prometo que venho buscá-la de manhã - afirmou a princesa. Ela pegou uma das tochas e
partiu por entre as muralhas de plantas, sem olhar para trás para ver se Amon a estava seguindo,
mas logo ouviu o estalido das botas dele na trilha de seixos.
Eles deram voltas até alcançarem o centro do labirinto. Ali, um belo templo de ferro fundido
erguia-se, abandonado, em meio a um emaranhado de rosas velhas e jardins perfumados e
descuidados. Madressilvas e glicínias se entrelaçavam nas treliças e cobriam o telhado, pendendo
até o solo e dando à estufa a aparência de uma caverna que continuava a crescer ou de um arco
para os amantes. A própria Raisa teve que baixar a cabeça para entrar.
Folhas e galhos se amontoavam no chão. Em uma das extremidades, erguia-se um altar ao
Criador, no centro de um semicírculo de bancos de pedra, com espaço para não mais que 12
adoradores.
Um vitral colorido na outra extremidade representava Hanalea em batalha, com a espada
desembainhada e os cabelos ao vento. À luz do dia, quando o sol brilhava por ele, o vitral emitia
rios de cor sobre o chão de pedra.
Em meio ao calçamento de pedra havia uma placa de metal gravada com rosas selvagens.
Raisa ajoelhou-se e afastou folhas e gravetos com o antebraço.
- Aqui embaixo - apontou. - Você tem que erguê-la.
Prendendo a tocha no suporte da parede, Amon pegou o anel da placa e puxou, apoiado nos
calcanhares.
As dobradiças guincharam, a placa girou para cima, acompanhada por uma lufada de ar
úmido, com cheiro de mofo.
Amon ergueu o olhar para Raisa.
- Quando foi a última vez em que você esteve aqui embaixo?
Raisa deu de ombros.
- Talvez há dois meses. É difícil porque sempre há pessoas por aqui.
- Melhor eu ir primeiro - disse Amon e olhou cinicamente o vestido dela. - Quem sabe o
que se enfiou aqui desde a sua última visita.
- Tem uma escada na lateral - indicou Raisa, solícita.
Apoiando as mãos nos dois lados da abertura, Amon abaixou-se até que seus pés encontrassem
os primeiros degraus. Ele desceu até que a cabeça e os ombros desaparecessem abaixo do nível do
solo. Parou nesse ponto e esticou a mão. Raisa ofereceu-lhe uma tocha e ele retomou a descida
até alcançar o solo, dois níveis abaixo.
Ele ergueu os olhos, e ela conseguiu ver o rosto dele sob a luz da tocha. Ele parecia distante.
- É um longo caminho para baixo - argumentou o rapaz. - Não acho que seja uma boa
ideia.
- Está tudo bem - disse ela, com mais confiança do que sentia. - Já subi e desci antes.
Só que não com pantufas e um vestido de cetim justo, ela poderia ter acrescentado, mas não o
fez.
- Vamos voltar pelo caminho que viemos - decidiu Amon e pôs o pé no degrau mais
baixo. - Você pode me mostrar a passagem outra hora, quando você... hum... estiver vestida
para isso.
- Quando vamos ter outra chance? - perguntou Raisa com teimosia. - Como eu disse,
sempre tem gente por aí, e você vai trabalhar todos os dias.
Ela sabia que estava sendo irracional, mas estava cansada e sentia-se trapaceada. Encarava a
perspectiva de ter de passar mais um verão sozinha, na prática, quando, na verdade, queria
aventurar-se com Amon.
- Vou subir - avisou Amon e segurou a escada com as duas mãos.
- Vou descer - falou Raisa em voz alta, girando e tateando em busca do primeiro degrau
com o pé esticado.
- Espere um momento, está bem? - Ele desapareceu da vista dela, mas Raisa podia ouvi-lo
se mover mais embaixo e viu a tocha refletida nas paredes úmidas.
Ele voltou a aparecer no pé da escada e ergueu o olhar para ela, com uma grande mancha de
terra na bochecha direita.
- Está livre. Alguns ratos e é tudo. Desça, mas tome cuidado.
