Elisabeth POV

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- E agora? - Daniel me pergunta. - Quer planejar o que vamos fazer ou deixamos para amanhã?

- Vamos fazer assim: amanhã vamos falar com o diretor e depois vamos mandar fazer óculos mais fortes. Mas hoje vamos assistir um filme e descansar. O que acha?

- De acordo. Estou exausto.

Ele me envolveu em seus braços e sentamos na sala com os meninos, bem perto da televisão para ele poder ver bem as imagens. Ele me colocou no colo dele e eu me acomodei em seus braços. Eu assisti o começo de Kung Fu Panda 3, mas acabei dormindo em algum ponto. Eu gosto muito desse filme, mas eu estava cansada e já assistimos várias vez então eu já sei a história. Acordei com meu travesseiro - Daniel - se mexendo embaixo de mim em uma gargalhada. Estava em uma cena em que o super-vilão chega do mundo dos espíritos depois de muitos e muitos anos com seus servos verdes sinistros do mal e começa todo sério um discurso de apresentação para os heróis e diz algo como "Então esse é o Palácio de Jade... tudo que Uguwei constriu..." E depois de alguns segundos de silêncio ele diz a frase que sempre nos faz rir até perder o fôlego. "...bonito... porém cafona."  Talvez não seja tão engraçado, mas nós amamos isso. Até mesmo agora que acabei de acordar me juntei a eles.

- Me desculpe por te acordar... - Daniel disse tentando respirar entre as gargalhadas. - Eu tentei não me mexer muito... Mas... - E ele começou a rir de novo.

Eu que já estava rindo respondi:

- Tudo bem... - parei tentando puxar o ar para os meus pulmões. - Valeu a pena.

Depois de um tempo paramos para recuperando o fôlego só para não muito mais tarde rir de novo com outra parte engraçada do filme. Eu não dormi mais.

Quando terminou colocamos a piza no forno e enquanto esperávamos ficar pronta meus pais ligaram. Meu pai estava no hotel e tinha tudo um bom dia. O nome dele é Benjamin Kissinger. Ele é um advogado muito bom e requisitado. A todo tempo grandes empresas e pessoas famosas pedem para ele assumir o caso delas, mas ele gosta mesmo de pegar casos de pessoas que precisam mesmo de ajuda e muitas vezes não podem pagar um advogado. Eu fico muito orgulhosa, mas algumas vezes isso não é tão legal porque o mantêm fora da cidade por muito tempo. Ele disse que sentia muito sobre Daniel e percebi sua voz tremer quando falou. Daniel é como um filho para ele é essa foi uma notícia pesada.

Minha mãe propriamente não ligou, mas uma enfermeira ligou a pedido dela para avisar que a cirurgia iria demorar mais do que o previsto e que ela só voltaria amanhã. O nome dela é Rachel Kissinger. Minha mãe é neuro-cirurgiã e muitas vezes é chamada sem aviso prévio e sem hora para voltar. Acho que a maior parte das pessoas não pensam o quanto é difícil, não só para o paciente e para a família dele mas também para o médico e sua família. Tantas vezes pessoas que tiveram a vida salva pela minha mãe nem mesmo agradeceram e depois ainda criticaram nossa família por termos uma "vida fácil" já que nunca passamos por necessidade nem podemos ser considerados pobres. Eles desconsideram o tanto que ela faz. Por vezes passa dias seguidos na mesa de cirurgia mal parando para comer e continuar firme, dias longe dos filhos para depois quando voltar para casa não poder aproveitar o tempo conosco porque está exausta e precisa dormir. Desconsideram que ela costuma tomar no mínimo quatro remédios por dia para agüentar a dor de cabeça e a dor no corpo. Eu mesma já dei algumas vezes injeções para dor nela. Eu passei mal depois disso com a idéia de ter enfiado uma agulha no pescoço dela e injetado um líquido vermelho no local, mas ela já está acostumada com isso. Agora ela só pede para meu irmão aplicar, porque ele é bom e não fica passando mal depois. Mas existem também aquelas pessoas que ficam agradecidas. Inclusive algumas mães de pacientes dela cuidavam de nós algumas vezes quando nenhum dos nossos pais poderiam ficar em casa e ainda éramos muito pequenos. Minha mãe fazia questão de pagar pelo tempo, mas algumas vezes não insistia muito porque algumas se sentiriam ofendidas por isso uma vez que iam de bom grado, normalmente aquelas que não possuíam plano de saúde nem poderiam pagar minha mãe, e ainda assim ela fez o serviço de graça. Mas ela não saberia dizer quais eram esses pacientes que atendeu de graça porque ela não se importava realmente. Nem com o dinheiro e nem mesmo com a gratidão muitas vezes. Ela fica imensamente feliz quando as pessoas ficam gratas, mas não fica brava com aqueles que não agradecem ou são rudes. Muitas vezes triste mas não com raiva. Ela ama o trabalho dela porque pode ajudar as pessoas com ele. Ela ama cada um de seus pacientes como se fossem da família, por isso agüenta até mesmo alguns abusos que acho que não deveria. Ela não tem uma saúde muito forte, sempre foi muito magrinha e já teve inclusive um câncer benigno no cérebro que mesmo tendo passado a enfraqueceu um pouco.

