Minhas definições de sofrimento e dor se dividiam em dois momentos distintos. O primeiro acontecia quando ainda criança, com meus 8 anos de idade. Embora tão nova, eu passava a maior parte do meu tempo sozinha. Mesmo no colégio, rodeada de pessoas, eu nunca me sentia confortável e segura. Era como um encaixe mal feito que me distinguia do restante do mundo. As poucas vezes que não me sentia assim, era ao lado de minha mãe, Caroline. Todos os dias ela levantava cedo, preparava meu leite quente com flocos de milho e batia a porta às pressas, antes que eu acordasse e levantasse da cama. Um prato de vidro um pouco fundo e transparente transbordava leite com cereal, acompanhado de alguma fruta, que todos os dias estava ali atuando na variação do meu cardápio. Eu sempre quis ter uma tigela de porcelana, como aquelas dos próprios comerciais de cereal matinal. De preferência azul escuro. Porém como dizia a própria embalagem, "imagem meramente ilustrativa". Eu já havia perdido as esperanças de encontrar alguma pelos mercados da cidade. Mamãe e eu já encontramos diversos modelos em nossas ligeiras e ambiciosas procuras. Encontramos de cores, desenhos e até formas diferentes. Mas nada que se assemelhasse com aquela maravilha de porcelana estampada na caixa de cereal.
Mamãe sempre dizia que um bom café da manhã vale por um dia inteiro. Todos os dias o "melhor e mais nutritivo cereal" me aguardava. Ela sempre buscou comprar marcas famosas. Quanto mais caro, mais nutritivo e vitaminado ele era. Eu sempre achei isso uma bobagem e um desperdício de dinheiro. Mesmo saborosos e coloridos, e da estranha maneira que eu amava observá-los boiar no leite morno, não justificava seu preço por tanto suor de trabalho.
Mas ela nunca se importou. Se algo era bom mamãe buscava alguma forma daquilo se tornar melhor, e só assim chegar até mim. Era uma espécie de aprimoramento constante adotado ao meu favor.
Desde o dia em que meu pai decidiu covardemente nos abandonar, minha mãe sempre encontrou uma forma de encarar o mundo, tentando me proporcionar uma vida melhor. Uma boa educação, alimentação e boas roupas. Ela vivia correndo preocupada, apressada e atrasada. Trabalhava em dois empregos para sustentar o aluguel e a mensalidade do colégio, que por ser o melhor da cidade, cobravam uma mensalidade absurda. O restante das contas era pago com a pensão miserável, que o estado obrigava meu pai a pagar. Era a única vez no mês que ele fazia algo por nós. Independentemente da quantidade de dinheiro, não é apenas isso que uma filha espera de seu pai. Na verdade, essa era a única coisa que eu fazia questão de não cobrar.
Ele procurava me visitar na data do meu aniversário. Na verdade, isso aconteceu apenas uma vez. Como a mamãe, meu pai estava sempre atrasado. No último dia que eu o tinha visto, comemorávamos meu aniversário de três anos. Tempo depois, eu estava perto de meu sexto aniversário e ele estava a mais de dois anos atrasado. De fato, ele não era como a mamãe. Eu tentava me convencer que era apenas um atraso, mas o tempo passava me fazendo enxergar tudo de outra forma. Meu pai não havia me esquecido, até porque a pensão o fazia lembrar todos os meses. Porém eu não era mais sua filha, era apenas um compromisso, uma maldita responsabilidade mensal.
Mamãe trabalhava das 07h às 16h. Estoquista de uma grande loja de sapatos, passava o dia inteiro subindo e descendo aquela escada de ferro, pintada em vermelho. Ela gastava tanto tempo de sua vida no trabalho, fazendo as mesmas ações todos os dias, que havia dado nomes a cada um daqueles degraus empoeirados.
Cid era o primeiro degrau. O segundo era Salt, pois quase sempre era evitado quando em um pequeno salto, mamãe chegava até Dexter, o terceiro degrau. Smith era o quarto, seguido de Melina, Tedy e Jhon, o sétimo. Rodney oitavo, Martha nono e Celso o décimo. Max fechava o décimo primeiro sendo o ultimo no final da escada.
Sempre que estávamos juntas, mamãe me contava historias sobre o seu dia. Eu não sabia como explicar, mas ela parecia ter o dom de transformar qualquer simples acontecimento, em uma historia muito divertida. Como uma vez que tentou saltar Smith, quando Melina decidia seu triangulo amoroso com Tedy e Jhon. Melina havia abandonado o posto quando os pés apressados de minha mãe se aproximavam. Retornou bruscamente para seu lugar, mas já era tarde demais. Mamãe torce o pé e rola escada abaixo capotando por cima de Dexter, Salt e Cid. Felizmente não se machucou. Enquanto ela me contava, sem ao menos perceber eu estava odiando Melina. Sim, de tão boa em contar historias, mamãe me fez naquele dia, odiar um simples degrau de uma escada de ferro. Um objeto inanimado se transformava em um personagem com mais identidade que eu mesma.
