Capítulo Cinco

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A melodia triste invadia meus ouvidos, que não escutavam nada tão belo assim há muito tempo. Subi as escadas bem lentamente, tentando não fazer barulho, pois não queria incomodá-lo. Eu sabia que estava saindo da área que eu deveria trabalhar, mas eu não pude evitar descobrir se era ele mesmo que estava tocando.

Era uma sala aberta, que continha um piano de cauda enorme e majestoso. E lá estava ele, o fantasma. Acredito que ele não tenha me notado naquele momento, pois estava tão concentrado no instrumento que parecia que estava em outro mundo. Desta vez, ele estava arrumado, com um lindo terno preto e uma gravata borboleta.

Eu não tinha reparado o quanto era branco, quase como um vampiro, muito magro e alto. Mas a face jovem o fazia parecer bonito. Depois de eu estar alguns minutos admirando sua música e seu jeito de tocar, ele finalmente percebeu a minha presença. Parou de tocar, franziu a testa, mostrando confusão e voltou a tocar.

Não satisfeita, fui até o banco do piano e me sentei ao seu lado. Me virei para ele e sussurrei um obrigada bem carinhoso. Ele olhou nos meus olhos, balançou a cabeça e continuou a tocar. Fiquei indignada.

- Qual o seu problema? Você é muito esquisito mesmo! Me ajuda e depois me despreza! Não é a toa que seu apelido é fantasma! Te procurei por toda a casa igual a uma louca e é assim que você fala comigo? Vai se danar! - eu estava gritando e ele pareceu um pouco assustado.

Saí da sala correndo e novamente fui surpreendida por jamanta, que me daria um castigo muito pior desta vez.

De novo arrastada para aquela cela fedorenta, eu já estava começando a me sentir em casa lá dentro. A bronca desta vez foi dez vezes pior, deixou meus ouvidos doendo. Mas agora eu não estava com medo. Já tinha encarado isso antes, estão eu fingiria que era só uma especie de desafio para testar minha resistência. O grande problema, é que agora seriam quatro dias. Os piores quatro dias da minha vida.

- Eu nunca pensei que iria viver para conhecer uma garota tão burra como você! Ir para o castigo duas vezes? Tem gente que não consegue aprender mesmo! Cada dia me surpreendendo! - Frida riu enquanto fechava a grade da cela.

Mais uma vez lá estava eu naquele buraco imundo acompanhada de meus ratos de estimação. Já havia me acostumado com o cheiro de morte, mas ele ainda era insuportável. Hoje estava ainda mais frio, e as infiltrações tinha formado pequenas poças espalhadas por toda cela.

Pude ouvir os calmos passos de jamanta pelo corredor, que estava arrastando o molho de chaves por entre as grades das celas e assobiando algum tipo de música triunfante. Aquela mulher diabólica tinha me vencido de novo.

Fazendo de conta que um monte de terra era meu travesseiro, tirei um cochilo e sonhei com doces. Nossa, quanto tempo eu não comia um daqueles! O sabor amargo de chocolate em contraste com o azedo levemente adocicado do morango me fazia salivar. Lembrei dos mousses e dos diversos tipos de pudim que a cozinheira de minha casa fazia. Como eu sentia falta dela!

Acordei num salto com um barulho vindo dos corredores do calabouço. Fui até as grades para espiar e vi uma sombra andando na minha direção. Tentei distinguir quem era, mas a escuridão era tanta que meus olhos não puderam ver nada além de uma silhueta magra caminhando pelo estreito corredor.

Rastejei até o fundo da cela e esperei. Alguns segundos depois, a pessoa colocou dentro do buraco uma vela e um papel que dizia: "Olá, meu nome é Nikolai" com uma letra muito feia. Demorou um pouco para minha vista se acostumar com a luz da vela, que além de iluminar, aquecia um pouco o local.

- Você de novo? O que faz aqui? Porque me ajuda? - eu disse, injuriada. Mas só Vi outro pedaço de papel que dizia:

"Me desculpe se te tratei mal. Não sei me expressar muito bem com as palavras. Na verdade, é uma deficiência física mesmo."

- Ah meu Deus! Me desculpa! Sou uma pessoa horrível! - fiquei me sentindo mal em discutir com um mudo.

"Tudo bem. Não tinha como você saber de qualquer forma. Trouxe comida." - nessa hora, um prato de comida tão apetitoso como o da primeira vez apareceu dentro da cela. Pude ver suas mãos brancas e magras como as de um esqueleto colocando o prato no chão.

- Obrigada. Não sei o que fiz para merecer sua bondade.

"Foi a primeira pessoa que me ajudou em toda a minha vida. Acho que eu que não mereço sua bondade." - eu estava com uma dificuldade enorme de entender o que ele escrevia, pois a letra era muito ruim. Pelo menos o homem não cometia nenhum erro grave de gramática.

- Você é um amor Nikolai, Espero que sejamos amigos. Sou Gretta, - estendi a mão para apertar a dele, esquecendo que estávamos separados por grades de metal. Ele riu - mas acredito que você já sabia disso.

"Sim, eu sabia. É sempre bom ter uma amiga."

- Ainda bem que te achei. As garotas daqui são insuportáveis.

"Concordo. Você é a única que parece ser legal."

- Você é tão fofo! Ainda diz que não sabe lidar muito bem com as palavras! - eu ouvi o homem rir de um jeito tímido. - Trabalha aqui a quanto tempo?

"Bom, desde que eu me lembro. Sou o mordomo pessoal do Klaus." - a vela quase apagou nesse momento. Levei um pequeno susto, fazendo Nikolai rir um pouco.

- Nossa, que honra!- debochei - Ele tão chato como parece?

"A gente se acostuma. Ele é um homem de modos um tanto peculiares."

- Como todos os milionários! Mas me diga, seus pedaços de papel não acabam nunca? - ri.

"Esse é o último. Não pensei que a nossa conversa fosse render muito. Mas Espero que a gente possa continuar esse assunto. Adeus, Gretta. Talvez amanhã."

- Tchau Nikolai.

Eu juntei todos os pedaços de papel em uma pequena pilha ao lado das grades. Uma pequena recordação da nossa conversa, que eu esperava ser a primeira de muitas.

Mas ele não voltou no dia seguinte. Por mais que a gente não se conhecesse muito bem, é sempre legal ter alguém para conversar, mas como sempre, ele me ajudou em um dia em me ignorou no outro. Talvez fosse algum tipo de lição ou castigo divino para eu parar de confiar nas pessoas tão facilmente. Vai saber.

A pulseira que Terence havia me dado no dia de sua partida estava começando a incomodar o meu braço. Tirei um pouco para aliviar a coçeira e fiquei observando a linda pulseira de flores do meu irmão. Assim como era a minha preferida, também era a dele e foi muito legal o fato de ele ter dado ela pra mim.

Aquele simples objeto despertava um sentimento de nostalgia no meu coração, da minha infância e da minha adolescência, antes de todos os problemas e complicações da vida adulta. Antes de casamentos arranjados e de bailes da alta sociedade.

Segurando aquela pulseira, eu podia voltar, nem que só por alguns minutos para a minha época de criança, onde eu era amada e cuidada pelas carinhosas mãos da minha vó. A única pessoa da minha vida que se preocupava comigo do jeito que minha mãe deveria se preocupar. Eu e Terence somos tão próximos porque somos os únicos dos irmãos que se lembram dela, Florence. Nós ficávamos em sua casa todos os dias, antes do doloroso acontecimento que marcou minha família para sempre.

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