Epílogo

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Minha querida Eleanor,

Talvez esteja se perguntando o que está fazendo com esse pedaço de papel nas mãos. Talvez esteja se perguntando qual fora a minha intensão em deixar para você esta falha carta no meu testamento. Que tipo de avó eu sou afinal?  Uma louca? Desajuizada? Bom, não preciso responder essas perguntas, não é mesmo? Nunca fui das avós mais tradicionais, vocês sabem disso. Esse meu jeito intenso tem uma certa explicação. Uns diriam que são os astros, outros hormônios, mas nenhum desses pseudointelectuais acertariam a genuinidade dessa minha personalidade tão marcante. 

Eu cresci adorando histórias, minha neta. E as pessoas adoravam me entreter com as mais variadas e divertidas mentiras ou verdades saídas de sua imaginação. Cresci rodeada por gente de mente fértil e fogo de vida. Talvez não saiba do que estou falando, ou talvez saiba até mais que eu, afinal, não tenho conhecimento de suas ternas amizades. Bom, voltando às histórias, não sei se o seu pai lhe contou, mas eu sou fruto de uma história de amor, Eleanor. Uma vívida e dolorosa história de amor. 

Seus bisavós eram pessoas reais, com problemas constantes e crises existenciais quase que frequentes. Quando era bem nova, minha mãe me deixou com meu pai para me livrar de uma tal megera de outra nacionalidade, ela havia se casado com um americano e sua família era contra isso. Deve estar confusa agora, Eleanor, pois eu mesmo, linhas acima, disse que havia nascido de uma história de amor. Pois então, desde cedo eu aprendi com os meus pais que nada é fácil na vida real. As coisas nas tv's e livros são dignas de aplausos de tão perfeitas e regradas. Me enchia os olhos ver a foto de um tão prezado artista que eu adorava, queria tanto ter a vida perfeita dele. Mas aquilo não passava de ilusão, as coisas não são assim, não é?

Pois bem, meus pais, eles eram o casal mais apaixonado que eu vi na vida. Até o último instante de vida da minha mãe, meu pai esteve segurando sua mão e lhe cantando suas músicas preferidas. Certa vez, minha tia Patrícia me falou que meu pai já fora muito desprezado por minha mãe num passado. Ele a fizera muito mal e ela o deixara, claro, com seus motivos pessoais. Anos se passaram e mesmo com todo o esforço que tentava fazer, minha mãezinha nunca esqueceu meu pai, este que era conhecido como Canalha. Sabe, Eleanor, é muito difícil eu pensar em meu pai e imaginar alguém sem escrúpulos ou amor por alguém, ele sempre se mostrara tão atencioso e dedicado comigo e meus irmãos que uma imagem ruim parece heresia de minha parte para com ele.

Então, voltando, depois de minha mãe deixar meu pai, eles passaram anos separados. Segundo meu tio Rafael, ele que teve uma paixonite por mamãe quando mais moço, o reencontro dos dois fora algo de encher os olhos de lágrimas. Eu bem queria ter visto esse momento, bom, praticamente eu vi, pois foi pouco depois desse reencontro que eu fui concebida. Mamãe já estava noiva do tal americano, porém seus sentimentos por meu pai eram maiores que tudo e assim ela acabou nos braços dele de novo, e assim, por brincadeira do destino, ela engravidou.

Ótimo, você deve estar pensando, assim temos um final feliz. Sinto em lhe dizer, mocinha, mas as grandes histórias de amor não são feitas de momentos felizes, pode perguntar ao Shakespeare. Ao descobrir a gravidez e com a ciência de que meu pai não estava pronto para se tornar um pai, minha mãe fez a pior escolha possível, resolveu seguir em frente e continuar com o tal gringo.  Nada contra estrangeiros, afinal, meu primeiro marido fora um italiano lindo e bronzeado, pena que era demasiado ciumento para mim. Mas ao ouvir as histórias do passado dos meus pais eu tento entender a cabeça de mamãe e não consigo compreender o medo do amor que ela tinha pelo Canalha. Luba, o meu tio preferido, por vezes comentou que Ana, mamãe, se sentia acoada com o futuro. O que ela poderia esperar ao lado de uma pessoa como o papai? Ela o amava e até chegou a se odiar por isso. Ta vendo de onde eu puxei esse meu jeito "avó descolada e existencialista"?

