Ventos tormentosos

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Um breve capítulo

Esseno não conseguira pregar os olhos na noite que se passara; pesadelos terríveis com a morte de Palma o assombraram. Ele corria pela encosta da montanha e uma tempestade descomunal se formava no céu, o dia de claro se tornava escuro como a noite mais sombria, raios e relâmpagos iluminavam o caminho tortuoso. Pedras rolavam e uma avalanche ameaçava cair sobre ele. Uma voz muito familiar cantava e ele podia ver uma moça de capuz púrpura num balanço a beira do precipício a entoar angelicalmente:

"Jovem rei, jovem rei de quem se esconderias?

Sua luta já se finda, desista dessa vida...

Pássaros da noite, tristeza mais profana...

Atire-se no poço da mais negra lama."

Ele sentia seu fôlego se perder e era como se agora estivesse imerso na lama de que a mulher lhe falara, sentia sua pele queimar e sua vida desvanecer. Algo naquelas palavras parecia um encantamento mágico, porém ele nada podia fazer para detê-la. Já podia ver o seu túmulo e a tristeza daqueles que um dia resolveram devotar-lhe algum respeito. Atormentado por visões tão nefastas e perdido em sua pouca esperança de viver olhou para o céu e buscou em tamanhas trevas uma luz para guiar seus últimos momentos. Do escuro céu se ouvira o canto de um pássaro, mas não era um pássaro qualquer, de plumas prateadas e acompanhado por uma nesga de luz que refletia sobre suas asas na escuridão intentou contra a mórbida canção. De repente o pássaro apareceu como se fosse ele o salvador do rei; com incrível velocidade investiu contra a moça que se mantinha sobre o balanço no despenhadeiro, ela tentou atingi-lo com uma flecha de sua besta, mas ele era tão veloz como um próprio raio e ela não acertou. O pássaro fora tão rápido que conseguiu desferir um golpe certeiro em seu rosto e ela caiu de seu lugar, afundou pesadamente para uma morte certeira, entretanto antes que pudesse atingir o chão voou como um corvo agourento para as densas nuvens de tempestade.

─ Onde estou? - disse meio tonto ao tentar levantar-se.

─ Você tem inimigos poderosos, jovem Esseno. Nunca vira alguém conseguir tanto êxito ao invadir um sonho e fazer o que essa bruxa...

─ Feiticeira! - corrigiu Esseno. ─ Verana de Almada, aquela mulher desprezível.

─ Tudo bem, isso não é uma prova para mestre de biblioteca... - respirou aliviado Pequenino ─ Até agora eu e Palma não sabemos o porquê de tanto interesse de Verana em tirar sua vida. Convenhamos que já falhou como protetor do Vale Almíscar e até com Palma... - disse displicente.

─ Não falhei com Palma, seu velho decrépito. - Esseno tentava se colocar de pé, mas não conseguia, pois sentia muita dor. Sua raiva era latente e ele queria de qualquer forma descontá-la em alguém.

─ Não seja tolo, Esseno. E sente-se. - disse apontando seu cajado e fazendo Esseno ficar deitado ─ Não estou falando de não tê-lo salvado da flecha, mas sim de sua teimosia em deixar o mal retornar e ter escondido este fato de seu conselheiro por tantos anos. Se as coisas estão como estão isto se deve muito a sua grande capacidade de omitir um fato tão importante.

O silêncio ensurdecedor era quebrado apenas pelo vento que uivava ameaçadoramente do lado de fora da caverna, Esseno parecia perturbado, contudo ainda estava lúcido.

─ Há coisas que os reis devem levar para o túmulo, mas creio que isso não seja tão importante quanto à vida de todo o mundo conhecido. - levantando-se procurou chegar próximo do calor das chamas da fogueira ─ Eu recebi de meu pai um livro chamado Crônicas dos Reis e este livro só pode ser lido pelos que são coroados no Salão das Luzes no castelo de Ventura... Há um capítulo eu me recordo muito bem... Ele falava sobre o pequeno sonhador.

O velho mago olhava compreensivo para Esseno

"Mas no intento de serem fortes ou até mesmo indestrutíveis alguns reis fizeram alianças proibidas que apenas o pequeno sonhador pode desfazer. Nos lenhos, rochas e intentos o seu incansável trabalho é fazer o mal cessar" - disse Esseno didaticamente.

─ Isso não me faz conhecedor do pequeno sonhador, creio que avaliem errado o meu real poder de interferir nestes fatos.

─ Não use de auto-piedade, isso não cai bem para quem um dia já foi rei. - disse Pequenino. ─ Tenho um livro aqui - começou a revirar algumas empoeiradas prateleiras. ─ Por essa você não esperava, meu caro! Leia isso.

─ Deixe-me ver: "Os jardins Primordiais" - disse em voz alta. Mas esse livro é uma fábula! Já sei de cor e salteado.

─ Então me responda: quem é o pequeno sonhador?

─ Como poderei saber? Este livro só fala de insetos e plantas que só existem em Vanilla.

─ Acho que já podemos avisar a Macadâmia que temos um campeão. - riu Pequenino.

***

"A ilha de Vanilla reunia os primordiais mais bondosos que existiam no mundo conhecido e eles eram grandes defensores dos seres não-primordiais e trabalhavam pela harmonia entre todos dali. Primus, Talman, Agnes e Airel quiseram convencer Maetisane do seu engano em se unir as Sombras do mar do leste, mas não obtiveram êxito. Antes ela declarou guerra a todos."

─ Foram centenas de anos de grande conflito e morte de primordiais e humanos, sem contar as inúmeras criaturas que viviam por ali. - Pequenino olhava pesaroso para o fogo.

─ Mas então como esta guerra chegou ao fim?

─ Ah! Caro Esseno, teve um preço muito grande.

"No inverno mais rigoroso dos últimos duzentos anos desde o início da guerra, os primordiais das estações e os primordiais chamados de menores propuseram um sacrifício voluntário. Contra um sacrifício voluntário não haveria mal capaz de resistir..."

─ Estranhamente ainda me dói falar disto... - Pequenino enxugava seus olhos.

─ Por que lhe dói? O senhor estava lá quando tudo isto aconteceu? - Espantou-se Esseno.

─ Estava sim, jovem rei. Mas incrivelmente não sei o que fazer para deter este mal novamente. Prossigamos enquanto ainda não é dia, pois quando ele raiar você terá que ir embora.

"Um círculo chamado de Abismo sem Forma foi desenhado no vale onde hoje nomeiam Almíscar, Talman e seus irmãos executaram a abertura dos portais entre a imortalidade e a mortalidade e com o poder e o sacrifício dos primordiais aprisionaram o mal sob o Vale. Depois o fizeram ser como o conheceu nos últimos anos."

***

" Todos nós perdemos nossa imortalidade pela mortalidade do mal". (Os Jardins Primordiais)



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Nos vemos no próximo capítulo.

O sonhador, a velha árvore e o reiOnde histórias criam vida. Descubra agora