História do Halfling (Parte V)

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Era uma câmara com os mesmos comprimento e largura da arena lá em cima, talvez pouco menor – o que certamente era compensado pela altura de seu teto: um gigante poderia ficar confortavelmente de pé ali dentro. Creio que não precise dizer que as paredes, o chão e o teto eram daquele clássico mármore feio e sujo, nem que o lugar estava sendo inundado pela água que entrava pelo buraco que meu pingente de gelo gigante escavara. Na verdade, quando eu cheguei ali, a água já estava quase na minha cintura – o que não é tanta coisa assim, mas, em todo caso, já era o suficiente para molhar as pernas das muitas cadeiras de madeira que ali haviam, bem como da mesa elevada que se encontrava numa das quatro paredes, mesa esta onde eu deduzia que costumava se sentar o líder dos militares que ali se reuniam – e eu sabia muito bem que líder era este: Meriadoc, quem mais?

Atrás da mesa, uma infinidade de papeis estava colada na parede, indo do chão ao teto, e, ali, de tudo se via: mapas, textos, gráficos, tabelas e até ilustrações, com explicações dos detalhes, de armas e daqueles que as manejavam. Tive vontade de ir até lá para olhar aquilo tudo com mais atenção, mas, então, me lembrei que havia algo mais que eu precisava fazer, e olhei para o chão inundado daquele lugar – mais precisamente, para o ponto onde a ponta do pingente de gelo gigante perfurava o chão daquela base militar.

E ali estava Viridans – ou, melhor, o que sobrara dele, depois de ter sido, sem dúvida, o tritão que mais sofrera, dentre todos os de sua raça, desde que esta surgiu no mundo. O pingente havia atingido- o em cheio na barriga, rasgando- o em dois e jogando metade de suas tripas para fora de seu corpo, mas ambas as partes haviam sido trazidas para o subsolo de Neró. O que pareciam ser dois troncos de árvore finos feitos de carne e interligados por mais um pouco de carne, reconheci (não sem um certo esforço) como suas pernas, agora certamente mortas e inúteis. Do outro lado do pingente, estava mergulhado na água o que parecia um bife gigante, talvez com o meu peso, ao qual estavam ligados, por pequenas e finas fatias de carne, uma bola de carne irregular e um terceiro tronco de carne, menor que os outros dois. Era um milagre aquilo ainda estar vivo, um milagre que não duraria muito tempo.

Então, tirando coragem – muita coragem – não sei de onde, mantive o que estava dentro de meu estômago devidamente dentro de meu estômago e avancei para a massa de carne que um dia fora um tritão, mas que nunca voltaria a sê- lo, minhas pernas se esforçado para dar passos naquela água cada vez mais alta – e mais vermelha. Não preciso dizer que aquela era uma visão hedionda e horrível, mas eu tinha que encará- la. Pelo meu próprio bem.

Respirei fundo (e descobri que o corpo de Viridans piorava o cheiro já ruim daquela sala), fechei os olhos e avancei mais um pouco, e toquei de leve a grande massa carnosa, tão úmida, molenga e inconsistente que me deu ainda mais ânsias de vômito. Ainda bem que precisei tocá- la apenas por alguns segundos para transmitir para ela o encantamento que a manteria viva por mais alguns minutos, pois eu não teria suportado ficar tocando aquilo por muito mais tempo. Assim que tive a oportunidade, virei meu olhar para alguma direção onde a visão fosse menos hedionda – ou seja, qualquer direção –, busquei com o olhar, e encontrei, a mesa atrás da qual estavam os papéis, e fui para lá – no caminho, reparando melhor naquele lugar.

A arraia que havia me trazido para ali nadava alegremente por entre as centenas – pois eram centenas – de cadeiras que ali estavam, alienada da importância que aquele lugar ali tinha, para mim e para outros... (deixa eu fazer as contas nos dedos, aqui) vinte e oito gladiadores. Uma coisa que me perguntei foi como era que eu conseguia ver em um lugar no subterrâneo, onde a luz do sol não chegava, Mas a resposta não demorou a vir: quando reparei melhor no teto, vi que nele estavam pendurados os maiores candelabros que eu alguma vez vira, com diâmetro maior do que a altura de Natan, sendo que as correntes que os ligavam ao teto não eram muito menores que isso. Eram feitos do mesmo metal azul- escuro do qual era feito o hexágono voador de Meriadoc, e dessa mesmíssima cor era a luz de suas velas. Eram numerosos, e estavam espalhados pelo teto de maneira completamente bagunçada e aleatória, deixando alguns cantos daquele lugar escuros demais e outros claros demais. Por sorte, a papelada colada atrás da mesa era um dos pontos claros demais. Continuei avançando para lá, e percebi as várias portas nas paredes daquela galeria. Com certeza, era por elas que entravam quem quer que frequentasse aquele lugar, e elas deveriam levar a túneis ainda mais profundamente enterrados no solo do que os que nós, gladiadores, usamos para ir de um Coliseu a outro – e esses túneis deveriam dar em entradas para aquela galeria, que, para mim, poderiam muito bem servir como saídas. Por um momento, pensei em dar essa finalidade para elas agora mesmo, e fugir de uma vez dos Sete Coliseus. Na mesma hora, balancei minha cabeça e varri dela essa ideia. Ainda haviam mais vinte e oito almas a serem salvas, e eu não ficaria bem comigo mesmo se não salvasse pelo menos algumas delas.

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