Falar era mais fácil do que fazer. Os degraus eram muito distantes e difíceis para alguém com
o tamanho dela, na melhor das circunstâncias, e quase impossível com aquele vestido. As
pantufas de seda não ajudavam em nada com os degraus de metal. Ela puxou a saia acima dos
joelhos, agarrando-a com uma das mãos, enquanto segurava a escada com a outra e se perguntava
que tipo de visão Amon tinha dela lá embaixo.
Raisa estava na metade do caminho quando perdeu o contato da única mão com a
escorregadia escada de metal, vacilou por um momento, agitou os braços, depois caiu gritando
pelo do espaço.
Ela aterrissou com um baque nos braços de Amon. Ele cambaleou alguns passos para trás e,
por um momento, a princesa pensou que ambos cairiam, mas ele recuperou o equilíbrio e
terminou apoiado na parede, ofegando e segurando-a no colo contra a lã úmida do casaco do
uniforme. Ela podia ouvir o coração dele batendo perto do ouvido dela.
- Pelos malditos ossos de Hanalea! - praguejou ele, e seu rosto estava a centímetros do dela,
com olhos cinza-escuros, agitados como o oceano Indio no inverno e com o rosto branco como
cera. - Você ficou louca, Raisa? Você quer se matar?
- Claro que não - retrucou ela bruscamente, pois o medo a tornava irritadiça. - Eu só
escorreguei. Só isso. Me põe no chão.
Mas ele parecia querer fazer seu sermão bem de perto.
- Você nunca presta atenção. Sempre tem que fazer do seu jeito, mesmo que isso signifique
quebrar o seu maldito pescoço.
- Nem sempre tenho que fazer do meu jeito - falou ela.
- Sério? E quando você simplesmente tinha que cavalgar o garanhão das terras baixas? Qual
era o nome dele? Devilwish? Devilspawn? Você teve que subir a cerca para montá-lo, e o lombo
dele era tão largo que suas pernas ficaram esticadas, e os arreios não serviam, mas você tinha que
tentar - ele bufou. - Aquela foi a menor cavalgada do mundo.
Ela havia esquecido o irritante hábito de Amon de repetir histórias antigas das quais ela já se
esquecera. Raisa debateu-se, chutou e tentou se libertar. Definitivamente ele era muito mais forte
do que ela se lembrava. Embora fosse pequena, ela sempre conseguira resolver as coisas por meio
da força da personalidade, na pior das hipóteses.
- Você nunca pensa na bagunça que deixa para trás - acusou Amon. - Se você quebra a
cabeça e eu estou envolvido de alguma forma, meu pai não vai deixar o suficiente de mim para
alimentar os corvos.
- O que aconteceu com "Por favor, Alteza" e "Com licença, Alteza"? - quis saber Raisa. -
Pela última vez, me coloca no chão, ou vou chamar a Guarda.
Amon piscou para ela, e ela não pôde deixar de perceber que ele realmente tinha cílios grossos
que se misturavam ao cinza dos olhos. Com cuidado, ele a pôs de pé e deu um passo para trás.
- Minhas desculpas, Alteza - disse ele com o rosto sem expressão e rígido. - Devo ir
então?
E rapidamente a raiva se foi, substituída por remorso. As bochechas dela ardiam. Como eles
poderiam ser amigos se ela continuava a exercer seu poder sobre ele?
- Me desculpe - murmurou ela e pôs a mão em seu braço. - Obrigada por salvar a minha
vida.
Ele continuou a fitar mais à frente.
- Minha obrigação, Alteza, como um membro da Guarda da Rainha.
- Você quer parar? - disse Raisa em desespero. - Eu pedi desculpas.
- Não é necessário se desculpar, Alteza - disse Amon e baixou os olhos para a mão dela em
sua manga. - Agora, se não houver mais nada...
- Por favor, não vá, Amon - pediu Raisa, soltando o braço dele e fitando as pantufas
estragadas. - Eu realmente preciso de um amigo, mesmo que eu não mereça um. - Ela limpou
a garganta. - Você acha que pode ser meu amigo?
