Em transe de amor

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          O meu caminho de volta para casa foi longo, pois a distração era enorme. A minha mente ficou naquele restaurante. Eu me senti muito mal em tê-la deixado daquela forma. Eu não deveria ter plantado aquelas incógnitas. O professor Albert disse que iria me fazer uma visita, por pouco não esqueci deste compromisso. Aumentei os passos e pensei em correr, mas os transeuntes foram as barreiras para aquele meu percurso de 500 metros. Porcos! Irritado comecei a refletir sobre a condição do homem hoje aqui na Terra. A população cresceu robótica. Vejo em todos um movimento sincronizado...

Minha vontade sempre foi ser diferente. Em que pensavam aqueles seres que por mim passavam? A maioria era tomada por uma sequência rotineira de emoções e desejos nunca inéditos. A tecnologia tornou essa maioria escrava do tempo. Mas quem sou eu para mudar tudo isto? Pior que a condição do homem é a minha condição, pois diferente deles, vivo num ambiente que não é o meu. Toda a minha angustia se resume em não ser adepto das ilusões. Estranho ver aquela garota tão bela numa situação tão anormal que é a convivência com o seu gerador, ou melhor, pai. Ela tinha uma loucura angelical.  Fazia festas em meus sonhos... Naquela noite não parei de pensar em sua pessoa e na minha tamanha falta de cavalheirismo.

Fiquei curioso para conhecer o perverso pai que ela dizia ter. Às vezes, confesso, passam por minha mente desejos de cometer um crime de justa causa, flashes me faziam pirar e, tudo que eu via, eram as minhas mãos sangrando e um corpo estirado no chão. Já me perguntei várias vezes o porque de tal extinto assassino tomar posse de mim. Sorte não tê-lo dado ouvidos! Gosto da liberdade, apesar de não aparentar. Quando me afasto do mundo, é para melhor analisá-lo. Não sou um Freud, mais tenho cá minhas habilidades.

Às 19h, minha campainha gritou rouca em meus ouvidos. Eu estava tentando abrir uma das últimas caixas que trouxera de Weimar. Na porta, um senhor que aparentava ter mais de 50 anos, baixo e largo, pediu-me licença para invadir o meu espaço. Eu já estava esperando-o. Permiti-lhe adentrar no recinto sem problemas. Antes que eu começasse qualquer assunto, ele ousou falar da minha necessidade de voltar a assistir as aulas na Bauhaus. Já haviam uns 3 meses que eu estava afastado dos estudos presenciais. Ele queria me colocar como o seu auxiliar estagiário, mas para isto, seria necessário regularizar a minha situação com a matrícula. Suas propostas eram boas. A remuneração não era das mais altas, mas era atraente. Mesmo com os benefícios, eu não estava disposto a prender-me no momento a nenhum tipo de rotina.

Era um aluno cobiçado, tinha ideias produtivas, parte delas fizeram mudanças na Universidade.

Sentado num móvel improvisado a parecer uma cadeira, encostou o dorso numa guilhotina enferrujada e ali mesmo tirou os sapatos, pois reclamava de calos nos pés.

Tentava dar-lhe atenção, mas a minha distração conduzia-me a ações diversas que o deixava um pouco chateado. Ele quis falar do velho Rudolf, como lamentava por minha perda. Tentava fugir do assunto, mas seus olhos ansiavam a minha atenção mais que falar da faculdade e da proposta de trabalho. Queria ignorá-lo, mas não podia! Não tinha como. Gostava de tê-lo como amigo, e não podia decepcioná-lo. Para quebrar um pouco do teor da nossa conversa, perguntei-lhe se podia servi-lhe um chá ou café. Com um riso meio preso, ele afirmou que sim, desde que eu não esquecesse a borra do café em sua xícara. Descontraído, caminhei para um cômodo minúsculo que eu ousava chamar de cozinha.

Já são 23h, o meu corpo inquieto pede desesperadamente por uma atividade. Peguei um papel A4, pisado, que estava no chão, e comecei a rabiscar o rosto da garota que ainda não me saia da cabeça. Adormeci com o lápis não mão e o queixo no desenho que, a meu ver, representava um progresso técnico bastante evidente.

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