Intervenção

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Floresta da Cidadela


Ainne estava encolhida, o frio tomava seu pequeno corpo. Sua mãe, uma mulher de pele muito escura e com os vincos da idade já marcando sua face, tentava a todo custo manter o fogo aceso sem precisar adicionar madeira. Ela temia que a fumaça atraísse o perigo.

Estavam no fundo da caverna, ainda assim, ela conseguia ver a paisagem pela imensa abertura natural, o vento cortante castigava e os respingos da fina garoa, misturada com pequenos flocos de uma neve distante deixava tudo ainda mais difícil, então seu lado materno lhe pediu que arriscasse e ao olhar mais uma vez para Ainne ela colocou mais dois tocos de madeira no fogo. Levantou uma sobrancelha misteriosa para a filha, e com esse gesto arteiro conseguiu arrancar dela um sorriso. Ainda mantendo o olhar misterioso, ela pegou um pequeno saco feito de retalhos trançados e retirou de dentro três batatas.

Ainne olhou com gula para aquela raridade, tentou imaginar qual o preço sua mãe pagou, não conseguiu pensar em nada valioso o bastante para conseguir pagar por aquilo.

— Venha sentar com a mamãe, Ainne. Hoje você completa seis anos, meu pequeno anjo, e temos que comemorar.

Ainne levantou com esforço, já sentindo pena de perder o calor que acumulava nas juntas, mas nunca resistiria aos braços de sua mãe. Mesmo que congelasse até conseguir chegar a ela. Sentou no colo quente e aguardou ansiosa as batatas ficarem assadas. Sua mãe sorriu ao ver a pressa e lhe chamou atenção segurando seu queixo.

— O fogo está moroso, não vai ser rápido. Que tal uma história? Pergunte o que quiser e te contarei até que as batatas fiquem prontas.

Ainne amava histórias, amava tudo o que sua mãe falava, pois ela quase nunca falava, na maioria do tempo estava ocupada tentando trazer algo de suas excursões ao centro da Cidadela. Era lá que vivia a andar entre os clãs pedindo e pedindo e implorando. Muitas vezes apanhava como resposta aos pedidos em dias ruins, e em dias bons era humilhada com baldes de urina e dejetos jogados nela, ainda assim, ela não desistia e vez ou outra, encontrava aqueles que temiam o julgamento de seus filhos quando a mão voltasse à ativa, e esses sempre lhe davam alguma coisa.

Então Aine assentiu sorridente, contemplando as bochechas magras e escuras que nunca foram cheias, mas para ela, eram tão lindas como só a bochecha de sua mãe poderia ser.

— Me conte mamãe, como tudo aconteceu.

Os olhos de sua mãe brilharam com amor. — Já ouviu tanto essa história minha pequena Ainne.

— Mas quero ouvir de novo, e de novo e de novo.

Sua mãe sorriu e assentiu. Arrumou com cuidado o cobertor fino para tapar as frestas enquanto começava a falar baixinho na cadencia perfeita para dar beleza a narrativa.

— Nem sempre as noites foram tão longas e a vida tão dura. Antigamente os soberanos eram justos e mais preocupados com o que acontecia fora das paredes de seus palácios e além da muralha de luz. Hoje, porém, depois da morte de Ayel tudo mudou. Seu filho Adreel o novo imperador do lado dos justos não parece muito interessado nas coisas referente ao seu povo. Na verdade não parece interessado em nada mais além de perseguir um rumor, uma lenda que o atormenta há anos.

Ainne tentava sempre imaginar como seria essa famosa anjo Ayel, em sua mente infantil, imaginava asas enormes e brilhantes. Sua mãe explicara quando ela perguntou que Ayel não era um anjo, não mais, por isso ela não podia ter asas, ainda assim, na imaginação de Ainne ela sempre tinha asas e eram enormes e lindas.

Sua mãe continuou a contar, sorrindo ao ver o rosto sonhador da filha.

— Os Nefilins são muito mais longevos que os humanos e mais fortes. E também somente eles podem fazer a colheita.

— Porque mamãe, porque tudo mudou?

