As leis

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A frustração e raiva fizeram Alexandra sentar junto ao enorme salgueiro e chorar. Ela nunca foi do tipo que se desmancha em lágrimas por qualquer motivo, mas aquela discussão idiota a atingiu mais do que pensava. Seu clã sempre viveu a margem da sociedade comum, e sempre sofreram preconceitos e passaram por diversos tipos de deboche, e ela nunca se importou o mínimo, isso nunca a incomodou ou atingiu. Ela conhecia histórias de pessoas que sucumbiram e deixaram o clã, esses eram os exilados. Ninguém era obrigado a pertencer ao clã, mas uma vez que o deixasse você jamais poderia voltar, e jamais poderia ter contato outra vez com membros do clã. Deixar o clã, era abandonar sua família, e suas raízes, era renegar seu povo, e para eles isso não tinha perdão. Certa vez passaram por uma cidade na França, onde conheceu uma adorável senhora, já de certa idade, viúva, sem filhos e dona de uma floricultura.  Ela começou a trabalhar ajudando esta senhora em sua floricultura, e ela sempre perguntava, de maneira muito sutil, coisas sobre seu clã, ela achava estranho uma pepi* tão interessada nos costumes de seu clã, e um dia perguntou a esta senhora o motivo de tanta curiosidade, a senhora apenas sorriu, e disse que gostava de conhecer as histórias de grupos tribais, que era uma espécie de pesquisa antropológica. Alexandra, muito inocente e animada pela possibilidade de fazer parte de uma pesquisa, comentou isso no jantar com seus pais, e seu pai perguntou o nome da senhora a Alexandra, ela disse que se chamava Amélie Dubois. Aparentemente seu pai não reconheceu o nome em questão, mas ficou calado e pensativo depois disso. No dia seguinte, ao sentar para tomar o café recebeu a ordem de nunca mais voltar àquela floricultura, e que trabalharia com a mãe nas tapeçarias. Ela não entendeu e questionou, recebendo como resposta, apenas uma reprimenda de que não era assunto pra ela. Porém, curiosa até os ossos deixou passar uns dias e voltou a casa de madame Amélie. Ao que parecia a mulher estava muito surpresa ao vê-la ali novamente, mas mandou ela entrar mesmo assim. Alexandra achou que estava preparada para ouvir de tudo, mas se enganou. Amélie era uma exilada, uma desertora. Abandonou o clã e seus costumes aos 16 anos pois não queria se casar, nem com seu prometido, nem com ninguém, queria ser livre para tomar suas decisões. Isso, na época em que foi, e aos olhos do chefe do clã era uma loucura, e achando que se tratava apenas do capricho de uma menina, colocou-a de castigo. Isso porém só fez ascender ainda mais a rebeldia dela. Por fim, ao se ver forçada a casar, ela fugiu, na noite do casamento. O chefe do clã, que também era seu pai a encontrou alguns dias depois, e fez a seguinte oferta: humilhação pública, através de castigo físico, aplicado diante de todos os membros do clã, e voltar humildemente ao marido, ou exílio. Durante toda uma noite ela não dormiu, pensando no que isso significaria, mas optou pelo exílio. Ela disse a Alexandra que apesar da vida não ser fácil, ela não se arrependia, que passou fome e frio, que fez coisas das quais se envergonhava para sobreviver, e que sentia muita falta de sua família, de seu clã. Com o tempo, e muita luta, ela se estabeleceu, começou trabalhando como ajudante na floricultura que hoje ela era dona. Depois, conheceu seu falecido marido Roger Dubois, a quem ela amou com todas as forças, e com quem ela viveu plena e feliz por 45 anos. Não tiveram filhos, mas tiveram um ao outro, e para ela era o mais importante.
Disse que ao ver a caravana chegar, pensou em se aproximar de forma sutil, e descobrir algo sobre sua mãe e irmãs, de quem ela sentia muita falta.
Nesta parte da história, tanto Alexandra quanto Amélie começaram a chorar. Amélie acreditava que de alguma forma, as leis poderiam ter mudado, que um novo chefe talvez tivesse a mente mais aberta, mas deu de cara com Zenfir a sua porta alguns dias atrás, ordenando que parasse de procurar informações sobre o clã, que aquela era a última vez que alguém daquele clã lhe dirigiria a palavra, que para todos ela estava morta, e que não esperasse mais por Alexandra em sua loja. Neste momento, ela pôde ver toda a fragilidade de Amélie, ela colocou as mãos no rosto e começou a chorar.
- Dapa be gazi! Baba chauper poo, tapai poo feni.* 

