Capítulo 3

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Mais um dia começava e com aquela sensação monótona de sempre, eu apreciava o café da manhã. Não desgrudava os olhos daquela tigela azul, na embalagem do cereal. Era uma manhã de quinta-feira, e eu estava ansiosa para que logo anoitecesse. Mamãe iria trocar as prateleiras da farmácia pelas do supermercado. Era a tão esperada folga semanal. Iríamos juntas fazer as compras da semana e aquilo me deixava tão empolgada, que eu queria dormir o dia inteiro e acordar somente na hora que ouvisse a maçaneta girar. O grande momento de ver minha mãe atravessar a porta e correr em minha direção. Me pego imaginando até qual casaco iria usar.
Perto de terminar meu cereal, sou interrompida pelas buzinadas de Srta. Marli, em seu carro com cheiro de combustível queimado. Viro o rosto imediatamente para olhar o relógio, imaginando o que pôde ter acontecido de errado. Eu sempre me arrumava cedo e esperava Srta. Marli sair com o carro do lado de fora. Sempre fui muito adiantada quanto ao horário.
- Já estou indo! - Gritei, antes de encher a boca de cereal, pegar a mochila e sair correndo.
Melli nunca me chamou assim tão cedo. Estava cerca de uns 25min adiantada. E mesmo que eu não estivesse do lado de fora esperando, era apenas uma carona diária. Ela não tinha obrigação de me levar ao colégio. Mamãe já tentou oferecer alguma retribuição em dinheiro, mas Srta. Marli nunca aceitou. Por mais que aparentássemos ter uma boa vida financeira, Marli sabia de nossa real situação. Eu nunca havia dito nada. Até porque não era muito difícil perceber nossas condições. Uma mãe solteira que trabalha em dois empregos, enquanto sua filha permanece em casa sozinha, indo para o colégio de carona, de fato não podem ser ricos.
Minha mãe sempre deixava o telefone de um taxista, um amigo nosso de confiança, caso Srta. Marli por algum motivo não pudesse me dar a tal carona. Era só eu ligar e depois ela pagava o taxista. Felizmente isso aconteceu poucas vezes. Uma delas foi quando Srta. Marli havia ficado doente e teve que ficar dois dias de cama. Tive que ir e voltar do colégio de taxi. Embora mais confortável e não exalar um odor de óleo de motor queimado, eu não me sentia bem adequada naquele banco de trás. Sentia falta de Mellí e do chato do Isaque. Até mesmo daquela estátua de gelo, que sentava todos os dias do meu lado.
O tal taxista sempre dava um bom desconto à mamãe. Ele sempre estava pronto para nos ajudar e por diversas vezes não cobrava a corrida. Parecia sempre estar disposto a fazer tudo por nós. Por mais que eu não retribuísse, ele tentava me tratar como se fosse meu pai. Me dava presentes e quando nos encontrávamos, quase sempre no supermercado, perguntava mais sobre mim, sobre meu dia, se eu estava bem e se estava precisando de alguma coisa. Ele fazia em apenas alguns instantes, aquilo que meu pai nunca mais fez desde o dia em que foi embora. Se preocupar comigo.

