Capítulo 18

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O chão duro contra as minhas costas é um dos principais motivos que não me deixam dormir. Ou melhor, que não me deixaram. O principal foi, sem dúvida, o nó da garganta, que não pôde ser desfeito por conta da impossibilidade da queda de lágrimas. Pelo menos, enquanto estive lá em cima e me situei da perda, pude ter certeza de que meu corpo ainda era capaz de liberar água. Eu não preciso beber água, e por isso pensei que fazer coisas como chorar seriam impossíveis.

Quando eu achei que minha vida havia desabado, eu errei. Eu já estava quase conseguido arrumar a bagunça que estava em meu psicológico, mas tudo virou de cabeça para baixo. A proporção das más notícias em minhas costas fazem minha insônia piorar. Às vezes eu conseguia pegar no sono, mesmo que por alguns minutos, mas agora... Sou obrigada a olhar o teto da caverna, consciente de que estou sendo observada - junto com outras milhares de sereias - por Liliane. Quando voltei, ela estava muito para a região mais profunda da caverna, em uma de suas rondas, e acabou não vendo quando exatamente voltei.

Agora, recordando dos momentos em que eu pensava no meu futuro, percebi que eu achava minhas possibilidades monótonas demais. Eu pensava em ser professora em uma escola secundária, não casar, não ter filhos. Agora percebo que aquela vida seria melhor. 

 - Está vermelha. Tudo bem? - Uma voz preocupada me perguntou. Liliane.

 - Estou bem. É só saudade de casa. - Respondi. Em parte, é verdade.

 - Às vezes eu também tenho saudades de casa. - Confessou.

 - É diferente. No seu caso, você tem certeza que um dia vai voltar para casa. - Me sentei. 

 - Não essa casa. Eu não nasci sereia. - Ela confessou, com um olhar distante. Posso até imaginar a série de recordações que estão se passando em sua mente. Não, não imagino. A história de Liliane sempre me pareceu uma informação fora de alcance.

 - Sério? - Em situações como essa, não consigo disfarçar incredulidade na voz.

 - Eu fui a primeira Elizabeth que Vitória achou que fosse a verdadeira. Ela apareceu pessoalmente em minha casa, ameaçando toda a minha família. 

 - Como consegue ser amiga dela? Depois das ameaças, digo.

 - Ela reconheceu o erro dela e me acolheu aqui.

 Mas o reconhecimento do próprio erro não vai fazer com que você possa voltar a ficar com sua família, queria gritar. Nunca em minha vida eu aceitaria Vitória como amiga. Foi sob ordens dela que eu vim parar aqui. Mas eu ainda tenho uma vaga esperança, guardada no cantinho do meu coração, que eu acorde suada e tossindo, assim como eu faço quando tenho pesadelos. E que minha mãe acorde com meus gritos, me perguntando o que eu estava sonhando, me aconselhando.  

Não importa o acolhimento que Vitória me deu. Ela me trouxe até aqui por interesse próprio - até porque ela não sabia que era eu - e me fez perder uma vida normal.

 - Sabe que isso não compensa o erro dela. Pense na vida que poderia ter levado se não fosse por ela.

 - Eu não consigo, não mais. Um dia você vai aceitar a vida que tem e parar de imaginar o que pode ter perdido, isso só piora tudo. - Respondeu, como se estivesse expressando o que a tempos havia sido guardado na mente.

 - Não sente saudade de sua família? 

 - Claro que sinto! Não estou dizendo para não sentir saudade de sua família. Me sentiria um monstro se não sentisse saudade de minha família.

 - E por que não foi visitá-los. Como fomos antes de ontem, anônimas, digo?

 - Eu não posso. - Ela respondeu, e quando um "Por que?" já estava se formando em meus lábios, ela respondeu: - Já estão mortos há vinte anos.

 - Você não tem cara de ter mais de vinte anos. - Disse. Para as mulheres normais, isso seria um elogio consolador, mas para Liliane, é algo realista. Tanto as suas feições quanto o seu jeito um pouco desengonçado em se mover a denunciam de sua idade.

 - E não tenho, teoricamente. Fui transformada em sereia com dezenove. Vitória não queria que eu te contasse, mas não envelhecemos.

 - Eu vou ficar com dezesseis anos para sempre? A minha família vai morrer e eu vou ficar da mesma idade? - É como se eu tivesse levado um tapa no rosto.

 - Um dia você se acostuma... - Ela começou, mas eu interrompi.

 - Eu não vou me acostumar. - Minha única vontade agora é gritar, mas as outras sereias estão dormindo. - As pessoas que eu amo vão morrer e eu vou permanecer viva, sem qualquer outra pessoa que ame no mundo. - Ela abriu a boca para argumentar, mas eu não deixei que continuasse: - Se me der licença, vou dormir. - Me deitei de costas para onde ela estava sentada.

Não acredito que ela escondeu isso de mim por tanto tempo. Acho que você foi a pessoa mais próxima de ser minha amiga, as palavras ecoaram de uma vez só em meus ouvidos. Percebi a besteira que havia dito. Aos olhos dela, aquilo foi uma facada. Ela me contou tantas coisas que não deveria contar... E consegui visualizar tudo o que se passou, no ponto de vista dela: Acabei de perder a confiança, que estava tão preocupada em não sumir, e descobri que na verdade não existia nada. 

Com o canto do olho, percebi o que se passava atrás de mim. Ela se levantou, calada e antes de prosseguir com o seu trabalho, disse:

- Boa noite. - Disse, com uma voz áspera e até um pouco irônica. - Desculpe te incomodar.

Entre Sereias - O Medalhão De Ares  [Livro I]Onde histórias criam vida. Descubra agora