Olho para minhas mãos. Uma dor insuportável me faz deixá-las cair sobre minhas coxas. Os ossos do meu pulso pareciam estar totalmente quebrados.
- E agora... - Isaque fala com dificuldades quase não abrindo a boca. - Vai me matar...?
Eu mal conseguia se mover. Estava arrependida e perplexa. Sentia medo de mim mesmo.
Eu podia sentir por dentro a dor de cada golpe.
"O que foi que eu fiz...?"
Chorar não iria mudar a situação, mas era tudo o que eu podia fazer.
Uma forte chuva surge da forma mais clichê possível. Eu estava imóvel e derrotada. Era um corpo sem vida ajoelhado sobre um corpo que havia sido mastigado por meu descontrole feroz. A chuva limpava o sangue no rosto de Isaque, mas logo após o derramava sobre meus ombros. Suor, lágrimas, angústia. O sabor salgado do vazio, da sensação de ter se transformado em um monstro.
"Me perdoa Isaque, por favor me perdoa..."
Eu não conseguia falar.
Melli se aproxima em curtos passos.
- Isa... - Ela estendia as mãos pedindo que eu mantivesse calma.
"Ela esta com medo de mim..."
Eu era o homicida, Isaque a vítima e Melli o chefe de policia.
Me viro para Melli implorando apenas com meu olhar, que não sentisse medo de mim. Que não me fizesse sentir ainda mais selvagem.
- Isa fique calma! Acabou...
- Não... Não faz isso Melli... Por favor...
Sua cautela me machucava ainda mais. Eu chorava descontroladamente.
- Isa fique calma... - Ela ainda se aproximava devagar.
Torno a olhar para Isaque. Não teria biscoitos que curassem sua dor naquele momento. Eu queria estar no lugar dele. Eu era merecedora daqueles machucados, daqueles golpes.
"Meu Deus o que eu fiz com você..."
Levanto a mão direita e aproximo de seu rosto. Mesmo sentindo o músculo do meu braço latejar de dor, eu toco seu rosto com a ponta dos meus dedos. Forço em minha mente o poder de curar, de cicatrizar. Mas é impossível. Ninguém tem esse poder. Muito menos eu.
- Me perdoa... - Finalmente consigo falar mesmo que sendo um rouco sussurro.
- Isaque? - Ele não responde.
- Isa... - Melli chegava perto.
- Isaque você pode me ouvir? - Consigo falar mais alto.
- Isaque me responde! - Eu o sacudia. – Isaque!
- Isa deixa ele!
- Chama um médico Melli! - Eu estava em desespero. Isaque não abria os olhos nem reagia. Estava desacordado.
- Isaque! Isaque! Isaquee! - Eu era um desfibrilador vivo. Batia e sacudia o peito dele esperando alguma reação. Meus gritos eram agudos.
- ISAQUE POR FAVOR!
- Isa você precisa sair de cima dele! - Melli me segura por trás me puxando pelos braços.
- NÃO! ME SOLTA! - Mesmo sendo erguida, eu sacudia as pernas e o corpo o máximo que conseguia.
- EU PRECISO FICAR PERTO DELE!
- Isa ele está desacordado...
- TEMOS QUE TIRAR ELE DA CHUVA! ME SOLTA!
Melli consegue me afastar enquanto algumas pessoas se aproximam. Um homem o segura nos braços.
- O QUE VÃO FAZER COM ELE? ELE PRECISA DE UM MÉDICO! ME SOLTA!
Metros de distância consigo me livrar de Melli.
- Isa volta!
- ISAQUEE! - Gritava enquanto corria com todas minhas forças. Meus pés mergulhavam na água empossada. Cada passo era um míssil perfurando a água e levantando o excesso como nos filmes de ação. O desespero não ajudava na sincronia de minha corrida.- Saiam do caminho, por favor! – Um homem pedia espaço. A ambulância não chegaria tão rápido e eles decidem levá-lo de carro ao hospital. O numero de curiosos continuava aumentando.
- Isaque! Isaque... – Empurro algumas pessoas que cercavam o carro. Abria caminho enquanto gritava. A chuva caía sobre todos nós, porém eu sentia um peso maior, uma densidade maior de pânico e dor cair sobre mim.
