Capítulo V - Parte 2

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   Somos banhados com água salgada. A dor é intensa, e a carne queima como fogo.

   Em passos lentos e exaustos a fila continua a andar.

   Os barulhos das correntes a cada passo. Os gritos que vêm de trás e os que vêm à frente. Nunca, em toda a minha, vida pensei em um dia chegar a este ponto. Sempre sonhei com as palavras de caminhar rumo a um lugar tão belo que a vida pode ser palpável com as mãos. Coloquei meu primeiro pé sobre minha estrada confiante que um dia chegaria lá. Tão confiante em mim mesmo que me esqueci de confiar em quem mais devia.

   Arrependimentos? Isso é inútil aqui!

   Perdão? Essa palavra não existe nesse lugar!

   Penso em me ajoelhar e clamar por perdão, gritar o mais alto que eu puder, mas lembro de que ninguém me ouvirá.

   Sou levado à beira de um lago de água vermelha, assim como a chuva que não cansa de cair, onde uma besta de seis braços e face retorcida acorrenta uma bola de ferro em meu pescoço e, em seguida, joga-me nas águas de morte. Vejo outros milhares também caírem e se afogar. Vejo seus corpos agonizando e se retorcendo antes de enfim morrerem. Já começo a sentir a falta de ar. Por mais que eu lute não sou mais forte que a bola de metal que me puxa para baixo. Sem ar para respirar, a água começa a entrar pela boca e nariz, e me vejo morrendo lentamente.

   Sou puxado para fora da água. Vomito todo líquido que engoli e, enfim, posso respirar. Não tão rápido! Antes que eu pudesse encher meus pulmões de ar, sou jogado novamente nas águas vermelhas, e, mais uma vez sinto a morte me abraçar e me apertar, assim como fazem as serpentes.

   Sou puxado para fora, e jogado novamente, e novamente, e centenas de outras vezes mais. Sou como um brinquedo; estou aqui para satisfazer as vontades dos monstros que sentem prazer em nos ver morrer quantas vezes desejarem.

   E não para por aqui...

   Tenho toda minha pele arrancada de meu corpo e sou jogado em um caldeirão de óleo fervente.

   Tenho meus membros arrancados por criaturas metade mecânicas e metade orgânicas.

   Sou posto em uma fila para ser engolido por uma larva gigante de seis cabeças, onde cada cabeça possui um imenso orifício cheio de dentes pontudos que formam uma espiral infinita. Sou mastigado, engolido, digerido, e depois expelido para fora, inteiro, para novamente me juntar aos outros que aguardam na fila para serem devorados, pela milésima vez.

   Sou submetido a diversas outras torturas e humilhações tão grotescas que sinto que não devo mais continuar a contar minha história, porém, por mais cruel que seja, eu devo contá-la à vocês.

   Os corvos que devoravam os corpos de pessoas penduradas por ganchos saem voando pelos céus. A trilha sonora tribal composta por tambores uivantes se cala, a chuva vermelha para, e o ciclo quase interminável de tortura e danação por fim termina. Por enquanto...

   Assim que as nuvens tornarem-se novamente escarlates, quando relâmpagos gritarem em silêncio e trovoadas abalarem a terra, nesse momento, choverá sangue novamente, e o ciclo infernal tomará início mais uma vez.

   Não é o fim das aulas, é apenas o recreio.

   Largado em meio à lama mal cheirosa, olho tudo ao me redor e vejo os pobres perdidos vagarem pelo vale da morte sem terem para onde ir. Eu sou um desses pobres perdidos. Minha vida agora, se é que se pode chamar isso de vida, se resumirá na eternidade de tortura e sofrimento seguido de um breve momento de pausa, onde sou livre para andar sobre fezes e outras porcarias.

   Será que ele me vê agora, será que está contente?

   Pergunto-me onde aquele homem de quem me lembro tão pouco deve estar agora.

   Desapontado. Deve estar desapontado.

   Quem não ficaria? Eu estou desapontado comigo mesmo. Sinto vergonha de mim. E do que adianta? Errei tanto e mesmo assim ele sempre me dava brechas para concertar, e eu, com meu egoísmo, sempre escolhia as portas mais largas. 

No Meio do CaminhoOnde histórias criam vida. Descubra agora