- Mamãe por que você não escreve um livro? Ele pode virar filme... - Eu roçava o rosto na almofada macia sobre o colo dela. Sentia a ponta de seus dedos deslizar por cada fio de cabelo meu. Um cafuné tão maravilhoso, que eu emitia pequenos sons como um gato gordo e preguiçoso.
- Filha a mamãe não tem tempo para escrever historias. - Me olha como se eu ainda fosse um bebê recém nascido em seus braços. - Só para contá-las a você. - Solta um sorriso curto como se adivinhasse que eu faria o mesmo.
Minhas pernas estavam esticadas pelo sofá amarelado que um dia havia sido branco. Alguns pedaços de tecido acolchoavam e escondiam os buracos expostos por molas, que com o tempo desgastavam e saltavam para fora. Eu me movia o tempo todo, fazendo com que a fronha improvisada no sofá, escorregasse até cair mais uma camada de tecido, por cima de mim e do meu edredom.
Estávamos na sala assistindo novela. Um tapete pequeno e rasgado cobria apenas o espaço da mesinha de centro, que ficava entre o sofá e a TV.
Mamãe sempre quis um tapete grande e bonito. Não aqueles trapos que os ambulantes vendiam de porta em porta. A compra era parcelada. Todo mês o rapaz batia na porta, com muitas outras novidades e o caderninho na mão. Sem resistir à facilidade do pagamento, mamãe sempre comprava algo. Porém antes mesmo da dívida quitada, o tapete estava todo desfiado e acabado. Era o único produto que por mais que tivéssemos cuidado, não durava muito tempo em boas condições.
Sempre depois da novela, um programa chamado "Glamour" começava. Vendiam peças raras, jóias, relógios e tapetes caros, como se soubessem que o espectador do outro lado era alguém rico e poderoso. Em sua maioria poderia até ser. Mas nós éramos aquela pequena porcentagem, que assistia apenas para se impressionar com os preços altos. Ficávamos boquiabertas somente com a parcela do produto.
- Um dia ainda vou comprar um tapete desses! - Ela sempre dizia a mesma coisa apontando para a TV.
- Com toda certeza mamãe! - Reforcei eufórica.
Um dia eu que vou lhe dar um tapete assim mamãe! - Disse bem alto em meus pensamentos.
- Filha está na hora de dormir. - Faz uma pequena força sinalizando que precisava se levantar.
Eu fico sentada arrumando o cabelo, enquanto ela se levanta e desliga a TV.
- Amanhã você tem aula e eu trabalho.
- Nós duas temos compromissos amanhã. - Digo enquanto arrumo o sofá forrando novamente a fronha.
-Uhum! - Ela confirma balançando a cabeça e me dando um beijo na testa. - Apaga a luz e vem pra cama.
Aquela era uma das poucas e raras noites que mamãe estava em casa. Irmos juntas pra cama era como se fossemos duas melhores amigas, fazendo uma festa do pijama.
O segundo emprego dela começava às 17:45 e terminava somente de madrugada. Neste emprego mamãe apenas organizava o estoque, de uma farmácia que ficava aberta 24 horas. Ganhava pouco, porém era um trabalho bem menos cansativo que carregar aquelas caixas de sapatos cheias de poeira.
Dificilmente a escala de folga nos dois empregos caía em dias iguais. Toda semana o tempo livre, sendo a folga no turno da manhã, ela usava para resolver problemas, como ir ao meu colégio justificar a ausência em alguma reunião de pais e mestres, pagar o aluguel, encarar enormes filas de banco, entre muitos outros compromissos que sugavam todo o dia dela. O mesmo vale para as folgas no turno da noite. Mamãe nunca fazia compras grandes que durassem o mês inteiro. Visitava o supermercado toda a semana. As folgas da noite eram boas porque eu podia ir junto com ela.
Mas ainda assim era muito pouco tempo. Mamãe e eu vivíamos como duas melhores amigas que apenas dividiam a mesma casa. Ela acordava muito cedo e chegava muito tarde. Claro, eu sendo apenas uma criança e ela uma mulher adulta. Eu sabia bem nossas diferenças. Até suas historias eram bem explícitas com relação à vida corrida que vivia. Claro que na historia o ponto de vista era meio inocente e inusitado, mas não deixava de me transmitir uma vida real.
Mamãe sempre pareceu querer me preparar para a vida adulta. Como uma águia ensinando seu filhote a voar. Mostrava os riscos e as consequências caso eu não batesse as asas o suficientemente forte. Cuidava de mim e também me ensinava a se proteger. Eu me assustava as vezes. Era como se não fosse ficar comigo por muito tempo.
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Outras Proporções de Dor - Ato 1
AdventureAté que ponto somos considerados "resistentes" ao sofrimento? Isabelle ainda não descobriu o grau de maturidade e ingenuidade que uma criança de 7 anos e meio deve ter. Dona de uma mente inalcançavelmente fértil, Isa observa, imagina, cria, aprende...