Bom, quando eu nasci, depois de pouco tempo, fui deixada aos braços de meu pai. Ele que namorava uma bruxa - essa foi a palavra que tia Pathy usou para me falar da tal namorada - Era uma mulher muito bonita porém não valia um só centavo. Nessa época meu tio Luba descobriu que tinha câncer  e mamãe, com todo seu jeito desesperado e altruísta, abandonou o marido gringo e voltou para o Brasil. Novamente meus pais se encontraram e dessa vez pararam de nadar contra a maré e mesmo com algumas dificuldades ficaram juntos. 

Eleanor, eu passei a vida toda vendo o sorriso aberto do meu pai e escutando os conselhos melosos de minha mãe. Ela era uma grande fã das obras de Woody Allen então nunca consegui escapar de seu extremo questionamento pessoal. Eleanor, eu nunca vi meu pai chorar, muito menos minha mãe. Eles passaram o resto da vida criando os filhos para serem boas pessoas, e foi isso que aconteceu. Posso não ter sido a melhor das esposas, afinal casei quatro vezes, mas a verdade é que existem pessoas e pessoas. Nunca consegui olhar para cara de um marido meu por mais de 10 anos e não ficar enjoada.

O ser humano é feito de diferenças. Não existe um só igual ao outro. Possuímos sonhos e esperanças diversos. Temo que não tenha lhe conhecido bem, Eleanor. Mesmo eu tendo um único filho e uma única neta, eu não lhe conheci bem. Passei a minha vida toda muito preocupada com a minha carreira musical para lhe conhecer bem. Mas não tenha ressentimentos, eu lhe deixei o meu bem mais precioso de todos. Eu lhe deixei algo que venho montando e guardando há anos.

Como eu lhe disse, eu nasci de uma história de amor. E isso não é algo que possa ser deixado de lado, eu quero que essa história fique eternizada pelos anos. Sabe aqueles amores que corriam pelos jardins e marcavam seus nomes dentro de corações em grande árvores?  Então, eu quero algo mais do que isso, e preciso que você tome as providências para esse meu desejo se concretizar.

Junto com a carta você recebeu uma caixa de madeira avermelhada. Abra-a com cuidado, pois essa caixa tem mais de oitenta anos, lá dentro você verá um volumoso caderno gradeado todo cheio de rabiscos e pequenos textos. Todos esses rabiscos são as histórias que eu escutei sobre a vida dos meus pais. Eu anotei cada passagem e momento que alguém deixava escapar perto de mim. Eleanor, minha neta, você tem um legado e com esse legado você tem uma obrigação, não deixe a história dos meus pais morrer. Pegue as minhas anotações e as reescreva, eu sei que você é boa na escrita. As reescreva e dê forma e cor aos fatos, crie algo e publique esse algo. Transforme a história de amor dos meus pais em um livro. Faça o mundo conhecer Ana e o Canalha. Faça-os ser eternizado em suas palavras. 

Sinto muito que esteja recebendo esse pedido só apos a minha morte.

Sei que parece inapropriado, mas perdoe essa pobre velha que te ama muito.

Faça o que lhe pedi, Eleanor, faça em minha memória. É o meu último desejo. Eu quero que você escreva a história dos meus pais e a chame de Rock'N'Roll Sugar Darling...

É o meu último desejo, Eleanor.

Amorosamente, de sua velha avó, 

Passarinho.







FIM

MonoMania - Júlio CocieloOnde histórias criam vida. Descubra agora