- Ei menina, sai daí! Literalmente saltei diante da porta aberta do carro. Sou impedida quando alguém me agarra pela cintura. Isaque estava no banco de trás com a cabeça no colo de um senhor.
- Me deixa ir também! Por favor!
Novamente eu estava sendo erguida e afastada de Isaque. Meus gritos causavam incomodo em certas pessoas que só por estarem ali observando tudo, sem nem ao menos mover um músculo, se achavam no direito de me julgar.
"Que menina escandalosa!"
"Foi ela que machucou o colega"
"Uma criança quase mata a outra?"
"Onde esse mundo vai parar...".
- Me coloque no chão, me solta! Isaqueee!
- Solte ela! A voz de Melli me devolve uma porcentagem de calmaria. Talvez 3%, ou menos até. Como uma centelha debaixo daquela chuva, que brilha e some no mesmo instante.
Mas a angustia, ainda me consumia. Era impossível descrever o que eu sentia no momento. Arrependimento, preocupação, medo, agonia, dor, uma soma de sentimentos que resultavam no meu descontrole, meu desespero. Eu era um sistema de segurança que havia entrado em pane. De maneira imutável meus sentidos desafiavam minha sanidade.
-Isa... – Assim que volto ao chão, Melli tenta me acalmar. – Isaque está seguro agora...
-O quê? Me viro para Srta. Marli sentindo o peso em sua voz. A chuva corria por meu rosto simulando minhas lagrimas.
- Ai meu Deus... Ela leva as mãos à cabeça. Também estava perdida e sem saber o que fazer.
- Não foi isso que eu quis dizer meu amor... – Ela se aproxima estendendo os braços.
Um homem apenas observava logo ao lado. Com a barba mal feita e uma camisa preta abotoada de forma errada, sua aparência mostrava que se vestiu as pressas. Ele havia me afastado do carro e de Isaque. Seu olhar carregava alguma culpa naquele momento. Estava ali, sem se importar com a chuva, fazendo sua mente focar em tantos outros problemas que estavam muito acima de uma simples roupa molhada.- Mas foi isso que você disse Melli... – Eu não pretendia correr desta vez. – E eu não discordo de você.
Dois conhecidos de Srta. Marli levaram Isaque de carro ao hospital mais próximo. Torno a observar o carro enquanto ele dobra a esquina. Não tinha coragem de voltar a olhar nos olhos de Marli.
- Isa... – Ela tentou.
- Por favor, não me toque! Pude sentir suas mãos antes de tocar meus ombros.
Somente por não estar brava comigo, me fazia crer que ela entendia o que passava dentro de mim. Melli respeitou minha culpa, conseguiu entender a dor que se espalhara por meus punhos.
Mesmo sentindo que todos os meus dedos estavam quebrados, não era a dor física que mais incomodava.
Vou caminhando devagar, sentindo minha cabeça latejar. Interrompo a visão que tenho dos pés caminhando sobre as poças d'água ao estender minhas mãos doloridas pra perto do rosto. Tive a sensação de que estavam sangrando. Seguro o pulso da mão direita ao sentir que qualquer movimento me causava dor.
Foi então que naquele momento, meu corpo trouxe a conta. Todos aqueles golpes, gritos e lágrimas tiveram um preço. A maldita e dolorosa anestesia, composta de mágoa e tristeza, havia perdido o efeito. Minhas mãos doíam da carne até o osso. Ombros, joelhos e tornozelos. Minha cabeça parecia ter uma coroa de chumbo com as hastes afiadas. Enquanto caminhava, uma forte tontura faz tudo começar a girar. Esgotada apenas deixo meu corpo decidir por conta própria.
- Isa está tudo bem?
A voz de Melli desaparece aos poucos.
Aquela manhã foi ficando escura. Meus olhos decidem se fechar quando sinto meu corpo bater no chão.
Nenhuma dor pode ser sentida ao mesmo tempo que a outra.
A dor física não existia mais.
As luzes se apagam e as cortinas se fecham. O desmaio foi o ato final.
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Outras Proporções de Dor - Ato 1
AdventureAté que ponto somos considerados "resistentes" ao sofrimento? Isabelle ainda não descobriu o grau de maturidade e ingenuidade que uma criança de 7 anos e meio deve ter. Dona de uma mente inalcançavelmente fértil, Isa observa, imagina, cria, aprende...