Doze

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               A campainha e o seu barulho deveras alto faz-me abrir os olhos e perceber que estive a dormir praticamente a tarde toda em cima dos livros de história, ainda abertos. Esfrego os olhos com a palma das mãos e dirijo-me até às escadas para saber quem é que me acordou e o porquê. Mas, assim que chego ao topo das escadas, logo volto para trás ao ver Harry ali na porta que me relembrou do nosso pequeno e por mim designado encontro de hoje. 

               Os seguintes minutos foram indescritíveis. Entre tentar que as calças subam e procurar o meu telemóvel foi tudo uma confusão, mas no final aqui estou eu, pronta para ir no encontro que sempre esperei ter quando era mais nova. 

              Ao descer as escadas, consigo ver Harry a falar com a minha mãe, esse ato sendo interrompido quando o seu olhar é focado na minha presença, fazendo um sorriso crescer na sua cara. Levo alguns segundos para observar como ele se encontrava vestido, apenas uma roupa casual. As suas mãos atrás de suas costas escondem algo que não consigo ver devido ao meu ângulo de visão, mas que logo ganha a minha curiosidade. Finalmente, olho para a sua cara e murmuro um "olá" com o qual ele retribui.

-Desculpa, eu adormeci enquanto estava a estudar.- digo-lhe e este abana a cabeça enquanto sorri.

-Não precisas de pedir desculpas, eu próprio faria isso se tivesse de estudar.- diz e sinto um enorme alívio por ele não se ter chateado.

-Então, vamos?- pergunto e saio pela porta seguida por ele.

-Divirtam-se - ainda oiço a minha mãe dizer antes de a porta se fechar atrás de nós.

                Sigo Harry até ao seu carro onde uma melodia por mim conhecida  passa na rádio. Olho para o rádio e, embora a minha vontade de aumentar o volume ser enorme não sabia como aquilo funcionava, deixando-me encostar no banco enquanto aprecio aquela música e a pessoa ali ao meu lado. Ele está focado na estrada, mas consigo perceber que também aprecia esta música, pois uma vez ou outra deixa escapar uma palavra ou outra da música num leve murmuro.

              A viagem até ao pequeno centro comercial foi curta, apenas com o barulho da rádio como companhia. Harry não meteu conversa e eu permaneci calada encostada ao banco do confortável carro. Assim que chegámos, ambos saímos do carro, mas Harry ainda vai ao porta-bagagens buscar algo. Fiquei a olhar para ele, à espera de poder avançar para o nosso destino. Aquilo que agora está nas mãos de Harry colocou um sorriso único na minha cara. Uma flor, uma rosa para ser exata, talvez aquilo que escondia atrás das costas quando estava em minha casa.

-Não sei qual a tua flor favorita, mas como ninguém odeia rosas comprei-te esta.- diz ao estender-me um embrulho com uma única rosa vermelha lá dentro.

-Obrigada Harry, é linda.- digo enquanto olho para aquele presente nas minhas mãos. -Cravos, esses são as minhas flores favoritas.- digo, já olhando para ele que apenas sorria.

-Isso é incomum, alguém gostar tanto de cravos.

-É uma longa história.

-Nós temos muito tempo pela frente, Elisabeth.

               Então contei-lhe. Contei-lhe sobre o meu pai, que trazia, na primavera, um cravo todos os dias à minha mãe com um papel agarrado a dizer uma razão porque a ama, sempre diferente. Contei-lhe sobre ter crescido num apartamento onde cheiro pela manhã eram desses cravos, misturado com o cheiro de bacon queimado. Contei-lhe sobre ter sido a flor que o meu pai me deu antes de se ir embora, tal como lhe contei que ele manda sempre um cravo, junto com uma carta, sempre que não está perto de mim e da minha mãe. Contei-lhe das minhas idas à florista,com os meus pais quando era pequena,  e ficar sempre ao lado dos cravos, como se já tivesse escolhido a flor que queria. Finalmente, contei-lhe que o cravo é a minha única lembrança do meu pai, que à muito não nos escreve, e que todos os anos florescem no meu jardim lembrando-me que ainda à esperança de ele voltar. 

              Harry ouvia-me com atenção enquanto andamos em direção ao cinema. Falar com ele sempre me faz sentir bem. Estas pequenas histórias que significam tanto para mim estão finalmente a ser ouvidas por alguém que não seja a minha mãe. E eu gosto disso. 

