CAPITULO 23

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O homem achou aquele freguês bastante estranho. Desde o aviso na TV, o agito da noite não era mais o mesmo. Até as coisas se acalmarem, os amigos do comércio tinham decidido cerrar as portas às dez da noite. Não valia muito ficar até mais tarde porque o grosso das pessoas, vítimas do pânico coletivo, desaparecia das ruas depois que o sol se punha. Às nove da noite a maioria dos quarteirões do centro estava deserta. Esse negócio de caça aos infectos não estava fazendo bem para ninguém. E tudo era culpa de uns lunáticos que maquiavam a cara e ficavam brancos como papel sulfite para parecer com vampiros. Se era isso que aquele cara queria, era isso que ele ia ter. Essa noite ia tomar um belo dum susto para largar a mão de ser besta. Sem que o homem percebesse, o delator discou para o número do Serviço de Contenção exibido de minuto em minuto na TV Agora era só esperar para ver.

O vampiro tinha outras assombrações rondando sua cabeça. Não estava prestando atenção no cara sentado na mesa na calçada. Estava com a cabeça baixa, fingindo que bebia seu copo de uísque, fingindo que gostava de fumar, levando de tempos em tempos o cigarro até a boca.

Samuel pensava na garota que tinha visto instantes atrás. No modo como ela matara o cara na cabine do Banco 24 horas. Era uma novata, não tinha dúvidas. Cercada por três rapazinhos tão novos quanto ela. O carro importado, o papo que levavam na mesa. Não tinham ficado dúvidas. Eram pupilos de Ignácio. Eram filhos de Sétimo e, como tal, certamente chegariam ao grau de agressividade que o velho vampiro precisava para pôr seu plano em prática. Samuel soltou a fumaça na direção do espelho do bar. Estava cheio daquela lengalenga de Ignácio. Sabia muito bem o que ele queria com os jovens. A ira de Sétimo era a chave. Por isso arrebanhar quatro logo numa tacada só. De besta o velho vampiro não tinha nada. Samuel entornou um grande gole da bebida. Talvez devesse interferir. Talvez não. Podia ficar de perto, vendo o circo pegar fogo e até podia jogar um ou dois litros de gasolina nesse incêndio. Samuel sorriu. Gostava disso. Na sua vida pregressa sempre fora o tipinho pacato e boa gente. Agora nada interessava. Na vida escura era cada um por si. Mas até que a vampirinha era um pedaço de mau-caminho. Valeria a pena qualquer confusão para aninhar aquela garota pequenininha e mirrada mas com o fogo de Sétimo queimando nos olhos. Repassou a forma rápida e fácil com que ela deu um jeito no trombadinha. Eficaz, limpa e violenta. O vampiro bateu as cinzas do cigarro no cinzeiro e ergueu o dedo para a barwoman que lhe estava observando nos últimos dez minutos. Samuel sacudiu o copo no fim, balançando o gelo e sorveu o último gole. A bebida não tinha sabor nem temperatura na língua do vampiro. Era como experimentar um copo de nada. Mas valia a encenação. Enganava, ludibriava, dava confiança para as mulheres se aproximarem de um cara normal, fumando um cigarro normal, bebendo uma bebida normal. Era como Ignácio dizia. Vampiros tinham de ser garças entre as garças.

A barwoman aproximou -se com outro copo de uísque e colocou debaixo um guardanapo de papel. Samuel agradeceu, olhando-a longamente nos olhos castanhos. A mulher ficou sem graça e se afastou. Samuel notou que ambos eram observados pelo dono do bar. O homem estava incomodado com alguma coisa. Samuel passou a mão no queixo e depois tomou um gole do novo copo de bebida. O bar não estava tão cheio, movimentado, mas com metade do volume costumeiro de pessoas que sempre se encontrava ali. Hoje a maioria era de homens que tinham saído do escritório, as mulheres tinham corrido para casa. Culpa do Exército.

Samuel voltou os olhos para a barwoman. Ela encarava-o novamente. O dono do bar também. Ele tinha um olhar esquisito, arredio. Estava escondendo alguma coisa. Samuel fitou-o mais um tempo. O desconforto do homem ascendeu o odor do medo. Samuel aspirou fundo. Medo. O que aquele desgraçado estava fazendo? Tornou a olhar para a barwoman. A mulher moveu os olhos para o copo. Samuel dissimulou. Quando o homem olhou para fora e depois para o relógio, o vampiro percebeu o guardanapo. No fundo do copo viu letras. Tirou suavemente o guardanapo e sorriu. Filha da mãe. A garota era das suas. Tinha-se valido do mesmo expediente que se valera para contatar a vampirinha deliciosa. Samuel leu as letras de fôrma malgrafadas no papel branco: Saia pelos fundos. Eu destranquei a porta do banheiro. Ele chamou os caras.

Os Filhos De Sétimo (saga O Turno Da Noite Vol.1) André ViancoOnde histórias criam vida. Descubra agora