Fez-se um longo silêncio. Então Amon pôs dois dedos debaixo do queixo dela; a princesa
ergueu a cabeça e olhou para ele, e o movimento fez com que as lágrimas descessem pelo rosto.
Amon se inclinou para ela, com o rosto muito próximo e, antes que Raisa soubesse o que estava
fazendo, passou os braços pelo pescoço do rapaz e o beijou nos lábios.
Talvez ele também estivesse pensando em beijá-la porque abraçou-lhe a cintura com força e a
ergueu na direção dele, de modo que seus pés quase saíram do chão. Ele retribuiu o beijo com
habilidade e intensidade surpreendentes. Os lábios dele eram um pouco ásperos e queimados
pelo vento, mas de um jeito bom, e Raisa não estava disposta a parar quando ele interrompeu o
beijo e recuou, com os olhos cinza arregalados de susto.
- Lamento, Alteza - ofegou ele, enrubescendo e erguendo as mãos com as palmas para
fora. - Me perdoe. Eu... eu não queria...
- Pode me chamar de Raisa - disse Raisa e moveu-se na direção dele, esticando a mão.
- Por favor... Raisa. - Ele a segurou pelos ombros e a manteve a uma pequena distância. -
Não sei o que... Não podemos fazer isso.
Raisa piscou para ele.
- Foi só um beijo - falou ela e sentiu-se um pouco magoada. - Eu já fui beijada antes.
Por Micah obviamente, e por Reid Andarilho da Noite Demonai, de olhos escuros e intensos,
um dos guerreiros do acampamento Demonai. Wil Mathis com seus lábios cheios, Keith
Klemath (não Kip), e provavelmente mais um ou dois outros rapazes.
- Isso nunca deveria ter acontecido. Eu sou um soldado e estou na Guarda da Rainha. Se
meu pai...
- Oh, não se preocupe com seu pai - resmungou Raisa. - Ele não precisa saber de tudo.
- Ele descobre tudo. Eu não sei como. E eu queria saber. - Desajeitado, Amon enfiou a
mão no bolso e retirou um lenço que estendeu a ela.
Raisa sabia que não haveria mais beijo. Pelo menos, por enquanto.
- Quando eu a vi no jantar, você parecia uma princesa - falou ele e graciosamente desviou
os olhos do rosto manchado de lágrimas. - Quer dizer, eu sempre soube disso, mas você parecia
diferente do que eu me lembrava. Um pouco... distante. Não era o que eu esperava.
- Você também está diferente - disse Raisa, secando os olhos. - Eu nem mesmo te
reconheci até mamãe chamar o seu nome. - Ela esboçou um sorriso sem graça. - Você... você
está muito bonito, sabia? Deve ter um monte de namoradas. - Ela não conseguia deixar de
pensar que ele tivera alguma prática em beijar desde que ela o vira pela última vez.
Ele deu de ombros e pareceu constrangido.
- Não sobra muito tempo para namoradas em Vau de Oden - disse ele.
- Magret diz que sou mimada e malcriada. Minha mãe diz que sou teimosa. Eu tento fazer
as coisas do meu jeito, mas acho que é porque nunca faço do meu jeito as coisas que têm
importância. - Ela ergueu os olhos para ele. - Não vou conseguir escolher onde quero morar
nem com quem quero casar, e nem quem são meus amigos. O meu tempo nunca será meu. -
Ela assoou o nariz e sentiu-se mal em relação ao lenço de Amon. - Não é que eu não queira ser
rainha. Eu quero. Acho que não quero ser minha mãe.
- Então, não seja - disse Amon, como se fosse a coisa mais fácil do mundo.
- Mas a maioria das garotas adoraria ser ela - disse Raisa e olhou ao redor com expressão
culpada, como se alguém pudesse ouvi-los no túnel úmido. - E eu não sei como ser algo
diferente. Não quero estar à mercê dos conselheiros. Mas como você aprende as coisas? Sem ser
como tocar alaúde ou bordar, quero dizer. Pelo menos, eu sei cavalgar, caminhar pela floresta e
usar o arco por causa do tempo que passei em Demonai. Meu pai me botou no caminho de ser
uma comerciante. Mas nem isso nem o bordado são suficientes para ser uma boa rainha.
