O som da maçaneta estava de alguma forma diferente. Eu havia acabado de acordar e estava deitada de mal jeito no sofá. Ao abrir os olhos notei que o programa de culinária não estava mais em exibição. Um telejornal era apresentado.
- Nossa quanto tempo eu dormi? - Sentindo dores no pescoço e fortes fisgadas na cabeça, fiquei sentada no sofá ao observar que já estava de noite. A novela havia terminado e o noticiário da meia noite chegava no seu último intervalo. Mamãe ainda não havia chegado.
- Mamãe? – Novamente o som da maçaneta que não havia girado totalmente.
- Isa sou eu, abri aqui por favor. - Uma voz abafada chegava do lado de fora da porta. Mesmo baixa e distante, sua voz era inconfundível.
- Mamãe! - O grito não saiu muito alto, mas o agudo de minha voz pareceu uma navalha penetrando meu cérebro. Com o movimento brusco ao levantar do sofá, minha cabeça doeu a ponto de eu ficar tonta.
Abro a porta sem esconder minha empolgação.
- Eu estava te... - diante de mim, mamãe segurava uma sacola grande e um tapete enrolado como se fosse um churros gigante sobre seus ombros. - esperando...
Era uma mistura de ansiedade com o susto que eu havia acabado de tomar.
- O que é isso mãe? - Perguntei abrindo toda a porta e dando passagem.
- Isso é... O tapete... Mais lindo... E caro... - Ela pausava a cada metro que andava. O peso dificultava sua respiração. - do mundo... - deixa a sacola grande diante do sofá. O tapete imenso e com certeza muito pesado, desabar de seus ombros ao chão, bem perto da TV. Estava amarrado com vários nós de fitilho.
- Ai nossa... - Mamãe se joga no sofá e cai deitada olhando para aquele tapete enrolado, que parecia mais um cadáver estirado no meio da sala.
- A senhora comprou aquele tapete da TV?
Apenas balançou a cabeça negando. Ela levanta e se aproxima de mim.
- Minha pequena - não resisti e deixei o sorriso escapar. - Meu chefe... Ou melhor ex chefe - Sua animação despencou. - Pediu que limpasse e ajudasse na mudança para um novo escritório.
Meu olhar começou a se empolgar quando me puxa suavemente pelo braço e me guia até o sofá. Ela olhava dentro de mim. Mesmo com toda aquela situação ainda conseguia me passar uma segurança tão confortável, que até mesmo aquele sofá velho se tornava aconchegante.
- Foi então que antes de começar meu trabalho... - Ela inclinou um pouco a cabeça me olhando daquele jeito que somente eu entendia. Novamente minha animação deixava meus medos e todo aquele sentimento de culpa desaparecerem. Eu sabia que ali viria uma saborosa e incrível história.
- O tapete estava lá no canto, totalmente empoeirado quando em um surto de raiva:
"Ele lançou o celular no chão com tanta força que faíscas saltaram do aparelho, enquanto cada pedacinho eletrônico voava pelo ar. Estava irritado, acariciava a testa com um tecido secando o suor e quem sabe os problemas. Repetia o tempo todo o quanto queria enforcar sua mulher, com uma corda presa a uma grande e forte vara de pesca. Pretendia gira-la no ar e lançá-la como isca, para longe, o mais próximo possível de um tubarão faminto.
Eu lacrava algumas caixas tentando ignorar o que acabara de acontecer. Ele me pede para sair e terminar o trabalho depois. Saio devagar tentando não fazer muito barulho. Fechando a porta à minhas costas, ouço resmungos seguidos de batidas que pareciam socos na parede. Imaginei que de alguma forma sua mulher havia chegado de helicóptero pela janela, e os disparos de bazuca não foram suficientemente capazes, de fazer uma imensa bola de fogo, cuspir sua mulher em chamas diretamente contra o pobre chão. Então ela estava ali, emprestando sua cabeça pra ser usada como marreta na parede. Mas naquele momento percebi que estava exagerando".
- Ou não... - Ela me olha de lado sabendo que iríamos rir juntas.