            Ele sorri-me quando acabo a história, dizendo um "nunca me irei esquecer" no final. Eu sorri-lhe também. E ficamos assim, num silêncio ensurdecedor, a olhar um para o outro. Eu olhava para os seus olhos verde-água e ele... não sei bem. Pode estar a olhar para os meus olhos como poderá estar a olhar para os meus lábios, é difícil identificar. Ficamos assim por minutos, até eu interromper dizendo que poderemos perder a sessão de cinema, ao qual ele responde "não importa, apenas quero passar tempo contigo".

              Combinamos ir ver um filme de comédia, ele comprou os bilhetes eu comprei as pipocas para nós dividirmos. Durante o filme não houve nenhuma troca de olhares entre nós, nem sequer toques acidentais ao tirar as pipocas. Eu apenas via o filme sossegada, rindo-me das partes que achava piada e fazendo piadas interiormente sobre o que se estava a passar no filme. Nada mais aconteceu. No final, quando as luzes se acenderam e nós nos levantámos, olhei para ele e soltei um riso demasiado alto devido às pipocas presas no seu cabelo. Harry apenas revirou os olhos, tirou as pipocas que viu e algumas que disse que ele tinha e fomos embora. 

              Fomos jantar a um restaurante de fast-food no centro comercial. Harry conta-me que é a primeira vez em meses que vem a um deste e eu digo o mesmo. Comemos em silêncio, por vezes Harry tirava-me batatas, mas eu apenas olhava para ele e sorria com a cara que ele estava a fazer. Fui a primeira a acabar, mas Harry não demorou muito até pôr a sua última batata na boca.

-Antes de te levar a casa, tenho um sítio para te mostrar.- diz e eu assinto, ficando curiosa com esse lugar.

               Mais uma vez, a viagem foi silenciosa. A rádio estava ligada, mas agora apenas passava anúncios. Harry está, mais uma vez, concentrado na estrada enquanto eu olho pela janela para saber onde vamos.  As casas começam a desaparecer à frente, sendo sinal de estarmos a sair da cidade. A minha curiosidade aumenta, e quando o carro pára saiu logo deste e observo o local. Aquilo que se consegue ver desta altitude, que nem me apercebi de acontecer, são as luzes, ao longe, da cidade onde outrora estávamos. Fico a olhar para a vista, encantada com aquilo que posso ver, nem notando na presença de Harry, agora sentado no chão ao meu lado. Sento-me ao seu lado após ele dar-me um pequeno sinal na  minha perna, mas nunca retirando o meu foco da tão maravilhosa vista para toda aquela cidade.

-Descobri este lugar quando vinha para cá, um pouco antes de te conhecer.

-É tão... maravilhoso.- digo, quase não encontrado a a palavra correta para descrever o que via.

-Não tão maravilhoso como a cascata, mas sempre é uma vista linda de se ver.

-Concordo. 

            Passado pouco tempo, deito-me sobre as sua pernas devido ao meu cansaço. Ele nada me diz, apenas começa a mexer nos meus cabelos enquanto continua a olhar em frente. Pergunto-me como ele cá chegou e o que fez ir embora. Como era a sua vida e se algo mudou desde então. Quero saber a sua história, do início até ao fim. 

-Conta-me a tua história.- murmuro e ele logo olha para mim , sem nunca tirar os seus dedos de entre os meus cabelos.

             E ele contou-me. Contou-me que tem uma irmã, que à muito tem saudades. Contou-me que, durante o secundário, quase todas as raparigas da escola tinha uma caída por ele. Contou-me sobre os dias de chuva e de neve na sua casa significavam festa com chocolate quente ao pé da lareira. Contou-me sobre o pôr-do-sol que via nos dias de verão da sua varanda. Contou-me sobre o seu vício em jogos de tabuleiro e como ele é o melhor que existia. Contou-me sobre a sua mãe e como ele a considerava uma heroína. E por fim, contou-me sobre como veio cá parar. Contou-me sobre como não estava feliz naquela altura, naquela cidade, e como se sentia o único a não ter a vida que queria. Contou-me que pegou no carro e apenas veio para sul à procura de algo que o alegra-se. E encontrou esse algo.

-Se já encontraste aquilo que te faz feliz, já podes ir ter com a tua família, voltar a casa e continuar a ser feliz. - digo, mas ele abana a cabeça negativamente.

-Quando tu começas a gostar de algo e esse algo te faz feliz, tu nunca o irás querer perder e vais ter de ficar ao seu lado até ao fim.

             Calei-me. Mais palavras não irão ser precisas para saber o quanto Harry tem razão. Afinal, eu também não o quero perder. 


Waterfall |h.s|Onde histórias criam vida. Descubra agora