A água gelada mais uma vez passa por meus pés enquanto observo o sol se pôr ao longe. O fim de mais um dia. Mais um dia perdido para mim.
Tenho que voltar para casa, onde minha mãe já deve estar me esperando em casa devido ao horário. Faz tempos que meu ânimo não se destroça mais com o pensamento de abandonar o mar para me preocupar com o que o resto da terra me oferece. Há dias que meu único querer é sumir nessa imensidão azul... o mesmo mar que me deixou órfã de pai e me pregou peças quando criança. Esse mesmo mar que nunca fez nada além de mal para mim, mas que eu amo com todo o coração.
Mas a lua do outro lado do horizonte me desperta dos devaneios. Amanhã tem tanto escola como trabalho. Expiro, visualizando as ondas se agitando diante de mim. Sigo para casa com a areia grudando nos pés e o sentimento de que meu último contato com o mar foi recentemente, mesmo tendo consciência que essa minha empolgação vai se dissolver quando minha irmã ver a sujeira em frente à nossa casa. Já escuto as reclamações dela, que são desarmadas com um simples “sei que não foi você quem limpou”.
Os últimos pescadores já se retiraram antes mesmo do sol se pôr. A floresta que separa a cidade da praia é repleta de animais aos quais muitos têm medo. Porém, sempre andei sozinha e nunca me deparei com um bicho mais ofensivo do que um pássaro. Não posso deixar de lado a realidade do meu medo do que tem no escuro. Atravesso a densa floresta sem problemas, respirando fundo enquanto minhas mãos percorrem bolso por bolso e não acham nada além de umas poucas moedas que não dão para nada. Mais um motivo de reclamações para Cristina, minha irmã. Logo que bato na porta, a própria me vem atender. Olha para meus pés em reprovação, mas não diz nada. São nesses momentos que descubro que discutiu com o namorado e evita discutir comigo também. Talvez porque eu posso ter totalmente franca com ela e ainda terá de ver meu rosto amanhã, quando eu sair para a escola, que ela deixou de frequentar para se apoiar totalmente em seu “amado”, que lhe prometeu o céu, a terra e o mar mesmo tendo somente um pequeno pedaço de terra – como nós – para chamar de lar. E ainda por cima quando eu sair à noite para trabalhar, quando eu olho por cima do ombro para Cristina e ela não se mover para nos ajudar e acompanhar.
- Será que não vai amadurecer nunca? – Ela pergunta mais para si mesma e finjo que não escuto, passando por baixo de seu braço apoiado na parede para adentrar a casa.
Vou direto para o meu quarto. O segundo lugar que me traz mais tranquilidade nesse mundo. O cômodo é usado somente por mim, mas só tem espaço para dar quatro passos entre a cama e o armário quase vazio. Nossa mãe nos cedeu seu quarto para que Cristina e eu dividíssemos, mas ouvi-la reclamando também enquanto tento dormir... é demais para mim.
Olho para as paredes gastas, um dia pintadas por nosso pai, mas já caindo os pedaços também por causa da chuva. A beleza da casa nos deixou de ser uma preocupação à medida que fomos decaindo financeiramente. E a menção de Cristina de nos mudarmos foi rapidamente repudiada quando minha mãe falou de nossas lembranças. Dei apoio à ela, apesar de meu querer ser diferente. Eu queria ficar aqui porque é uma das casas mais próximas do mar.
A noite cai e ouço a porta da frente ser aberta. Ou minha mãe chegou ou Cristina saiu para ver o tal garoto. Não é propositalmente para fazê-la sofrer, mas quando minha palavra passou a valer mais do que a dela, a proibi de casar com ele. Além de não oferecer nada à minha irmã, o nome do pai do garoto é sujo. A chave sendo jogada na mesa é o som que me indica que minha mãe chegou.
A umidez em minha testa me sugere o que está acontecendo lá fora. Chuva. Olho para cima, e água pinga mais uma vez em meu rosto. Apenas quatro pontos do teto são lugares de onde caem a água da chuva.
Resolvo ver minha mãe. Com certeza deve estar tentando conter uma enxurrada no teto da cozinha. Com certeza, sozinha. Cristina deve ter saído para ver o namoradinho dela. Nada contra ele, mas tenho minhas suspeitas sobre ele e minha irmã tem que ter outras preocupações.
Começo a passar pano no chão da cozinha e tentar secar as áreas mais encharcadas. Realizado o trabalho, minha mãe contou que o clima na casa dos Facchin não estava bom hoje. O marido da Sra. Facchin voltou para casa depois de meses de ser expulso, pela esposa. Ela descobriu que seu marido, ou seu ex marido, a traía. Minha mãe disse que os dois passaram a tarde brigando. Ainda bem que só vou trabalhar amanhã e não tive que presenciar nada hoje. Amanhã, depois da escola, volto para casa e vou direto para o trabalho.
Enquanto deito-me para dormir, a minha rotineira lembrança de alguns anos atrás chega à minha mente. Como todas as noites.
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Entre Sereias - O Medalhão De Ares [Livro I]
Fantasy"É possível lutar mesmo estando jorrando sangue. E acredite: Eu sou o mais adequado para afirmar isso." - Ares, deus da guerra. Elizabeth perdeu o pai quando tinha apenas onze anos, o que fez sua vida mudar, pois toda a paixão pelo mar a ela concedi...