Capítulo VI - Parte 2

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   Uma cena familiar surge em minha mente e me leva para um tempo que eu já havia esquecido.

   Está de noite, e a chuva bate forte no para-brisa. Estou nervoso, tremendo, e raivoso. O marcador conta noventa quilômetros por hora, e continua a subir. O celular insiste em tocar, é Joyce. Não pretendo atender, e ignoro todas as suas ligações. Quatro até agora.

   Júlia chora no banco de trás e insiste em perguntar para onde estamos indo. Penso em ignorá-la também. Não! Respondo dizendo que estamos indo pra casa, pra minha casa. Ela pergunta novamente, e quer saber por que a mãe não está conosco e por que brigamos e por que estamos correndo tão rápido e por que não a respondo e por que... Ignoro tudo. Quase cem por hora. Uma carreta lenta me atrasa e me faz perder tempo. Merda de motorista, não dá para ir mais rápido!

   O celular toca novamente.

   Há um carro vindo mais a frente e, entre nós, uma curva. Está longe ainda, dá tempo, penso eu. Entro na contra mão e tento ultrapassar a carreta que parece estar correndo mais rápido agora, como se fizesse de propósito para não me deixar passar. Estou na metade ainda. Aproximo-me da acurva. A buzina soa alto. A luz do farol ofusca minha visão. Tento voltar para meu lugar, mas não dá tempo. Júlia chora, e grita meu nome pouco antes de uma luz brilhante engolir tudo de uma vez e...

   Em pé, ali, sobre o asfalto que parece não existir para mim, vejo meus restos serem colocados em um saco plástico laranja. O carro está em pedaços. Está irreconhecível. O celular trincado rumo ao chão ainda marca as cinco chamadas perdidas de Joyce, e uma mensagem de texto dizendo:

   "Volte para casa, por favor."

   As marcas da brutalidade dos meus atos são visíveis no pequeno corpo da minha Júlia, que é coberta por um plástico negro. Sinto uma mão fria tocar a minha, e sou engolido por um buraco de luz e memórias, onde em um piscar de olhos vejo toda a minha vida passar diante de mim. Toda a vida que eu vivi e toda a que eu iria viver, caso meu destino tivesse tomado outro rumo. Vejo tudo isso uma última vez, enquanto uma lágrima salgada faz caminho em minha face, e já não tenho mais acesso às minhas memórias.

   A corda se parte e despenco do alto da árvore, e, enfim, posso respirar livremente. Olho ao redor a procura da Morte, mas ela se fora, também me abandonara.

   As cenas que vi em sonho lúcido se repetem centenas e centenas de vezes, me torturando, jogando na minha cara que o culpado disso tudo sou eu. As memórias ficam me remoendo por dentro, e me encho de angústia, culpa e solidão, e outros sentimentos amargos que só os que vivem aqui podem sentir.

   Olho para o céu, e imagino poder alcançá-lo com as mãos, porém sei que é ilusão e que não sou merecedor de tal lugar.

   Meu peito aperta, como se houvesse uma pedra gigantesca sobre mim, quebrando minhas costelas e esmagando meus órgãos vitais. E as cenas não param de me torturar.

   Joyce... Perdoe-me... Perdoe-me por tão ter ouvido suas palavras e por ter lhe causado tanta dor e sofrimento. Eu matei nossa filha...

   Júlia... Minha pequena Júlia... Tão inocente. Perdoe-me por ter interrompido sua vida quando ela ainda estava começando. Perdoe-me por te impedir de crescer. Perdoe-me por te negar que um dia se apaixonasse, que se decepcionasse, que levantasse para tentar outra vez. Perdoe-me por te impedir de formar uma família, de envelhecer com a paz que merecia e, por fim, quando chegasse a hora, abraçar a morte como amiga. Perdoe-me por tudo...

   Se Deus pudesse me perdoar...

   Arrependimento...

   Arrependimento, não é somente uma palavra. Arrependimento é você querer mais do que tudo na vida voltar atrás e não fazer as mesmas escolhas erradas. Tal sentimento dói, como se milhares de lanças e facas transpassassem lentamente seu coração. É amargo e angustiante de todas as formas possíveis, pois você sabe que jamais poderá voltar atrás. É como se alguém arrancasse seu coração com as próprias mãos e o esmagasse como um tomate podre, e depois o colocasse de volta no lugar.

   É o que sinto.

   Reconheço meus erros mais uma vez. Mas dessa vez é diferente. E abraço as torturas do inferno como bem merecidas. Que os ciclos infinitos de castigos venham a mim.

   Você, que sempre acreditou em meu potencial de não me desviar do caminho certo, deve estar desapontado comigo agora.


   Você talvez devesse parar de ler agora, pois este é o fim da minha história. Não é o fim que eu e você esperávamos, mas é um fim, e, como todos os fins, não há mais nada de bom para vos contar.


   Este é meu fim.    






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