A mãe de Daniel se chama Rebeca Schaefer. Ela é oncologista e passa muito tempo trabalhando. Essa é uma profissão muito difícil, especialmente pela quantidade de pacientes que morrem. A saúde dela é mais forte que a de minha mãe e trabalho dela não exige tanto esforço físico, mas ela fica mais afetada que minha mãe, porque o psicológico é mais difícil de suportar que o físico. Ela tem um pouco de medo de deixar as emoções escaparem e de se aproximar das pessoas. Eu posso imaginar como hoje foi difícil para ela. Minha mãe e ela são amigas desde a adolescência e algumas vezes quando eu era menor e elas achavam que eu não entendia o que estavam falando ouvi as confissões que faziam uma para a outra do medo que tinham de perder alguém próximo e o quanto era horrível ver tantos morrerem sem que nada que fizessem adiantasse. Elas tinham muito medo de um dia algo ruim acontecesse conosco e mesmo tendo resolvido o problema de tantas outras pessoas serem incapazes de concertar as coisas. E foi isso que aconteceu hoje. Aposto que ela não tinha nenhuma reunião hoje e se tinha cancelou. Que foi para sua sala de consultório que não deixava o som escapar, e chorou, andou pela sala despenteando seus lindos cabelos castanho escuro e gritando em desespero. Aposto que depois de muito tempo caiu exausta sobre seus pés muito rouca e passou a chorar baixinho. Eu já vi ela fazer isso antes. Não no consultório. Em casa. Quando ela recebeu a notícia da morte de sua irmã mais nova. Câncer. Ela fez a mesma cara que vi nela hoje enquanto abraçava Daniel. Não dei muita atenção no momento porque estava ocupada com ele, mas eu pude perceber. Ela estava chorando como se tudo houvesse acabado, como uma mulher arrasada. Como se desejasse poder dar seus olhos para Daniel. Se culpando por ser ele e não ela. Mas ela ficaria pior. Aquilo não se comparava ao choro que teria quando estivesse sozinha.

O pai dele é Matthew Schaefer. Ele é o dono de uma enorme empresa de tecnologia. Eu não saberia dizer o que é, mesmo já tendo passado muitas tardes lá. Ele tem muito o que administrar, pessoas para treinar e tecnologia nova para desenvolver e aprovar, e passa tanto tempo fora quanto nossas mães e meu pai. Ele deve ter se sentido como a esposa se sentiu. Especialmente culpado por não poder proteger o filho disso dessa vez. Mas ele era forte. Nunca vi uma pessoa tão forte em todos os sentidos como ele é. Quando era pequeno assim como meu pai era muito pobre. A mãe morreu muito cedo de exaustão e o pai era um beberão, então com 7 anos teve que assumir a responsabilidade de sustentar os quatro irmãos, uma vez que os mais velhos resolveram seguir o exemplo do pai. Ele conseguiu sustentar todos e ainda conseguiu fazer com que os dois mais novos também fossem bem sucedidos na vida. Os dois mais velhos tinham empregos em uma de suas firmas e ele estava sempre se esforçando, sendo até hoje bem sucedido, para mantê-los longe das bebidas. Ele era um porto seguro para as emoções de Rebeca. Estou certa também que hoje ele deixou que ela tivesse seu momento sozinha no consultório, mas logo chegou para consola-la. Sabia que se estivesse lá ela iria guardar o desespero para si é não ficaria bem. Mas quando ela estivesse vazia de toda a raiva ele iria entrar e enche-la de consolo e amor.

Do jeito que eu falei parece que tudo é sempre um desastre, que  nunca vemos nossos pais e que poderíamos tomar para nós o título do livro "Desventuras em Série", mas não é sempre assim. Não somos as famílias perfeitas que muitas pessoas acham que somos, mas na grande parte do tempo estamos quase lá. Não da forma que eles imaginam, mas tudo costuma dar certo a maior parte do tempo. Nossos pais tiram férias sempre que podem e passamos elas todas juntos. Mesmo ocupados eles se esforçam e passam mais tempo conosco que muitos pais que trabalham menos. Temos muitos momentos bons. Mas faz algumas semanas que eles não conseguem sair do trabalho e ainda agora descobrimos que Daniel está muito rapidamente ficando cego e não há nada que possamos fazer não só para recuperar a visão perdida, mas também nada para impedir que o processo continue , e agora é difícil ver as coisas boas.

Eu sei que as coisas vão ficar bem. Vamos ficar juntos e com a ajuda de Deus isso é o suficiente. Sei que alguma hora tudo vai melhorar. E eu mal posso esperar para que essa hora chegue.

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