- Ei garota! - Isaque falava alto de dentro do carro. - Não seja lenta e vamos logo antes que deixemos você ai.
Eu revirava os olhos tentando não me chatear. Não questionei e caminhei rápido até o carro.
- Desculpe minha pequena - Aquela frase me fez bater a porta um pouco mais forte que o normal. - Isaque tem que chegar mais cedo hoje. Preciso pegar outro livro de matemática na biblioteca pra ele.
- Tudo bem Mellí. Mas... - Olho para a alma penada à minha esquerda e aceno para os bancos da frente. - Me desculpe... Bom dia pessoal.
- Ah tanto faz... - Isaque resmunga logo à frente.
- Bom dia... - Uma voz de zumbi chegava do lado.
- Me desculpe Isabelle, bom dia. - Srta. Marli retribuiu acenando também.
- Mas o que aconteceu com seu livro Isaque?
- Não é da sua conta Isabelle remelenta! - Ele parecia perder a cada dia, a força dos seus insultos. Era como se nunca amadurecesse e sempre se tornasse cada vez mais, uma criança birrenta.
- Para com isso Isaque! Você é o culpado de estarmos saindo mais cedo.
Srta. Marli me olha através do espelho do carro e responde minha pergunta:
- Ele deixou cair dentro do vaso sanitário.
Isaque parecia bufar no banco da frente.
- Nossa, mas...
- Sim você vai perguntar o que ele fazia com o livro no banheiro? - Ela me interrompe completando o que eu iria dizer.
- Sim...? - Minha voz sai baixa e acuada.
- Já disse que não é da sua conta sua idiota pobre! - Isaque parecia mais irritado que o normal.
- Deixa de ser mal educado Isaque...
- Tudo bem Mellí. - Interrompi a bronca - Eu não ligo. - No fundo eu ligava sim. Eu estava feliz e ele parecia querer estragar isso. Dificilmente eu ficava irritada, mas naquela manhã eu estava começando a abrir uma exceção. Não pelas provocações, mas por sempre vê-lo daquele jeito.
Isaque não iria contar como o livro havia caído na privada, o que me deixava ainda mais irritada.
- Isa, se não quiser nos acompanhar, eu deixo você mais cedo no colégio.
- Não precisa Melli, aguardo vocês dentro do carro. - Por um segundo imaginei como seria apavorante ficar do lado de fora sozinha, naquele carro fedendo a gasolina.
- Não vou te deixar sozinha no carro Isa...
- O que foi patricinha pobre? Tem medo de colégio público? - Isaque estava querendo se superar.
- Claro que não... - Talvez eu tivesse um pouco - Só prefiro não entrar.
- Do que você tem medo? - Seus pequenos momentos de maturidade, eram vistos em olhares sérios e cruéis. Era como se Isaque soubesse retirar de dentro dele um ser perverso. Como um vilão ainda em fase beta, onde ele pelo menos aparenta ser mal.
- Ninguém vai roubar ou machucar você. Na verdade vão sentir medo dessa sua cara de bode.
- Isaque, por favor... - Não eram os insultos, mas sim a insistência de querer me irritar. Ponho a voz irritante de Isaque como plano de fundo enquanto volto a pensar em mamãe. Estava mais do que antes, desejando que a noite chegasse logo de uma vez.
- Melli, pode me deixar no colégio mais cedo...
Afinal não era tão cedo. Chegaria 20 minutos antes apenas. Ficaria sentada sozinha em algum daqueles bancos de madeira no pátio. Eu não havia conseguido fazer amigos ainda, mas preferia ficar sozinha que tentar suportar as provocações de Isaque.
- Tem certeza meu anjo?
- Deixa essa maluca no colégio de rico dela.
- Caramba Isaque, para! - Protestei com raiva antes que Melli o repreendesse. - Qual é o seu problema comigo?
Podia ouvir ele balbuciar, como um cavalo comendo capim.
- Isa tem razão, porque não a deixa em paz? - Srta. Marli foi pacifica até demais. Isaque estava precisando de um choque de realidade.
- Todos os dias damos carona pra ela. Todos os dias a pegamos na porta de casa, pra então depois ela ficar se achando... - Ele estava serenamente consciente do que estava dizendo. Um sorriso malicioso mostrava sua única intenção. Me machucar. Ele pretendia me fazer explodir. Seja brigando e revidando as provocações, ou apenas me fazendo chorar. E pra isso acontecer, ele teria que pegar pesado.
- Se quer sossego, que vá de táxi com o amante da sua mãe...
- Já chega! - Achei que Melli havia dado uma tapa nele. Mas infelizmente me enganei.
- Por favor me deixe aqui... - Falei baixo. Eu era uma armadura de bronze perfeita, que naquele momento havia sofrido o primeiro arranhão. Dizer algo como aquilo, seria obra de uma mente maliciosa e sádica. Ele estava conseguindo.
- Isa, ainda falta mais de um quilômetro para chegar no seu colégio. Não vai ficar sozinha na rua.
- Melli por favor eu conheço o caminho...
- Mas eu não vou te deixar sozinha...
- Patricinha pobre... - A voz de Isaque era de uma criança mimada atrapalhando a conversa de adultos.
- Melli... - Eu pedia.
- Patricinha falsa... - Mesmo vindo do banco da frente, eu podia sentir sua irritante voz logo abaixo dos meus ouvidos.
- Não Isa... - Srta. Marli somente recusava.
- Por favor... - Eu implorava.
- Patricinha pobre...
- Isa, você não vai descer e ponto! - Ela foi firme.
- Patricinha idiota...
- Mas eu vou! - Falei mais alto.
- Patricinha enjoada...
- Cala a droga da boca Isaque!
O grito foi até maior que o esperado.
Um instante de silêncio foi o intervalo perfeito para reerguer novamente minha voz.
- Melli, se você permitir que eu fique mais um segundo nesse carro, eu juro que abro a porta e pulo!
Srta. Marli freia até sentirmos o som do pneu arranhar marcando o chão.
- Já chega Isa...
- Deixa essa maluca ai! - Antes mesmo dele falar, eu ja tinha aberto a porta e saido do carro.
- Isa volta para o carro! - Melli gritava.
Ponho as duas alças da mochila nas costas enquanto caminho em passos longos e firmes. O carro me acompanhava lado a lado.
- Isa volta por favor...
Ignorar a voz de Melli era mais difícil que suportar Isaque. Não gostava de agir como uma criança rebelde, mas se ainda continuasse dentro do carro, Isaque iria conseguir um olho roxo. Nunca estive tão feliz e tão chateada ao mesmo tempo. Ele havia dito coisas duras, como se estivesse realmente querendo o meu mal. Isaque estava conseguindo estragar meu dia.

Outras Proporções de Dor - Ato 1Onde histórias criam vida. Descubra agora