História do Halfling (Parte IV)

7 0 0
                                    

Era uma coisa que eu não entendia muito bem, mas eu devia ser o único dos sessenta e quatro que fora parar ali nos Sete Coliseus só com a roupa do corpo. Todo mundo tinha consigo alguma coisa que trouxera de casa, apesar de eu não fazer a menor ideia de como eles trouxeram. Caio, por exemplo, trouxera vários livros, quase todos de teologia, mas, de vez em quando, algo mais interessante – ou ainda mais chato.

Quando entrei em seu quarto, franzindo meu nariz perante o odor desagradável das dezenas de velas multicoloridas que estavam em pontos aleatórios do quarto dele, seus livros estavam empilhados, no canto onde ele sempre os deixava, e um deles estava aberto sobre a cama, exatamente na penúltima página. Ele morrera sem saber o final da história.

Porém, eu ia justamente me voltar para a pilha de livros e escolher quais eu queria emprestados – eu fazia questão de devolvê- los àquela pilha depois – quando, com o canto de meu olho, vi que um deles estava em cima da escrivaninha dele, escrivaninha esta que ficava no canto oposto à pilha de livros. Levemente surpreso, me virei para a escrivaninha e fui até ela. Eu já tinha vindo ali várias vezes antes, para conversar com Caio sobre as partes menos chatas da religião, e sabia que ele sempre deixava quase todos os seus livros empilhados naquele canto e, o que ele estivesse lendo, ele deixava em cima de sua cama, mas ele nunca deixava nenhum em cima de sua escrivaninha: lá, sempre haviam apenas folhas de pergaminho avulsas, preenchidas com dissertações tediosas e inúteis sobre a importância da fé ou qualquer coisa nesse sentido. Meu primeiro pensamento foi "Ele quis pôr a porcaria do livro em cima da porcaria da escrivaninha e ponto, o que pode haver de mais nisso?", mas, só por curiosiade, fui até lá, estiquei minha mão e arrastei o livro de cima da escrivaninha. Era um volume pequeno, encadernado no que me pareceu o couro branco de algum animal albino, e que tinha escrito em letras prateadas na capa: Diário.

Eu bem que tentei pensar que tinha mais o que fazer além de ficar lendo os diários dos outros, mas, na verdade, eu não tinha, não, e, além do mais, eu estava especialmente curioso naquela noite. Como eu não acreditava que os mortos pudessem voltar, muito menos para impedir os vivos de ler seus diários, abri o livrinho e comecei à ver se Caio era capaz de escrever algo mais interessante do que aqueles textos suicidantemente chatos que preenchiam o resto de sua escrivaninha.

Mas, aparentemente, ele não era. Aquele diário contava tudo o que acontecera desde que ele chegara aos Sete Coliseus (pelo que estava escrito ali, um dia antes de mim), o que, na realidade, significava nada. Sua estadia por ali, aparentemente, havia sido ainda mais tediosa que a minha, e o estilo dele de escrever não ajudava muito – ele conseguiu deixar até mesmo a narração de sua luta contra o orc Olur, na primeira fase do torneio, entediante. Não tardei à começar à apenas passar os olhos por cima das páginas e então virá- las, procurando por algo menos chato de se ler, quando cheguei às últimas páginas preenchidas, que, pela data, haviam sido escritas por ele hoje de manhã. Tais páginas eram as mais legíveis de todo aquele diário (por serem mais interessantes, não por a letra dele ter ficado melhor, porque esta sempre fora um garrancho irreparável):

Acordei hoje pensando em minha conversa com o halfling Paladin, meu companheiro de cárcere e de debates, conversa esta realizada na tarde de ontem. Falamos muito sobre sua vida antes de chegar aos Sete Coliseus, de como ele fora um sagaz ladino, enganando e roubando para ter o que comer, pois os deuses não lhe davam outra maneira de sobreviver. Rimos bastante de suas aventuras, e tal conversa me levou à refletir sobre o que ele mesmo me dissera, no instante em que o conheci: quem pensa que os halflings são todos dóceis e amigáveis é porque nunca conheceu halfling algum. Eles podem muito bem ser espertos, sagazes, calculistas, e podem usar tais talentos para o bem ou para o mal.

A Coroa da SabedoriaOnde histórias criam vida. Descubra agora