Ela estava arrasada, e mesmo ela dizendo que não se arrependia da vida que viveu, era difícil acreditar que alguém de fato fosse capaz de viver assim sem família, sem raízes. Mas Amélie lhe disse:
- Minha família está sempre comigo, dentro do meu coração, eu sou o que sou por eles. Uma pessoa honesta e de fé, posso estar sozinha, mas não estou infeliz, vivi a minha vida como queria vivê-la. A infelicidade está em ser desonesto consigo mesmo, e com os outros, sendo levada a fazer o que não quer, o que não acredita, e eu já não acreditava em nosso modo de vida.
Apesar de idosa, ela tinha uma força interior incrível, um brilho no olhar, que fez Alexandra entender o que ela dizia, mesmo que não concordasse, ela entendia. Para Alexandra, sua família e seu povo estava em primeiro lugar, e mesmo não gostando da ideia de casar com Zenon, era o que estava disposta a fazer, era o que estava decida a fazer, até o dia em que viu John pela primeira vez.
Ela o achou diferente, ela o achou especial, mas naquele momento, com ele julgando seu modo de vida, julgando o que ela era, ela se sentiu mal, se sentiu abaixo do que era, e ela nunca, em seus 15 anos de vida, tendo conhecido todo o tipo de gente, jamais havia se sentido desta maneira.
Chorava e se lamentava quando ouviu que alguém parou perto dela. Seu corpo enrigeceu, mas permaneceu de costa enquanto limpava seu choro. John se aproximou e tocou de leve o ombro dela, que se afastou imediatamente, como se ele a tivesse tocado com ferro em brasas. Ela virou com o olhar furioso apesar do rosto estar manchado pelas lágrimas, mas deu de cara com um John de olhar triste, ele levantou as mãos em sinal de rendição.
- Só quero conversar. - Ele disse.
- E sobre o que deseja falar? Sobre o quão ignorante sou? Ou sobre que tipo de pessoas mandam crianças trabalhar? Ou sobre como meu clã é estranho?
John então entendeu o motivo das lágrimas. Ela não precisava lhe contar por tudo o que passou, pois era fácil imaginar, ele mesmo se lembrava de quando era jovem e uma caravana de ciganos passou pela cidade. Muito iam ao acampamento deles em busca de previsões, ler a sorte, ver suas apresentações de dança. Mas fora isso, todos os consideravam inferiores, e nas ruas procuravam passar o mais distante possível. Ela não era uma cigana, mas pelo visto, os estigmas eram os mesmos.

- Sinto muito! Sinto de verdade. Eu não quis te ofender.
Essas palavras, tão bondosas e gentis. Desprovidas de deboche ou sinismo desarmaram Alexandra, fazendo ela chorar, chorar tanto que todo seu corpo tremia. Sem suportar mais aquilo John se aproximou, e a abraçou. Acariciava seus cabelos enquanto ela soluçava em seus braços. John achava que estava preparado para tudo, porém, a ternura que sentiu naquele momento o pegou desprevinido.


Traduzindo:
- Pepi = Estrangeiros/ Pessoas de fora do clã
- Dapa = Como
- Be = Sou/ser
- Gazi = Tola/Burra
- Baba = Mas/Porém
- Chauper = Queria/Querer
- Poo = Saber
- Tapai = Precisava/ Precisar
- Feni = Delas

Encantadora - Em RevisãoOnde histórias criam vida. Descubra agora