Capítulo I - Parte 2

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     O que eu vejo lá em baixo é um mar de sangue, vísceras e fogo. Vejo corpos de pessoas desmembradas flutuarem em seu próprio sangue. Vejo milhares de centenas de pessoas se afogarem entre as entranhas enquanto sua pele é derretida pelo fogo. Vejo pessoas extremamente magras devorando umas às outras. Vejo larvas gigantes devorar os demais, e, em seguida cuspir seus restos. Vejo outras que tentam escapar de alguma forma, subindo pelas paredes, mas são impedidas por seres de forma demoníaca que as espetam com uma lança. Vejo mais outras coisas tão grotescas que ainda não foram inventadas palavras para descrever.

   Desespero-me ao extremo, pois nunca pensei que veria a perversidade do inferno de tão perto. Arrependo-me naquele mesmo instante de ter olhado para baixo. Tento prosseguir meu caminho, pois ainda falta metade. Começo a apressar meus passos. Tenho medo que eles possam ter me visto. Por quê? Por que isso está acontecendo comigo? Os gritos lá em baixo se agitam cada vez mais à medida que vou avançando. Será que eles me viram? Tento fazer de tudo para que eles não notem minha presença.

   Tarde demais! Eles já me viram. Já estão vindo atrás de mim!

   Meu erro foi ter olhado para baixo quando eu devia ter simplesmente ignorado e prosseguido meu caminho. Eles ficaram irritados, irritados porque olhei para eles. Os demônios não gostam de ser vistos, e, quando você os vê, eles te atacam.

   Seria o inferno, ou uma fatia dele que reside ao fundo daquele abismo?

   A bestas escalam as paredes do abismo com grande velocidade. Um desespero enorme toma conta de mim. Tento correr, mas sou impedido, pois não há como sem que eu caia. Meu coração acelera, rufa, como se fosse um tambor. Ainda falta muito, ainda falta muito! Reconheço que tudo o que está acontecendo, desde o momento em que me deparei com uma ponte, é consequência de meus atos, minhas dúvidas e desobediências.

   Será que estou passando por uma prova? Um homem me dissera que minha jornada seria árdua, porém gloriosa no final. Eu simplesmente tinha que ter obedecido e continuado meu caminho sem hesitar. Agora, estou aqui. Se fora uma prova, isso significa que falhei? Em nenhum momento tive o direito de saber que rumo tomará meu destino. Para onde caminho? E por que tenho que passar sobre o inferno em uma ponte tão estreita? São perguntas que me negam as respostas.

   A ponte chacoalha, atrasando-me, dificultando mais ainda o que já é difícil. Ainda falta muito para eu atravessá-la por completo. As criaturas se agarram à ponte e vêm em minha direção. Umas sobre a ponte, outras caminham debaixo dela. Eles são rápidos como lobos ferozes. Meus passos atordoados são inúteis nessa situação. Sei que não vou conseguir. Sinto medo do que virá a seguir. Será que serei levado àquele mar de condenação e perecerei pelo resto da vida? Meus pés ardem. Estou exausto, sem forças para enfrentar qualquer força que esteja acima da minha. Penso em desistir, em me soltar das cordas e deixar meu corpo cair. Ainda falta muito, e os demônios estão me alcançando rápido demais. Estão a poucos passos de cravarem suas unhas e dentes em minha carne.

   Desisto! Não vou conseguir.

   Cesso meus passos e paro ali mesmo. Minhas mãos seguram firmes as cordas. Fecho meus olhos e escuto os gritos de agonia das pobres almas que fervem sob meus pés. Posso sentir o cheiro repugnante pairar por todo canto, como se fosse um caldeirão de carniça e humilhação. A partir desse ponto, estou desistindo da minha jornada. Penso como teria sido se em nenhum momento eu haveria de ter tido dúvidas quanto ao meu destino. Imagino que seria diferente. Muito diferente. Lembro que no começo de minha caminhada eu andei sobre uma estrada de terra macia, tão macia quanto pisar em algodão, porém, elas vieram a se tornar pedras, pois em certo ponto duvidei do meu destino. Aqui estou novamente, e dessa vez será o fim.

   Posso ouvir, separadamente, cada batimento do meu coração, como se fosse um relógio, demarcando os últimos segundos da minha vida. Tick, tock, tick, tock, tick, tock... Tick... Tock... Tick... T-o-c-k. Sinto as pegadas das criaturas bem atrás de mim. Eles saltam sobre mim, como uma onça que salta sobre sua presa. Sinto o cheiro do seu hálito que anseia saborear minha carne, e o abraço de suas garras que me levam para o fundo do abismo. Sinto a queda rumo ao fogo enquanto eles me destroçam no ar, rasgam minha carne, me desmembram e...

   Não sinto mais nada! Abro meus olhos e não creio no que vejo. Eu morri? Não, eu não morri. Não estou mais caindo, e nem demônios destroçam meu corpo. Estou com meus pés firmes sobre o chão. Meu corpo está inteiro. Olho para trás, e lá está a ponte e o abismo. Além dela está a estrada de pedras lisas por onde andei. À minha frente segue a estrada para rumo ao meu destino que pensei ter perdido. Porém, não é mais feita de pedras, e sim de espinhos. 

No Meio do CaminhoOnde histórias criam vida. Descubra agora