Capítulo III - Parte 1

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A CHANCE


   Sinto a superfície áspera e dura da estrada além das brasas. Antes de tudo, olho para trás, e vejo as cinzas do que restou das bestas voarem pelo ar. Só então, depois de suspirar uma última vez e ter a certeza de que estou a salvo, é que vou dar importância para os estragos que me causou esta caminhada tão curta, porém dolorosa.

   Tendões, ossos e nervos expostos, além da carne flamada desprovida de pele e couro, que agora sustenta o peso do meu corpo sobre o chão rochoso do novo caminho. Tão doloroso quanto andar sobre o fogo é ter que andar sobre um asfalto de rocha áspera com os pés em carne viva.

   Penso por um segundo em reclamar, em me alto questionar, mas reconheço que mereço tais flagelos e devo aceitá-los como punição por minha arrogância e desobediência.

   Olho para trás uma última vez. A estrada de corpos humanos. O trecho de brasas ardentes. Dou as costas para os caminhos passados, e agora, começo a trilhar a estrada de chão duro.

   Os corvos já não me seguem mais. Nem grunhidos, nem sussurros, nem suspiros me vêm mais aos ouvidos, somente o silêncio. Estou sozinho outra vez. Cada passo que dou é como se eu estivesse andando sobre um ralador de queijo, que desgasta meus pés pouco a pouco. Lento e doloroso.

   O céu acima de mim ainda mantém o mesmo clima monótono e depressivo de antes. Não há cores e nem vida. A paisagem ao meu redor tomara o lugar das árvores que, mesmo secas e mortas, me lembravam do caminho que deixei para trás. Agora só vejo uma imensidão plana e interminável de chão rochoso e pedras sobre mais pedras. É angustiante pensar que eu poderia não estar aqui.

   É angustiante pensar...

   Passos sobre passos... Passos intermináveis que não me levam à lugar algum, e ainda insisto em continuar andando.

   Tento me lembrar de uma vida que tive, mas que não me pertence mais. As lembranças são vagas e turvas, porém, ainda me lembro dos meros detalhes.

   Lembro-me de uma vida que não precisei andar como ando agora, mas que tive caminhos a trilhar. Lembro também que alguém me aconselhava sobre meu destino; algumas vezes eu o ouvia, outras não. Deparei-me com vários caminhos para seguir; alguns certos, outros errados. Lembro-me que em vários meios dessa vida me deparei com obstáculos e dificuldades; algumas eu venci, outras fraquejei.

   Lembro-me vagarosamente de uma vida que tive e que é semelhante a esta em aspectos, no entanto, não lembro como ela acaba.

   Nesta outra vida, no caminho que escolhi seguir, será que consegui chegar ao fim da jornada com êxito?

   Temo por mim ao pensar tais coisas.

   Sigo andando em passos trêmulos e bambos, pois meus pés já não suportam mais o caminho. Ao longo da estrada, no chão menos improvável, surgem palmeiras cravadas na superfície de pedra. Palmeiras tão alto que parecem transpassar a barreira do céu e ir mais além.

   Na parte mais alta, onde deveria haver as copas, no lugar delas, há uma pessoa despida, pregada ao tronco. Seus braços abertos e os pés juntos lembram um crucifixo. Linhas de sangue descem pelo tronco até chegarem ao chão, e continuam escorrendo nas brechas que encontram pelo caminho, como se fosse um rio em sua jornada rumo ao oceano.

   Olho para as próximas palmeiras que seguem a beira da estrada. Do mesmo modo, cada uma segura uma pessoa em seu topo. E riachos e oceanos de sangue descem pelos troncos lisos, inundando as brechas e rachaduras que compõem o firmamento impenetrável.

   Olho para o sofrimento destas pessoas, e, durante esse tempo em que penso o que tais criaturas fizeram para merecer algo tão terrível, eu acabo esquecendo a dor que sentia nos pés. O sofrimento destas pobres almas é tão intenso que chega a sobrepor a minha, que não é nada comparado.

   Eles não reclamam. Nem sequer gemem ou murmuram.

Por um breve momento me coloco no lugar deles, e vejo que não suportaria tal castigo.

   Sigo meu caminho árduo, pois não posso ajudá-los. Não posso ajudar a mim mesmo.

   Não há quem possa

No Meio do CaminhoOnde histórias criam vida. Descubra agora