Naquele dia compramos tudo o que precisávamos. Panelas e utensílios de cozinha, roupas de cama, toalhas novas, até mesmo um DVD player, caso no tempo livre não estivesse passando novela. Voltando pra casa atravessávamos a rua movimentada com as sacolas nas mãos. A loja ficava apenas um quarteirão do nosso apartamento. Mas com todas aquelas bolsas, parecia que a distancia havia dobrado.
- Não precisa querer me ajudar filha, eu consigo levar. - Mamãe estende a mão esquerda com esforço, sentindo o peso de algumas sacolas.
- Vem... Você é muito pequena para carregar peso.
Eu não gostava de vê-la sofrer, e aquelas sacolas pareciam machucá-la.
- Não... - Livrei a sacola do alvo de suas mãos com certo esforço.
Eu não podia recuar e deixá-la levar mais peso. Estava sendo incômodo para mim, mas eu precisava ser forte e levar nem que fosse apenas um dos pesos que mamãe carregava todos os dias. Era nova demais para entender o que ela sentia por dentro. Porém eu sabia que ela apenas queria ser mais feliz. Eu queria que ela se esforçasse menos, queria que tivesse mais tempo para ficar comigo, eu queria fazer ela mais feliz.
- Isa! - Ela gritava já um pouco distante.
Eu me sentia horrível por estar desobedecendo. Cada metro mais a frente era como se eu estivesse a abandonando. Decido então parar e aguardar ela se aproximar. Deixo a sacola cair com o peso no chão e aguardo de cabeça baixa, reconhecendo meu erro.
- Isa volta aqui agora!
Permaneci imóvel, aguardando sem ao menos ter um palpite sobre o que iria acontecer. Eu olhava para os meus sapatos de sola rosa e cadarços azuis. A sacola pesada estava no chão, apoiada no meu pequeno tornozelo. Estava de meia-calça rosa tão clara quanto o branco dos meus tênis. Um casaco de moletom azul escuro e capuz.- Isa! - Mamãe gritava mais alto. Parecia estar desesperada. Eu não sabia o que fazer além de ficar ali imóvel.
- Isa! Filha! - Ela estava a poucos metros de mim. Andava como se tivesse uma bola de ferro pendurada no tornozelo.
- Sai daí! Isaaa! - Sua voz era lenta e grave.
Levanto um pouco a cabeça tentando olhar para a esquerda, através do capuz. A tarde estava nublada e fria. O vento soprava com força suficiente para cortar pelas ruas e quase me deixar sem equilíbrio. Mesmo ainda dia, pude ver o brilho forte do par de faróis em meu rosto.
- Minha filha! Isaaa!
Sua voz era uma mistura de grave com agudo. Era um grito de socorro, de desespero.
O mesmo desespero que subia por minhas mãos geladas até o alto da minha nuca.
Um som bem alto de buzina de caminhão parecia trazer junto um golpe feroz de vento.
Nesse instante tudo ficou em câmera lenta. Uma espécie de gravidade zero tomou conta daquele cruzamento. O vento desapareceu, o som e todo o meu fôlego.
A sacola pesada havia soltado de minha mão e tombava para o lado. Me viro lentamente como se o tempo me proporcionasse essa ousadia. Diante de mim os faróis estavam mais fortes e amarelos. Era como se os olhos do caminhão também se arregalassem por me ver. Os meus estavam assim, porém não emitiam luz. Estavam cinza e cheios de pavor.
Viro o rosto pondo meu braço direito diante dos olhos.- Meu Deus! Nãoo!
Eu não consegui ouvi-la, mas pude ler seus lábios. Ela também estava em câmera lenta. Até mesmo os objetos inanimados das sacolas, participavam da gravidade zero.
No desespero uma das sacolas enrosca nos seus dedos. Ela havia deixado tudo para trás de tal forma, que se tivesse uma faca havia cortado o próprio dedo, somente para se livrar do peso que lhe atrapalhava de correr.
Eu já não conseguia ver mais nada quando sinto um forte golpe, deixar meu corpo mole e desgovernado, capotar pelo chão.
Meu rosto estava colado no asfalto. Todas nossas compras estavam espalhadas pelo cruzamento. Da minha visão mal posicionada, o chão havia se tornado a parede e o restante da rua um grande abismo. Eu podia ver na direção das quatro rodas, um caminhão branco atravessado no meio do cruzamento. Marcas de pneus mostravam que o freio foi usado com todas as forças. Porém não havia sido o suficiente...
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Outras Proporções de Dor - Ato 1
AventuraAté que ponto somos considerados "resistentes" ao sofrimento? Isabelle ainda não descobriu o grau de maturidade e ingenuidade que uma criança de 7 anos e meio deve ter. Dona de uma mente inalcançavelmente fértil, Isa observa, imagina, cria, aprende...