Por diversas vezes eu fiquei no sofá esperando mamãe chegar. A madrugada avançava e por fim, eu acabava acordando no outro dia, deitada na minha cama, bem na hora de levantar. Por mais independente que eu aparentava ser, mamãe jamais me deixaria ir sozinha para o colégio. Nossa vizinha, Srta. Marli, tinha dois meninos na qual ela cuidava como babá. Eles estudavam em um colégio público, que ficava bem próximo ao meu. Aproveitando a viajem, ela todos os dias me oferecia uma carona. Era tão rotineiro que parecia um compromisso.
Eu adorava, pois a Srta. Marli tinha carro. Como eu e mamãe sempre andávamos de ônibus, andar de carro era um mimo. Não era bonito nem tão pouco luxuoso, mas eu adorava essa facilidade e rapidez, para chegar e sair do colégio. Sim, Srta. Marli sempre passava para me buscar. O carro era comprido e cheirava a gasolina queimada. Era um Volkswagen Quantum Syncro, quatro portas. Possuía alguns detalhes com acabamentos em madeira, como se dali tivesse sido arrancado alguma placa ou decalque. Parecia um daqueles carros de transportar defunto. Talvez fosse, pois Srta. Marli foi casada com Robson, um ex-agente funerário.
Assim como mamãe, Marli era divorciada. Claro que diferente dos meus pais, o fim de seu casamento foi um simples aperto de mãos, seguido de um abraço. Ela e o ex- marido, ainda são amigos e se falam regularmente:
"Nós vivíamos brigando e infelizmente não éramos mais um casal. Não saíamos mais para lugares novos, não conhecíamos nem fazíamos nada novo. Era sempre a mesma rotina de implicância e cobrança. Eu sempre cobrei demais dele. Eu o culpava por todos os nossos problemas. Às vezes ficávamos dias sem se falar. Mesmo vivendo debaixo do mesmo teto."
Ouvi esse trecho da historia de Srta. Marli, enquanto ela e minha mãe conversavam tomando chá, no corredor do nosso apartamento. Marli no caso morava no apartamento ao lado.
- Mellí, você sabe contar historias? - Mellí era como eu a chamava. Eu não sabia pronunciar seu nome da forma correta e sempre dizia "Mérlí". Ela gargalhava achando carinhosamente engraçado a forma como eu errava seu nome. Sugeriu que eu a chamasse de Mellí, e sem motivos para questionar, gostei.
- Depende da historia minha pequena... - Embora gostasse de Mellí, eu me incomodava quando ela me chamava assim. Não apenas por ela dizer, mas eu queria muito que aquela cena, se repetisse mais vezes entre eu e mamãe. - Que tipo de historias você gosta de ouvir?
- Não sei... - Esfreguei as mãos de um lado para o outro no banco de trás do carro, enquanto sacudia os pés. Não sabia como explicar. Como eu havia dito, minha mãe era um gênio em contar historias e eu jamais saberia o segredo - Qualquer história.
- Essa hora da manhã e você querendo ouvir historias? - Um protestante no banco da frente.
Um dos meninos que Melli cuidava se chamava Isaque e tinha seis anos. Sentava sempre na frente, como se aquele banco mofado, fosse criado exclusivamente pra ele. O outro nunca havia dito seu nome nem permitia que alguém dissesse. Aparentava ser bem mais velho que Isaque. Sentava ao meu lado no banco de trás e as únicas palavras que ele dizia eram "bom dia" e "Até amanhã". Ele apenas entrava no carro e encostava a testa no vidro da janela. Criava uma força, um campo de proteção contra qualquer contato social.
Já no meu caso, procurava usar cinto de segurança e sentava bem posicionada para não amarrotar minha roupa. Gostava de ficar com o rosto grudado no vidro, vendo meus pensamentos, o passar das ruas, minhas idéias vivendo nelas... Ficava da janela vendo outro mundo.
- Fica quieto Isaque! - Retruquei tentando sem sucesso ser ignorante.
- Ela por acaso sabe que está de carona?
- Isaque... Cuidado com o que fala! - Mellí dava bronca.
Isaque era mimado e ignorante. Gostava de estar sempre usando uma touca azul meio escura, exatamente igual à tigela na caixa de cereal. Por vezes eu me pegava rindo sozinha, vendo ele sair do carro com uma tigela azul na cabeça.
Isaque era como um bebê que vivia chorando por estar sempre perdendo sua chupeta. Vivia me tratando mal, porém deixava uma exclamação no ar chamada contradição. A forma como forçava se despedir sendo grosseiro, entregava que na verdade ele queria mesmo, era que passássemos mais tempo juntos. Sempre que ele descia do carro ficava me observando ao longe. Se ele não fosse tão egocêntrico, teríamos tido uma infância de amizade. Por mais ignorante e enjoado que ele se permitia ser, eu gostava de ver uma pessoa real nele. Diferente dos alunos do meu colégio, que pareciam estar o tempo inteiro dentro de um personagem, preocupados com reputação e opiniões alheias.
- Então patricinha pobre, vai trazer biscoitos hoje? - Isaque vivia zombando do fato de eu estudar em um colégio daquele porte, e ainda precisar de carona.
- Sim Isaque, eu trago sim. - Respondi sendo mais educada possível. No meu colégio tínhamos hora de café, almoço e lanche. Até porque funcionava em horário integral. Das 7h às 15h. No horário de almoço eu me servia de uma grande variedade de comida. Mas como mamãe sempre me orientava, eu fugia dos sucos industrializados e das batatas fritas. Nunca tive dificuldade de evitar essas coisas, pois sempre tive uma alimentação bem controlada. Na hora do lanche eu ainda estava sem fome e comia apenas uma fruta. Portanto, guardava a caixinha de suco para Mellí e os cookies com gotas de chocolate para Isaque. O outro garoto era tão quieto e isolado, que às vezes eu nem se lembrava dele. Já estava tão acostumada com tamanha frieza, que certa vez eu simplesmente esqueci que existia uma pessoa ali, bem do meu lado. Aquilo me irritava. Independentemente do problema que ele estivesse passando, se isolar do mundo, sentindo pena de si mesmo o tempo todo, iria apenas o transformar em uma pessoa desprezível. Como podia uma criança ser tão triste e isolada?
