Kiarah era uma jovem frágil e sensível, que após perder todos que amava em um trágico acidente de avião, se viu desamparada e sem esperança. Foi nesse momento de vulnerabilidade que Christopher, um garoto misterioso e sedutor, entrou de mansinho em...
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Ele me olhou. Tinha o rosto aberto em cortes, o supercílio rasgado, o canto da boca rasgado, o peito subindo e descendo como se o ar fosse fogo e ainda assim, ele sorriu pra mim. Um sorriso tão errado e tão lindo que me fez querer chorar. Eu estava prestes a puxar ele para mim e dizer que as coisas iriam melhorar, que eu o amava, mas não deu tempo porque Martin gemeu atrás de nós e eu ouvi o estalo, o arrastar de metal Martin se arrastava no chão, a arma escorregando na mão dele, o cano levantado, apontando pra costa de Christopher meu peito se encheu de medo. — Christopher, cuidado! — eu gritei tão alto que minha garganta doeu. Foi como se eu tivesse puxado um gatilho dentro dele. Christopher se virou num rompante. O riso veio primeiro — um riso que me gelou até o osso. Ele pisou na mão de Martin, esmagou o pulso contra o chão podre, ouvi o osso se render e o grito de Martin não cobriu o riso de Christopher. — Você não aprende, né, verme? — ele rosnou. — Levanta. Quero olhar nos seus olhos quando abrir você. Eu quis fechar os meus. Mas não fechei. Christopher puxou Martin pela gola, arrastou ele como um saco de carne pelo chão de tábuas. Jogou ele de costas contra uma pilastra. As correntes chacoalharam, ecoando como sinos de uma igreja profanada. Ele prendeu Martin ali, cada algema apertando a carne até cortar. Eu vi o sangue escorrer pelos punhos e pingar no chão, formando poças vermelhas assim como ele fez comigo. —Christopher, deixa, não tortura ele, só acaba com isso logo —tentei argumentar, mas sabia que era em vão. — Kiarah… — Martin choramingou, cuspindo sangue, os olhos rodando até mim. — Por favor… me ajuda, f-fala para ele parar. Christopher se virou tão rápido que eu ouvi o estalo da bota dele no chão. Agarrou o cabelo de Martin, puxou a cabeça dele pra trás como um cordeiro no altar. — Pede desculpa pra ela. — A voz dele saiu tão baixa que eu mal ouvi. — Pede. Desgraçado. Martin balbuciou, tentou rir, mas a risada morreu engasgada. — Kiarah… me perdoa… eu… eu… O tapa estalou como um disparo. Christopher limpou o filete de sangue que escorria no queixo com o dorso da mão, depois levantou a faca. Eu juro por Deus que nunca vi uma faca brilhar tão suja. — Fecha os olhos, Kiarah. — Ele virou o rosto pra mim, os olhos dele… tão escuros que eu não vi azul nenhum. — Tapa os ouvidos. Não olha! Eu não consegui obedecer. Christopher segurou a mão de Martin, abriu os dedos como quem desmonta um brinquedo velho. Encostou a lâmina na base do mindinho. Martin gritou antes mesmo de sentir. Christopher sorriu. E então pressionou. Eu sabia, sabia que Christopher estava adorando cada momento disso, eu o conhecia, mas eu não queria, não queria ver o amor da minha vida torturando um homem, por mais que esse homem fosse o que me destruiu. O som que fez, eu nunca vou esquecer. O estalar do osso, o chiado da carne se abrindo e o sangue quente respingando no peito dele. Martin urrou, se debateu, mas Christopher segurou firme, os olhos nele, vidrados como se gravasse cada segundo na pele. Ele jogou o dedo no chão como se fosse algo normal. — Por Jolie. — Ele cortou o anelar. — Por Kiarah e cada lágrima dela. — Ele cortou o médio. —Por cada pedaço de carne que essa sua não desgraçada tocou nas duas pessoas mais importantes para mim. Martin