"Levantei da cama por volta das 03:00 horas da madrugada. Estava tudo escuro. Caminhei devagar para não dar uma topada na parede. Acendo a luz da sala, pego o controle remoto e ligo a TV. Passava nada de interessante na programação. Em uma troca aleatória de canais, escolho um que me despertou a atenção. Uma rapaz, aparentando ter uns 27 anos, carregava uma câmera de mão enquanto viajava por vários locais pelo mundo. Conhecia outras culturas, outros lugares, pessoas, festas e comidas típicas de diferentes formas, cores e sabores. Era uma viajem sem fim. Uma alegria sem fim. Parecia ser o melhor emprego do mundo. Da historia talvez. Por um momento me pego tentando lembrar quando foi a ultima vez que viajei. A memória parecia tão distante que fiquei com medo de acabar lembrando que nunca havia viajado na vida.
Eu não queria ouvir aquela historia. Mamãe não dizia nada divertido, nada legal. Aquela historia só mostrava o quanto ela estava triste.
Infelizmente eu estava certa. Eu nunca pude viajar, nunca pude conhecer lugares e pessoas diferentes. Trabalho tanto que não tenho tempo para cuidar de minha filha. Foi naquele momento que decidi por um basta. Peguei meu casaco e saí no meio da madrugada em direção a farmácia. A rua estava tão deserta e fria, que questionei como quase todos os dias, tínhamos tantos clientes mesmo passando da meia noite. As portas da farmácia eram de vidro blindes. Eu nunca soube se eram a prova de balas. Dentre os meses que trabalhei ali, nunca tive o azar de presenciar aquelas portas sendo quebradas ou perfuradas. Por mais vazia e sombria que estivesse àquela esquina, um grande letreiro contornado por luzes vermelhas de led, escrito "24 horas", dizia que ainda existia vida ativa naquele lugar. Aplaca apontava para dentro daquela farmácia tão iluminada quanto a tal "luz no fim do túnel". Eu estava ali decidida. Porém a sensação de esperança não estava tão presente. Meu maior medo não era a madrugada deserta, e sim, o que iria acontecer depois dali.
Uma pequena placa verde com um dizer branco, já estava me fazendo sentir saudades daquele lugar. Estava escrito "aberto", pendurada na fechadura da porta de vidro.
Apenas um funcionário e um gerente trabalhavam na hora. Marlon e Alberto.
Marlon era um bom funcionário. Assumia o turno bem antes da minha saída. Eu largava 00:20 e ele devia estar a postos para me render às 00:00. Sempre chegava cedo, com muita disposição para o trabalho. Estava perto de completar 23 anos, e a quase seis, trabalhava naquela farmácia que era seu "primeiro e ultimo emprego". Ele sempre dizia que iria abrir seu próprio negócio. Seria dono do melhor restaurante da cidade.
Mamãe nunca havia me contado muito sobre Marlon. Havia dito sim sobre um rapaz com cabelo ruivo, volumoso e enrolado. Usava óculos grandes...
A armação dos óculos de Marlon era quase do tamanho de seu rosto enferrujado e cheio de espinhas. Era magro e desengonçado. Com aquele cabelo grande, sua cabeça ficava imensa. Parecia uma vareta de churrasco, espetada em um algodão doce sabor groselha.
- Caramba mãe... – Faço um olhar confuso – Groselha?
- Sim filha. – Consegui tirar dela um pequeno sorriso de canto. – Não consigo imaginar outro sabor que tenha uma cor vermelho-escuro.
- Mas os sucos de groselha do colégio têm uma cor meio rosa. – Senti medo naquele momento que ela pensasse que eu andava bebendo sucos, cheios de uma composição artificial e sem nutrientes.
- É mesmo... – Ela desliza uma mexa de cabelo pra detrás da orelha. – Faz muito tempo que não bebo dessa porc... – Mamãe pausa como se levasse um susto. – Essa bebida sem nutrientes.
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Outras Proporções de Dor - Ato 1
AdventureAté que ponto somos considerados "resistentes" ao sofrimento? Isabelle ainda não descobriu o grau de maturidade e ingenuidade que uma criança de 7 anos e meio deve ter. Dona de uma mente inalcançavelmente fértil, Isa observa, imagina, cria, aprende...