Eu devia me incomodar com as provocações de Isaque, mas por vezes eu sentia pena dele. Isaque sofria bullyng de outras crianças no colégio e praticamente todos os dias era humilhado. Acredito que o fato de me tratar mal, era como uma válvula de escape diante de toda tensão acumulada. Talvez seja essa a principal trama por detrás do bullyng. Um ser mais forte agride o mais fraco. O mais fraco desconta então sua raiva em outro ser mais fraco que ele. E assim sucessivamente. Talvez eu tivesse problemas maiores que os dele. Entretanto estava mais acostumada a lidar e entender certas situações. Ele não.
- Patricinha pobre, por que você não me trás um suco também?
- Tudo bem Isaque, eu te dou o meu. - Dizia Srta Marli, girando o volante para dobrar em uma rua à esquerda.
- Não precisa Mellí, eu vou tentar trazer dois.
- Tentar? Você poderia trazer umas dez caixinhas de suco que ninguém iria perceber. Aquele colégio só tem filho de gente rica. Eu duvido que eles bebam e comam de toda a merenda. -Isaque muda o tom de voz levando as mãos à cabeça - Quanto suco deve ser jogado fora, só porque a maioria deles prefere levar refrigerante?
De um modo ou de outro ele tinha razão. O lanche era entregue em sacolas de plástico transparente, contendo uma fruta, um biscoito e uma caixinha de suco. A maioria dos alunos deixavam as sacolas de canto, até mesmo jogavam fora. Tudo por uma ridícula necessidade de serem melhores que os outros.
Eu me impressionava como aquelas crianças poderiam ser tão soberbas. E também me impressionava por ter apenas sete anos e meio, e perceber tantas coisas ao meu redor. Em um pequeno sorriso, penso em minha mãe. Ela estava me criando muito bem.
Naquele dia Srta. Marli teve que fazer uma rápida parada.
- Pessoal estamos quase sem combustível e preciso abastecer.
Já alguns metros à frente, estávamos diante de um cruzamento. Dobrando em uma rua à direita, tínhamos uma paisagem cheia de árvores, com um caminho de grama dividindo a rua em mão dupla. O sol penetrava pelos os espaços entre os galhos e as folhas. As árvores forneciam sombras que cobriam quase toda a rua.
O sol agia dando disparos de luz contra aquela imensa sombra que cobria o chão. A imagem no asfalto era uma arte meio quadriculada. Embora apenas buracos de luz, sobre a sombra esculpida pelas árvores, aquela era a sintonia mais bela que uma manhã de sol podia gerar.
- Droga... - Não demorou muito para Isaque começar a reclamar. - Odeio chegar atrasado!
- Mas não vamos nos atrasar. É por isso que sempre saímos cedo.
Uma das poucas coisas que aprendi com Srta. Marli, é que antecipação era a chave para o imprevisível. Devemos observar além, bem depois daquilo que ainda não aconteceu. Porém naquela vez ela não havia se precavido. Eu não sabia qual, mas deveria ter algum motivo.
Srta. Marli pede para todos sairmos do carro enquanto o frentista enchia o tanque. Ela sempre respeitou as normas de segurança e eu gostava de fazer o mesmo.
- Vem menina podre, não fica perto do carro. Com esse fedor de gasolina, ele pode explodir.
Isaque me puxa pelo braço pedindo para segui-lo. Mesmo sendo um exemplo vivo de aborrecimento, ele conseguia surpreender, quando sutilmente tentava ser legal. Eu gostava de saber que alguém se preocupava comigo.
Mais a frente uma pequena loja de conveniências. O meu companheiro de banco de trás estava lá, apoiado em apenas uma perna, enquanto a outra com a sola do tênis na parede. Ele parecia forçar estar pensativo e maduro. Havia acabado de comprar um pirulito e o tinha na boca como se fosse um cigarro. Vestia uma camiseta preta e calça jeans. Um pequeno relógio prata no pulso, com as duas mãos no bolso. Aparentava ter nove ou dez anos de idade. E por seu tamanho, talvez tivesse mais. Doze ou até mesmo treze. Diferente de Isaque que usava touca azul, camisa regata do colégio, por debaixo de um casaco verde escuro. Também usava relógio preto com led azul, que parecia grande demais para seu pulso magro e fino. Pendurada nos ombros, uma mochila colorida. Ter que usá-la deixava Isaque irritado, pois segundo ele, não era mais uma criança.
Não compramos nada na loja e voltamos instantes depois para o carro. Isaque quis comprar uma revista em quadrinhos, mas não tínhamos tempo e nem dinheiro. Naquela manhã não conversamos muito. Até porque as nossas conversas se limitavam entre Mellí e eu. Isaque era apenas uma irritante interrupção. Passei boa parte do dia pensando em minha mãe. Iria tentar ficar acordada para no mínimo vê-la chegar. Mas eu sabia que iria apenas tentar.
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Outras Proporções de Dor - Ato 1
AdventureAté que ponto somos considerados "resistentes" ao sofrimento? Isabelle ainda não descobriu o grau de maturidade e ingenuidade que uma criança de 7 anos e meio deve ter. Dona de uma mente inalcançavelmente fértil, Isa observa, imagina, cria, aprende...