Capítulo V - Parte 1

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A CONDENAÇÃO


   Assim como aquele primeiro casal da face da terra eu também fui enganado pela serpente. Assim como eles, foi tomado de mim o paraíso e me dado em troca, como punição, o inferno. E aqui estou eu, longe do meu destino e debruçado sobre a rocha de açoites.

   Olho para trás e vejo a fila de homens e mulheres nus que aguardam por sua vez neste lugar. Os três carrascos se posicionam às minhas costas. Sobre uma parte mais elevada do chão, logo mais à minha frente, um demônio com argolas e correntes envolta de si ergue-se de seu acento apontando para mim. Este é o Juiz, e grita minha sentença:

   "Três vezes trezentos e trinta e três açoites!"

   A primeira chicotada me pega de surpresa. Espanto-me com o estalar e a pressão das lâminas cravando em minhas costas. Mas as pontas e lâminas não podem ficar ali o tempo todo, elas têm que serem puxadas de volta, para preparar-se para mais outras, e esta é a pior parte. Os ferros profundos saem rasgando a carne das minhas costas, rompendo nervos, músculos e vasos sanguíneos. A ceiva de meus pecados escorre quente sobre minha pele e, antes que ela pudesse pingar no chão, os ferros do próximo chicote ferem-me novamente. E sem mais lentidões, uma por uma, onde quer que elas peguem, as açoitadas vão sendo tomadas a mim, fatiando-me sem uma gota sequer de misericórdia, como seu eu fosse um simples pedaço de carne.

   Meus gritos de horror retumbam em meus ouvidos e causam pavor em mim mesmo ao ouvi-los de volta.

   As bestas gritam com grande satisfação o número das chicotadas, que dura uma eternidade.

   Setecentos e oitenta e um!

   Setecentos e oitenta e dois!

   Setecentos e oitenta e três!

   Setecentos e oitenta e quatro...

   E sinto que já não existe mais carne em minhas costas para serem açoitadas.

   Oitocentos e três!

   Oitocentos e quatro!

   Oitocentos e cinco!

   Oitocentos e seis...

   A chuva incessante arde em minhas feridas. Já não tenho mais forças para gritar ou sequer gemer. E sinto que já não existe mais sangue em meu corpo para ser derramado, desperdiçado, na lama deste lugar imundo.

   Novecentos e noventa e seis!

   Novecentos e noventa e sete!

   Novecentos e noventa e oito!

   Novecentos e noventa e nove!

   Por fim, cumpro minha sentença, e as chicotadas lacerantes cessam. Só me resta um pedaço mastigado de um homem que um dia eu fui.

   Observo no chão, o pequeno riacho de meu próprio sangue desaguar em um mar composto pelo meu e o sangue de outros de já estiveram aqui.

   Sou retirado de cima da pedra e jogado no chão lamacento. Sinto-me um porco abatido. Observo a face deprimente e desamparada do homem que será o próximo. Seus grandes olhos me fitam, como se pudessem falar, clamando por socorro.

   Durante a minha jornada, quando andei sobre pessoas costuradas umas às outras e quando vi outras pregadas no alto de palmeiras, eu sempre me perguntava o que tais almas fizeram para merecer tais castigos.

   Agora, só agora, da pior forma, eu sei as respostas.

   Vejo as outras almas em carne que esperam acorrentados em uma fila enquanto me olham largado no chão, e me pergunto se elas também se perguntam o que eu fiz para merecer tal castigo.

   Talvez não sejam os mesmos erros que elas cometeram.

   Um monstro atrofiado me puxa pelas correntes e, enquanto sou arrastado pela lama, vejo aquele homem ser obrigado a se ajoelhar sobre meu sangue e se debruçar sobre a coluna de pedra. Ele me olha de longe, como se me tivesse como exemplo do que viria a acontecer com ele.

   Sou posto de pé, e minhas correntes ligadas a de outras pessoas. Observo a carne exposta das costas do homem que está à minha frente. Esta é a fila dos açoitados. Ouço gritos horripilantes adiante. O que será dessa vez? 

No Meio do CaminhoOnde histórias criam vida. Descubra agora