Já estava bem tarde quando cruzei o corredor e vi a porta do meu quarto entreaberta. A luminária sobre a escrivaninha iluminava minha mãe e minhas, aliás, suas cartas. Encolhi os olhos para prestar mais atenção e me aproximei com calma da porta, observando-a em silêncio. De imediato, pensei "preciso impedi-la, ela não pode ler!", mas, depois, "por pior que seja, agora que já começou, é melhor que leia tudo" - não sei de onde veio este ímpeto, mas ele me fez alguém mais corajosa naquele momento.
Esperei pacientemente até que lesse tudo.
Deixando os óculos de lado ela apoiou a testa nas duas mãos e começou a chorar.
- Mãe?
Ela controlou o choro e acendi a luz do quarto. Caminhei até a cama, me sentei e esperei que ela se virasse.
- Então é isso que você pensa de mim? – ergueu as cartas que tinha na mão.
- A senhora não devia ter lido.
- Por que não? São todas para mim.
- Mãe... eu não quero que fique triste. Escrevi em momentos de raiva...
- Isadora, nós vamos conversar. Sobre cada uma delas.
Mamãe organizou as cartas por datas e começou:
- O pior aniversário da sua vida?! Quero ver se você vai ter coragem de falar isso depois de amanhã!
- Mãe, por favor...
- Nós sempre fizemos tudo pensando no seu melhor!
- Inclusive servir bobó de camarão para uma garota de 12 anos no seu aniversário?!
- Isadora, como você é egoísta!
- Pronto, começou...
- Você sabe que este é o prato preferido do seu avô!
- Então faz para ele no aniversário dele!
Ficamos em silêncio.
- Minha carta não fala só de comida. Fala da roupa que você me fez vestir, fala de sempre viajarmos na data...
- Filha, seu aniversário cai em véspera de feriado e seus avós moram longe! Quer dizer, seu avô... – seu olhar se perdeu no vazio e percebi que essa discussão não valia mais a pena.
- Essa carta é muito antiga, eu compreendi muita coisa depois que a vovó morreu. Me arrependi muito por tudo que disse, por toda ingratidão, por... – comecei a chorar. A saudade bateu forte.
Mamãe fez cara de forte, enxugou suas lágrimas e pegou a próxima carta.
- Bom, eu não sei o que falar sobre isso...
- Qual é essa?
- Menstruação, BV, etc. – dei um leve riso enxugando minhas lágrimas.
- Eu não fazia ideia de que menstruação, olha que palavra bizarra, existia!
- Ah, Isadora. Pelo amor de Deus, como não?
- Não, mãe! Não! Quem poderia ter me falado?
- As colegas, a escola...
- Desculpa, mas ninguém me falou...
- Certo. Se fez tanta falta para você assim... Me desculpa? Acabei esquecendo que no manual da filha vinha "contar sobre menstruação antes que aconteça".
- Mas o problema não foi só esse. A senhora falou isso para os nossos vizinhos. NO ELEVADOR! NA MINHA FRENTE!
- Ah, minha filha. Que besteira. Isso é tão normal. Todas as mulheres menstruam e todos os homens sabem disso. Não tem porquê ter vergonha.
- Mãe, para mim não era normal! Não era nada normal! Fiquei constrangida, até porque além de vizinhos eles já eram quase meus sogros!
- Ai, ainda tem isso...
- Mãe, reconheça, a senhora foi, no mínimo, indelicada.
- Ah, Isadora, que drama.
- Mãe, a senhora não pode esperar que uma garota de 12 anos trate menstruação com a mesma naturalidade de uma mulher de 40. – com essa fala ela pareceu, finalmente, ter entendido.
- Ok, Isadora. Vamos para a próxima.
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