- Ora, eu não sou nenhum erudito - disse Amon e se encostou na parede, parecendo
confiante de que Raisa não o atacaria novamente. - Mas há pessoas em Fellsmarch que sabem
coisas. Os oradores no templo, por exemplo. Há uma imensa biblioteca lá.
- Imagino - falou Raisa. - É simplesmente uma provação ir lá. Algumas vezes, gostaria de
ser invisível. - Ela se contorceu com irritação. - Eu nem mesmo sei o que está acontecendo
no mundo. Os conselheiros de minha mãe contam a ela o que ela quer ouvir ou estão
promovendo os próprios interesses. As pessoas dizem que ela os ouve demais.
As pessoas eram a avó, Elena, entre outros.
- Agora quem é o cético? - perguntou Amon. - Talvez você precise encontrar sozinha
olhos e ouvidos honestos. - Ele bocejou e esfregou os olhos.
- Ah! - falou Raisa, aflita. - Eu sinto muito. Você disse que tem que se levantar cedo. -
Meia hora tentando mudar, e ela fora tão egoísta e indiferente quanto sempre. Ela tentou
ignorar a voz em sua cabeça que dizia: é isso que as rainhas fazem.
- Anda, vamos. - Ela pegou uma das tochas e abriu caminho túnel adentro, tentando
ignorar o murmúrio dos ratos e os olhos refletidos de criaturas que espiavam das fissuras nas
paredes e se espalhavam à sua frente a cada curva.
Amon não teve dificuldade em acompanhá-la com suas pernas compridas.
- Como essa passagem está aqui? - perguntou ele. - E quem mais sabe sobre ela?
Raisa limpou uma teia de aranha do rosto.
- Eu a encontrei depois que voltei de Demonai - falou ela. - É antiga de verdade. Não
sei quem a fez, e não acho que alguém saiba sobre ela. Não contei a ninguém além de você.
Finalmente eles chegaram à câmara de pedra grosseiramente circular que indicava o fim do
caminho.
- Aqui estamos - disse Raisa e pôs a tocha em um suporte ao lado da porta. Ela deslizou o
painel e afastou o guarda-roupa que colocara em frente à entrada.
- Onde nós estamos? - perguntou Amon, confuso.
- Você verá - retrucou Raisa e escolheu seu caminho em meio a um campo minado de
sapatos e botas, afastando vestidos cheios de babados em cabides.
O quarto dela estava frio e escuro, o fogo se extinguia na lareira e a camisola ainda estava
esticada na cama.
Amon emergiu do closet atrás dela e olhou à sua volta. Seus olhos se arregalaram e ele pareceu
um pouco em pânico.
- Raisa... este é o seu quarto?
- Sim - disse Raisa, despreocupada. Ela andou até a lareira, remexeu o fogo e colocou
outra tora.
- Pelo sangue do demônio - xingou Amon. - Tem uma passagem secreta nas paredes que
levam ao seu quarto? Isso não a deixa preocupada?
Ela ergueu o olhar para ele.
- Não. Por que deveria? - Tinha se concentrado. Ela realmente não estava preocupada na
conveniência de ter um meio de ir e vir sem passar pelos olhos de ninguém nos corredores
ocupados do palácio.
- Alguém fez isso - disse Amon. - Quem mais poderia saber a respeito?
- Estes aposentos ficaram fechados por centenas de anos, talvez mil. Você deveria ter visto
como estava antes de nós o limparmos. Alguém fez a passagem, mas essa pessoa deve ter morrido
há muito tempo.
Amon examinava o painel deslizante e passava as mãos sobre o entalhe de madeira que o
circundava.
- Você deveria ter colocado umas tábuas aqui, Raisa. E fechado permanentemente.
- Você se preocupa demais - falou Raisa. - Estive aqui durante três meses e nenhum
monstro entrou.
- Estou falando sério. Vou conversar com meu pai a respeito.
- Não vai, não - disse Raisa. - Você prometeu que não contaria a ninguém.