se debatia, engasgava no próprio choro, tentando puxar ar. Christopher riu. Um riso que eu nunca tinha ouvido. Nem nos meus piores pesadelos. — Grita mais alto, Martin! — ele debochou. — Eu ja disse que adoro quando gritam? —ele parecia um louco falando e acho que nunca vou esquecer essa cena — Não chore, Martin querido, quer que eu cante uma musiquinha? Essa minha mãe cantava para mim. Eu queria gritar junto. Eu queria parar. Eu queria correr. Mas eu não me mexi. Eu só olhava. O rosto dele, o meu Christopher, meu monstro, a faca dançando na mão dele como uma extensão dos ossos, o riso dele se misturando com o choro de Martin. —É tão tarde…a manhã já vem…todos dormem a noite também ... só eu velo por você, meu bem —Christopher cantava de uma forma macabra e o choro com o barulho dos ossos de Martin eram como uma trilha sonora. Quando o último dedo caiu, Martin parecia mais morto do que vivo. Mas não era o bastante, ele já havia desmaiado de dor várias vezes e agora Christopher lhe deu um tapa no rosto para que ele acordasse, se agachou, puxou o rosto de Martin pelos cabelos, forçou a faca encostada na têmpora dele. — Quer dormir, Martin? — sussurrou, rosnando como uma fera — Pede pra ela. Pede pra Kiarah te dar misericórdia. Mas nem que ela me implore de joelhos eu terei misericórdia de você! Martin nem conseguia falar. Só tremia e soluçava. Christopher olhou pra mim. E eu entendi. Eu vi. O monstro. O demônio. O homem que me ama. Tudo ali, na mesma boca suja de sangue, aqueles olhos que eu sempre amei, faiscando em um poder, uma loucura que assustava. — Isso é por você. — Ele disse pra mim, como se fosse um presente. — Isso é pra você nunca mais duvidar de quem eu sou e do que eu seria capaz de fazer por você. Ele enfiou a faca no ouvido de Martin. Lento. Tão devagar que eu ouvi o osso abrir, fechei os olhos querendo sumir eu não queria o peso da morte de uma pessoa nas minhas costas, mas era isso, ele matou Jolie e talvez ele mereça esse fim. O grito de Martin virou um chiado sem som. E quando o corpo dele parou de se debater, Christopher ficou lá, com a faca cravada, o peito arfando, as mãos trêmulas suja de sangue. Ele soltou o corpo mole de Martin e se levantou com um gemido como se lembrasse de sentir dor somente agora, cambaleou na minha direção e caiu de joelhos na minha frente, o rosto machucado sangrando. Christopher sorriu para mim, os dentes estavam sujos de sangue e meu peito se apertou ao vê-lo machucado assim por mim. O chão sob nós estava manchado de sangue e esse lugar era pequeno demais pra carregar o peso dele — meu monstro dobrado em dois, respirando como se cada puxada de ar fosse a última. Eu caí junto. Minhas pernas bateram no assoalho apodrecido, e eu abracei ele, abracei como quem segura um milagre que sangra. — Tá tudo bem agora — ele sussurrou, a voz raspando dentro do peito — Eu tô aqui, princesa. Acabou. Tá tudo bem. — Não tá. — Minha voz saiu mais dura do que eu queria. — Não tá tudo bem, Christopher. Você tá todo fodido, você devia tá morto. Ele soltou um riso quebrado, sujo, que virou soluço engolido. Passou a mão na minha nuca, manchou meu cabelo de vermelho. — Eu não morro — disse baixo, quase um segredo — Eu sou tudo que sobrou de você. Ele me ergueu. O braço dele tremeu tanto que eu quis segurar ele junto e mesmo assim ele me levou até a porta, atravessou a sala que fedia a sangue, ferro e medo. Quando o vento frio bateu na minha cara, eu quase acreditei que era liberdade — mas agarrei a nuca dele antes dele pisar fora. — A Jolie — foi tudo que eu consegui dizer. Meu peito quebrou no