Capítulo Seis

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Os outros dois dias passaram se arrastando, e a minha barriga clamava cada vez mais por comida. A fome era tanta que eu não pensava mas nem no Nikolai ou na minha família. Eu só queria sair daquele lugar fedorento e sujo o mais rápido possível.

Até que finalmente, depois de horas incontáveis de espera, pude ouvir os passos inconfundíveis de Frida vindo em direção a cela. A mulher andava meio desengonçada, e eu ficava me perguntando como ela conseguia equilibrar um corpo tão grande em pés tão pequenos. O barulho dos saltos antiquados que ela usava me despertaram da única soneca que eu tinha conseguido tirar.

Rapidamente, coloquei todos os papéis da conversa com Nikolai no bolso do avental e esperei jamanta abrir o cadeado que me separava do mundo exterior, ou melhor, da comida. Ela me arrastou pelo braço até o meu quarto, onde April dormia tranquilamente.

Através de um pequeno espelho em cima da cama da minha cega de quarto, pude me dar conta de meu estado deplorável. As olheiras estavam profundas como nunca antes em minha vida, meus lábios estavam rachados e roxos, meu cabelo estava desgrenhado e ressecado. O rubor que costumava ficar em minhas bochechas tinha desaparecido por completo. Pálida como nunca, eu havia ficado muito pior do que da primeira vez nas masmorras. Depois de eu passar um tempo me admirando horrorizada, April acordou e sentou na cama.

- Gretta? - a garota disse, bem baixinho com voz de sono.

- Sou eu sim. Acabei de chegar.

- Ótimo, estava ficando preocupada. Ninguém sobreviveu mais de três dias.

- Tive uma pequena ajuda. - dei um leve sorriso ao me lembrar do fantasma.

- Posso perguntar de quem foi? - ela disse.

- Só se estiver realmente interessada em saber.

- Então vou voltar a dormir. - riu e se deitou de novo.

April tinha se tornado o mais próximo possível de amiga pra mim em todo esse tempo que passei procurando Nikolai. Eu gostava do fato de a garota não ser nem um pouco curiosa, isso facilitava as coisas. Nosso pequeno diálogo até me fez esquecer um pouco da fome. Pra falar a verdade, já estava até me acostumando com ela. Eu sabia que só poderia comer mais tarde, na hora do café da manhã, que não iria demorar tanto para chegar, pois já era mais de três horas da madrugada.

Então, deitei na minha cama do beliche e fiquei olhando para o teto pensando na vida. Eu estava com saudade das minhas peças de Shakespeare. Acho que eu era a única pessoa que as lia por puro prazer, sem assistir no teatro ou atuar. ' A megera domada' e 'Sonho de uma noite de verão' eram as minhas preferidas e, mesmo eu não gostando muito de fantasia, a segunda me fazia rir bastante. Passava tardes inteiras viajando pelas obras bem dramáticas e trágicas de meu escritor preferido, na época em que eu era feliz e não sabia.

Rolei pelo duro colchão o resto da madrugada, tentando arranjar uma posição confortável para dormir o que, obviamente, não funcionou. Então, eu comecei a desenhar na parede com um pedaço de carvão que eu tinha encontrado enquanto limpava a cozinha um dia desses. Eram desenhos bem amadores e feios, mas bons para passar o tempo e esquecer nem que por um instante da fome.

Logo chegou a hora do café da manhã. Desci as escadas correndo e como tudo que eu podia, até não aguentar mais. As outras garotas ficaram me olhando como se eu fosse algum tipo de bicho mas eu não estava nem aí.

- Nunca imaginei que a riquinha comesse sem modos!

- Você é a Joyce, não é? A vadia que me mandou para a cela pela primeira vez?

- Depois de tanto tempo você ainda guarda ressentimentos? - ela disse, debochada.

- Eu sempre guardo, mas só de pessoas como você.