Ele inclinou a cabeça e franziu a testa.
- Não me lembro de ter prometido coisa alguma.
- De qualquer forma - prosseguiu ela -, verei se há um meio de pôr uma tranca nela. Isso
deve resolver. - Ela andou até a pequena despensa, subitamente relutando em vê-lo partir. -
Você quer comer alguma coisa?
Ele balançou a cabeça e sorriu desanimado.
- Melhor eu ir embora. Não queremos que ninguém me encontre aqui.
Raisa balançou a cabeça.
- Acho que não - disse ela. E sentiu-se agitada, confusa. Por um lado, ela se entristecia pelo
Amon que conhecera na infância, uma amizade que nunca mais seria a mesma. Por outro lado,
sentia uma vibração de possibilidades, uma fascinação intensa por este novo Amon e qualquer
coisa que ele pudesse fazer ou dizer.
Ela o acompanhou até a porta e ele deu um passo para o corredor.
- Obrigado pelo jantar - falou. - Estou realmente cansado da comida do sul. - Ele fez
uma pausa e limpou a garganta. - Não se esqueça do túnel.
- Desculpe por mantê-lo acordado até tão tarde - disse Raisa, sem se comprometer. - Mas
eu realmente estou feliz por você estar em casa. - Ela pôs a mão no braço dele para se
equilibrar, ficou na ponta dos pés e o beijou na bochecha.
- Então foi aí que você passou a noite toda - falou alguém com uma voz fria como um
beijo do demônio.
Raisa se afastou de Amon e virou, e soube que essa era a coisa errada - e culpada - a fazer.
Era Micah Bayar, com os olhos escuros reluzindo sob a luz dos candelabros de parede. Um
forte odor de vinho indicava que ele andara bebendo.
- O que você está fazendo aqui? - indagou ela, sabendo que a melhor defesa era um bom
ataque. - Esgueirando-se pela torre da rainha no meio da noite?
- Eu poderia fazer a mesma pergunta a este soldado - disse Micah. - Ele parece muito...
fora do lugar.
- Sua Alteza me pediu que a acompanhasse até seus aposentos - retrucou Amon, usando a
desculpa que ela e Micah sempre usavam. - Eu já estava de saída.
- Estou vendo - disse Micah. - Pensei que você estivesse com dor de cabeça - disse ele
para Raisa.
- Eu estava - respondeu ela. E virou-se para Amon. - Boa noite e obrigada, cabo Byrne.
Ela se virou para entrar no quarto, mas Micah a segurou pelo braço, o poder liberado neste
aperto pinicou sua pele. - Espere aí - falou ele. - Não tenha pressa. Eu tenho que entender
uma coisa.
Raisa tentou se soltar.
- Micah, eu realmente estou cansada. Será que podemos conversar sobre isso amanhã?
- Acho que deveríamos conversar sobre isso agora - disse Micah e fitou Amon com ar
severo. - Enquanto estamos todos juntos aqui.
- Me solta! - disse Raisa e tentou soltar os dedos dele com a mão livre.
Subitamente a espada de Amon estava em sua mão e ele a apontou para Micah.
- Sul'Bayar - disse Amon. - A princesa-herdeira pediu que você a soltasse. Sugiro que faça
isso.
Micah piscou, depois baixou os olhos para a mão no braço de Raisa, como se estivesse
surpreso por vê-la ali. Ele a soltou e deu um passo para trás.
- Raisa, escute, eu não queria...
- Você é quem deve escutar - interrompeu Raisa. - Você não é meu dono. Não acho que
precise ser interrogada se quero passar um tempo com um amigo. Não devo a você explicação
alguma.
Amon voltou a guardar a espada.
- Alteza, é tarde e todos estamos cansados. Por que você não vai dormir e nós dois vamos
embora, está bem?
Raisa engoliu em seco e deu um passo para o abrigo da entrada da porta. Amon pôs uma das
mãos no ombro de Micah e empurrou-o pelo corredor. Mas o olhar que Micah lançou para
Raisa por cima do ombro dizia que este não era o fim daquela história.

O Rei DemônioOnde histórias criam vida. Descubra agora