Kiarah era uma jovem frágil e sensível, que após perder todos que amava em um trágico acidente de avião, se viu desamparada e sem esperança. Foi nesse momento de vulnerabilidade que Christopher, um garoto misterioso e sedutor, entrou de mansinho em...
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A estrada engoliu a noite atrás de nós. Christopher dirigia como se cada curva fosse a última — a mão esquerda firme no volante, a direita pousada na minha coxa, o polegar riscando círculos na minha pele, me ancorando ali. O cheiro de gasolina, pólvora e cinza ainda grudava em nós — grudado na roupa, na pele e na memória. Eu sentia que podia respirar aliviada novamente, eu finalmente estava ali com ele.
Eu encostei a testa no vidro da janela. A cidade vazia da Espanha passava borrada, as luzes de neon se misturando com as sombras que moravam nos cantos da minha cabeça. Lá atrás, na mala, não tinha mais nada além de um casaco sujo, uma arma desmontada, o resto do inferno que a gente deixou pra trás, os cacos do meu coração seriam colados aos poucos, mas eu sabia que iria sobreviver, com Christopher ao meu lado eu sobreviveria até o inferno. Ele não falava nada e eu também não. Às vezes ele respirava fundo, como se fosse tossir sangue. Às vezes eu fechava os olhos só pra lembrar que ainda estava viva, mas eu tinha medo, tinha meu coração apertado, não sabia como ele ainda estava respirando e dirigindo. O rosto dele estava todo sujo do sangue dele e daqueles que ele matou, o corte na sobrancelha dele era o que mais sangrava.
Quando a placa do Airbnb apareceu no GPS do celular dele, senti o peso do mundo deslizar dos ombros dele — não sumir, nunca sumir, mas dar uma trégua curta. Era uma casa pequena, escondida numa rua lateral. Portão de ferro, jardim seco, persianas fechadas. Um lugar seguro e calmo depois de tanto sofrimento. Ele desligou o motor devagar e ficou ali, com os dedos presos no volante, olhando pro nada. Eu estendi a mão e toquei o rosto dele — senti a barba por fazer, os arranhões na mandíbula, o calor latejante de um corte mal fechado.
— Ei. — Minha voz saiu mais macia do que eu lembrava que podia ser. — Você ainda tá aqui.
Ele me olhou. Os olhos azuis, tão azuis que doíam. A mesma cor que eu vi chorando quando fui embora. A mesma cor que vi, hoje, pingando lágrima em cinza. Os mesmos olhos que vi a quase dois anos atrás pela primeira vez, tão lindos que sempre me faziam perder o ar.
— Eu tô — ele murmurou. — Mas você ainda quer que eu esteja?
A pergunta ficou suspensa, pesada, enorme. Eu não fugi. Encostei a testa na dele. Senti o cheiro dele — suor, sangue, tudo errado e tudo meu, meus olhos marejaram e a garganta se fechou, eu não sabia mais viver sem ele e acho que isso nunca seria possível.
— Eu nunca deixei de querer. — Foi tudo que eu consegui dizer. E a palavra rachou, virou lágrima. — Eu sou sua, olhos azuis. Nunca deixei de ser.
Ele riu baixo, mas o riso veio quebrado, um sopro rouco que grudou na minha boca quando ele encostou a testa mais forte na minha, deixando beijos na minha boca, na minha bochecha, testa e afagou meu cabelo.
Saímos do carro sem olhar pra trás. O portão rangeu, a porta rangeu, tudo naquele lugar parecia intocado e puro demais para todo o peso que nós dois carregamos, mas entramos mesmo assim. Dentro, o cheiro era de limpeza — sabão barato, móveis de catálogo, lençóis brancos e limpos. Eu larguei minha mochila no chão, ouvi ele soltar o corpo na poltrona. Fechei a porta, travei as trancas. Por um minuto, ficou só o barulho da nossa respiração — a minha falha, a dele pesada, uma mistura de dois corpos quebrados, duas almas feridas que se completavam, mas ele se levantou devagar, como se cada costela fosse estilhaçar, a careta de dor que ele fez foi como se doesse em mim. Foi até a cozinha, abriu o armário, pegou uma garrafa de água. Bebeu metade em silêncio, deixou o resto pra mim.