- Quer uma briga? - a garota arregaçou as mangas da camisa. E fez uma expressão de desafio. Todas as outras ficaram quietas.

- Você não vale a pena. Prefiro brigar com alguém à minha altura. E além do mais, se depender de mim, a próxima pessoa a estar naquela cela vai ser você.

- Está me ameaçando? - estávamos frente a frente, uma olhando nos olhos da outra. Eu podia ver a fúria em seu olhar. Eu não queria uma inimiga, acho que já tenho suficientes. Mas não pude evitar responder:

- Nunca. Sou um anjo. Um amorzinho.

Saí do refeitório e fui para a área que eu deveria limpar naquele dia, a área 6. Era uma das mais restritas da casa, pois era aonde o Sr.Kollantino recebia seus convidados à noite. Uma espécie de sala de reuniões.

Era um lugar lindo, acho que um dos mais belos da casa, pois tinha janela enormes que iam até o chão e deixavam a claridade do dia entrar. Nossa, como eu sentia falta do sol. A minha sorte, foi que eu fui designada exatamente para limpar essas janelas, me permitindo espiar um pouco sobre o que estava acontecendo lá fora.

Mas a única coisa que eu conseguia ver era o jardim, que não me trazia nenhuma lembrança boa e a floresta que cercava o castelo. Eu estava louca para ver pessoas, sempre fui uma garota muito social. Eu era convidada para as melhores festas com as pessoas mais populares de minha cidade. Bons tempos.

Depois de algumas horas limpando as janelas que não pareciam ter fim, eu senti alguém me puxar pelo braço até um canto de uma estante. Era o Nikolai.

- Você de no... - nessa hora, ele tapou minha boca com uma de suas mãos ossudas e me levou até uma escada em espiral que eu nunca tinha visto antes. Até que chegamos a um lugar mal iluminado mas aconchegante, o que Nikolai chama de lar.

Era um tipo de sótão enorme, que tinha diversos cacarecos espalhados por umas estantes empoeiradas feitas de madeira e várias cadeiras bem confortáveis. Também tinha uma cama de solteiro um pouco maior do que a normal e diversas partituras de piano coladas nas paredes e no teto. Eu me sentia bem naquele lugar.

- Mas e a Frida? - eu perguntei e ele começou a escrever em um de seus pedaços de papel.

"Já cuidei dela. E as outras garotas nem vão notar que você sumiu."

- Ótimo, não aguentava mais limpar nada. - nós rimos - Por que você não voltou naquele dia?

"Um pequeno imprevisto com o Sr.Kollantino. Me desculpe mesmo."

- Tudo bem. Eu sei como patrões podem ser insuportáveis às vezes. Eu já fui uma patroa por toda a minha vida. Mas... Eu queria que me contasse um pouco sobre você. Não sei nada sobre a sua vida.

"Ela não é nem um pouco interessante. Não me lembro de nada antes dos meus quinze anos mesmo."

- Nossa, que triste. - coloquei a mão em seu ombro.

"Tudo bem, eu já me conformei. Agora conte-me sobre a sua."

- Primeiro temos que dar um jeito nessa sua letra... Às vezes eu nem entendo o que você escreve garoto! - a gente riu.

"Ela é realmente muito feia mesmo. Temos que resolver isso logo."

- Com certeza, Nik. - ele fez uma expressão de confusão.

"Nik? Ninguém nunca me deu um apelido."

- Ótimo, é assim que você sabe que arranjou um amigo.

"Com apelidos?"

- Não. Quando alguém gosta o suficiente de você para lhe dar esse abraço. - eu o abracei com toda força e o carinho que eu podia. Acho que foi o primeiro que recebeu em muito tempo, porque ele parecia não saber como reagir. Naquele abraço, me senti consolada, pelo menos por algum tempo, de todos os meus problemas e minhas tristezas. Naquele abraço me senti, pela primeira vez desde que vim para o castelo, querida e indispensável. Tudo que eu precisava.

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