"De repente ouço ele me chamar em um grito de dor e choro. Entro rapidamente e vejo um gordinho careca, baixinho e sem camisa. Estava todo suado com a camiseta branca enrolada no pulso. Havia golpeado tanto a parede que eu quase pude ver "ódio" escrito em sangue. Fiquei um pouco nervosa e com medo. Ele apenas se desculpou. Muito ofegante pediu pra buscar a chave de seu carro em uma pasta de couro na sala ao lado, o velho escritório. Estava indo ao médico e pediu desculpas novamente pelas manchas de sangue na parede. Antes de sair pediu que me livrasse de algumas coisas consideradas lixo, da antiga sala. Um porta-retratos com metade de uma foto rasgada, onde apenas ele estava. Caixas de papeis que não serviam para mais nada e um grande tapete empoeirado, com um velho armário de ferro em cima. Foi difícil arrastar o armário sozinha. Não pedi ajuda, pois eu ia descartar tudo, menos aquele tapete que eu já imaginava estirado na minha sala. Não queria ter que competir ou lutar com outro funcionário para levar o que naquele momento já era meu".
- Mas como a senhora trouxe tudo isso sozinha?
- Vem cá minha pequena. - Ela recolhe uma almofada pondo em seu colo. - Deita aqui.
Eu dormi tanto, mas ainda parecia cansada. Mamãe trabalhou tanto, trouxe sozinha aquele peso e ainda estava com todo aquele carinho e animação comigo. Me deitei sentindo vergonha de mim mesma. Ela de alguma forma estava triste mas precisava suportar pra não passar nada pra mim. Aquilo me machucava e me fazia sentir mais vazia.
- Não! - Levantei em um grito. Ela me olhou tentando entender o que havia feito de errado.
- Filha...O que foi?
- Não mamãe, eu não quero ouvir historia hoje. Quero ouvir a verdade! - As lágrimas vieram mais rapidamente dessa vez.
- Eu não entendo filha... - Eu estava de pé dando pequenos passos involuntários pra trás e me afastando dela.
-A senhora pediu demissão no segundo emprego por minha causa...
- Mas Isa...
- Depois... - Falei mais alto que ela, quase gritando. - Depois foi demitida por telefone, no dia seguinte. Agora está sem emprego, mais triste que antes, tudo por minha culpa. Ela não olhava mais pra mim, e sim para o chão.
. - Não entendo filha... - Eu estava de pé dando pequenos passos involuntários pra trás.
-A senhora pediu demissão no segundo emprego por minha causa...
- Mas filha...
- Depois... - Falei mais alto que ela, quase gritando. - Depois foi demitida por telefone, no dia seguinte. Agora está sem emprego, esta mais triste que antes, e tudo por minha culpa!
- Isa...
- Não mãe, eu quero a verdade, quero que pare de fingir que não esta preocupada, que não está sofrendo, que... - Eram tantas palavras que engasgo como se alguma estivesse agarrada na minha garganta. - Que pare tentar evitar que eu sofra...
-Isa por favor... - ela estava serena, com a mesma máscara de antes. A que ela usava todos os dias pra me enganar, pra esconder os problemas.
- NÃO MÃE! - Deixei explodir. Eu não estava gritando, e sim rugindo. O sangue subiu queimando meu rosto, as lágrimas jorravam sem controle.
- PRECISO QUE DIVIDA SUA DOR. - Minhas mãos cortavam o ar expressando minha angústia, a minha culpa.
- QUE DIVIDA SEUS MEDOS E TAMBÉM SEUS PROBLEMAS!
Eu tinha em seguida os braços colados ao corpo e os punhos fechados, tentando usar força física para aumentar o grave da minha voz. Eu estava pronta para o último ataque.
-E PARE DE TENTAR ME PROTEGER DOS PROBLEMAS, POIS NÃO ESTA FUNCIONANDO!
Aquele grito sinalizou o fim do meu desabafo.Ofegante deixo minhas pernas amolecerem, fazendo meu corpo repousar devagar atéo chão. Mamãe estava muda. Eu me sentiauma bateria que havia estado em seu limite de carga e de uma única vezdescarregou, soltando assim, toda energia na sua força extrema. Estava vazia.
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Outras Proporções de Dor - Ato 1
AdventureAté que ponto somos considerados "resistentes" ao sofrimento? Isabelle ainda não descobriu o grau de maturidade e ingenuidade que uma criança de 7 anos e meio deve ter. Dona de uma mente inalcançavelmente fértil, Isa observa, imagina, cria, aprende...