CAPITULO 1 (Gênese)

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(este livro é dedicado à avó do autor, dona Geni.)

Patrícia olhou para os outros três. Pálidos, olhos encovados, assustados. Ela teria medo caso encontrasse com aquele trio um mês atrás. No entanto, apostava que um mês atrás o trio também correria se topasse com ela numa esquina ostentando a adquirida aparência mortiça. Apostava que também tinham aquela fome diferente e teimosa queimando o estômago. Que aqueles três também traziam em algum bolso o pequeno papel amarelo dando o local e a hora do encontro. O vento revolveu a copa das árvores fazendo com que o quarteto, instintivamente, olhasse para cima. O parque Trianon era deliciosamente belo àquela hora da madrugada. Patrícia sorriu e meneou a cabeça negativamente. Tudo que estivesse submerso na escuridão lhe pareceria belo desde sua transformação. Daquele dia maldito em diante, em que fora arremessada ao fundo do porta-malas do Landau negro, as trevas passaram a ser seu refúgio, seu porto seguro. E na escuridão haveria de encontrar a beleza, o prazer e o amor. Olhou mais uma vez para os estranhos. Contornou a fonte. Nenhum deles tinha dito uma palavra e ela pensava se seria conveniente ser a primeira a abrir a boca, a marcar território. O rapaz mais próximo a ela, de cabelos loiros e espetados, era o que a encarava desde a chegada.

Ele já estava ali quando ela chegara ao parque, saltando com rara graça e facilidade a alta grade na alameda Santos. Aquele "encarar" não era ofensivo. Tinha um quê de súplica. Mas mediante o silêncio da moça certamente o rapaz entendeu que ela não poderia ser a remetente do bilhete amarelo. Não, deci-didamente não era ela. Quem quer que tivesse escrito aquilo para o quarteto não precisaria nem mesmo ser convincente. Pessoas desesperadas costumam se apegar a qualquer vislumbre de esperança, de decência ou de explicações para a desgraça. Sim, estou falando aqui de quatro desgraçados que se jun-taram por força de três linhas num bilhete amarelo. Quatro desgraçados em torno da famigerada fonte do parque Trianon, ponto de encontro de bruxos e bruxas, de frente ao conhecido Museu de Arte de São Paulo, o MASP. Estou contando a vocês a história de quatro vampiros.

Tirando o cara de cabelos arrepiados, Patrícia já tinha visto os outros dois na mansão. Como só batera os olhos umas duas ou três vezes em cada, envolta num total sentimento sofrido de repulsa e desespero, não os julgava "conhecidos", eram estranhos da noite, que ela tinha visto pelos cantos do covil, evitando o contato com os demais súditos do malévolo vampiro que sonhara um dia dominar a noite e postular -se novo rei da Terra: Sétimo. Patrícia, desde o princípio, negara essa condição... essa degeneração do corpo. Fora pega e transmutada por um vampiro selvagem, chamado Rafael, soldado fiel, treinado por Agnaldo, Patrícia deixou um sorriso malicioso escapar. Os malditos estavam mortos. Do velho covil de Sétimo haviam sobrevivido poucos vampiros, menos de dez talvez. A maioria era como ela, seres noturnos, recém-transformados que tinham aproveitado a confusão no covil para debandar e rastejar nas sombras. Vampiros fracos e sem instrução, se virando nas trevas, repudiando o sangue, sentindo o estômago queimar e a mente afundar num torpor infinito que impedia o entendimento de tudo que se passava. Talvez alguns deles tenham pensado em voltar para sua família, voltar para suas casas. É possível que tenham desistido ao chegar ao umbral da porta. A barriga queimava. Sabiam que queriam sangue. Qualquer sangue. Talvez o da irmã mais nova. Talvez do pai. Rastejavam de volta à agonia e enovelavam-se no desespero, negando em suas mentes perturbadas. Não sou ruim! Não sou o mal! Não quero sangue, não quero! Sonhavam em não terem sido picados pela mosca do inferno. Por não se terem contaminado pelo ser sem alma. Por causa dessa confusão mental, desse abandono, aqueles quatro estavam reunidos sob o céu escuro e sem estrelas, envoltos pelas árvores que farfalhavam docemente ao sabor do vento frio. Filhos da noite, agarrados a um fio de esperança.

Os Filhos De Sétimo (saga O Turno Da Noite Vol.1) André ViancoOnde histórias criam vida. Descubra agora