meio — A gente não vai deixar ela aqui. Não assim. Ele parou e eu senti o corpo dele travar — senti cada costela protestar. Eu vi nos olhos dele o mesmo rasgo que vi aquele dia, semanas atrás, quando eu fui embora e ele chorou como se fosse um homem normal. Chorou por amor. Ele me pôs no chão com cuidado e passou as mãos no meu rosto como se gravasse minha forma. A voz dele saiu embargada como nunca antes. — É arriscado. Enterrar chama a polícia. Funeral chama repórter. Vão achar. Não dá… Eu não recuei. Agarrei a gola da camiseta rasgada, puxei pra perto e cravei meus olhos nos dele — Então queima — eu disse, minha voz saindo mais velha do que eu era — Queima tudo, Christopher. Queima essa casa. Queima o corpo. Queima esse inferno, mas não deixa ela aqui como se fosse lixo. Ele me olhou. E eu juro por tudo que respira que vi o monstro se partir mais uma vez — mas não reclamou. Só virou as costas e sumiu na noite. O rangido do porta-malas ecoou, depois o baque metálico do galão de gasolina. Claro que ele tinha um — Christopher sempre tem saída. Sempre tem fogo. Ele voltou, abriu a porta, andou pela sala espalhando o líquido como quem espalha o veneno que vai purificar tudo. O cheiro subiu, engasgou minha garganta, mas eu não fechei os olhos. Quando ele parou na minha frente, o isqueiro rodou entre os dedos manchados. O mesmo isqueiro que eu conhecia pelo estalo — o mesmo que queimava cigarros depois de corpos tombarem. — Fecha os olhos, princesa — ele disse, quase um pedido. —Eu não queria que você visse nada disso. Eu não fechei, eu queria ver, queria que fosse um adeus que ela tivesse um pouquinho de dignidade. A faísca nasceu pequena, o fogo lambeu o assoalho imundo, subiu pelas paredes, engoliu tudo o que Martin partiu ali dentro, o barulho da madeira estalando e do fogo rugindo. O cheiro de gasolina virou o cheiro de adeus, o fogo levou com ele um pedacinho do meu coração, um pedacinho de felicidade que eu ainda guardava no peito, era um pedaço pequeno de paraíso que tinha o nome dela. E ali, iluminado pelo laranja grotesco, eu vi Christopher cair de joelhos de novo. Vi ele enterrar o rosto nas mãos. Vi o ombro largo tremendo — o monstro que a máfia jurava que não sangrava. E pela segunda vez, eu vi ele chorar, era um choro feio e engasgado que ele não tinha vergonha de esconder de mim. Eu não sabia bem como funcionava a mente de um psicopata e talvez a ciência nunca consiga explicar essa doença, mas de uma coisa eu sabia, ele sentiu amor, sentiu dor, sentiu empatia, por duas pessoas, dois corações que ele chamou de família, Eu me ajoelhei atrás dele, passei meus braços pelo peito rasgado de cortes. Senti o coração dele bater contra minhas costelas. Beijei a nuca dele, o gosto de cinza na minha língua, eu estava acostumada a vê-lo sempre tão forte e imponente que agora, vendo ele tão vulnerável chorando por amor e luto, me deixava de coração partido, cada lágrima dele era um buraco corroendo meu peito, uma dor no meu coração. Ele falou sem erguer o rosto, mas a voz era baixa e arrastada. — Eu sou seu lar e você é o meu. E eu soube que era verdade. Eu soube que não existe volta pra quem nasceu pra queimar junto. Nos levantamos e olhamos a estrada à nossa frente, como quem respira aliviado depois de muito tempo. Atrás da gente, a casa virou pira. O corpo da Jolie virou fumaça, cinza e promessa. Um funeral feio, sujo, mas dela e nosso também. Ele me olhou por cima do ombro, os olhos ainda molhados. — Vamos pra casa — sussurrou. E eu fui — eu iria todas as vezes. Até o último fósforo, até o último perdão, até o último inferno.