— Houve um motivo para hoje o mundo ser regido por leis angelicais, e ser governado por filhos de anjos.

Ainne sentia o respeito lhe chegar nesse momento, nessa parte da narrativa, pois era onde se explicava porque os anjos interferiram e ela sempre pensava em como seria se os homens não tivessem chegado ao extremo.

— Tudo o que o mundo é hoje, se deve ao que aconteceu no passado. Há muitos séculos os homens não mais respeitavam as autoridades, menos ainda a lei que por conta de tanta corrupção e imparcialidade, acabou desacreditada. Os governantes por sua vez, também não mais tinham voz ativa. Ou seja, as leis não mais eram seguidas e por isso, os homens brigavam por qualquer motivo.

Começaram assim as mortes sem sentido, as vinganças em cima de vinganças, famílias contra famílias, bairros contra bairros, cidades declarando guerras e por fim... Não demorou nada e uma guerra mundial explodiu gerando uma matança desregrada na terra e um dia, depois de alguns anos de guerra quando a violência entre os homens era tudo o que ditava para se conseguir viver mais um dia, Deus decidiu fazer o aparte de suas ovelhas, decidiu usar sua mão para pesar os pecados dos homens na terra.

O objeto divino foi trazido pelas hostes angelicais na época. E no local que a grande mão de bronze celestial foi deixada, um templo foi erigido na mesma hora e um muro de luz também acompanhou a construção. Os antigos Essênios foram chamados de sua reclusão para cuidar do templo, e ficou decidido que eles, dentre todos do mundo seriam os únicos que poderiam transitar entre um lado e outro, mas eles nunca foram vistos andando por aí, somente no dia da pesagem.

Essa interferência não foi problema para nenhum de nós na verdade, pois não vimos nada disso, pois aconteceu há muito tempo. Mas segundo contam os mais antigos que ouviram de outros mais antigos já mortos há muito por conta da idade, o problema não foi a intervenção angelical, pois isso parou o mundo e consequentemente parou a guerra. O problema foram as notícias que os anjos trouxeram consigo.

Aine se ajeitou ansiosa, adorava essa parte, sua imaginação fluía como enxurradas lhe mandando imagens coloridas. Sua mãe revirou as batatas com um galho, se ajeitou novamente e continuou falando.

— Tudo começou com o som. Uma trompa de ouro ilibado foi tocada e a nota reverberou até mesmo nas entranhas da terra, com isso todos obtiveram a visão do terceiro olho, a visão que os permitiria a partir daquele momento e até os dias de hoje, ver que anjos estavam entre nós.

Depois se seguiu o fenômeno. Um simples tremor na terra foi notado pelos homens, mas em sua surpresa pela visão divina não perceberam que a terra unia suas partes, que não mais teria os continentes divididos, que as massas estavam se juntando, se tornando um só continente, não perceberam porque olhavam o céu encantados com o que estava acontecendo.

A primeira reação com essa visão foi prostração. A miríade angelical dominava os céus. Os anjos ficaram parados no ar com as asas abertas irradiando uma luz própria dourando o palato celeste e iluminando seus rostos enquanto observavam as ações humanas. Não demonstravam o que sentiam. Nem ódio pela destruição, nem compaixão pelas mortes, nem amor pelos inocentes e nem rancor pelos culpados. Tudo o que lhes ia a face era um olhar sereno e destemido.

Eles traziam um recado e todos pararam para ouvir. Quando começaram a falar foram todos juntos como um coral celestial se apresentando no céu, mas o som que se ouviu foi uníssono, uma única voz endossada por muitos anjos e então todos souberam, Deus manifestaria verbalmente sua sentença.

Os anjos não precisaram sequer alterar a voz para que todo homem na terra ouvisse cada palavra, não precisaram traduzir em todas as línguas conhecidas, pois era uma língua universal e onipresente, todos entendiam e todos ouviam.

Então os homens soltaram suas armas e fecharam os olhos meditativamente porque não ouviam uma voz aparente, mas uma eufonia que tocou diretamente o coração de cada ser vivo na terra. Mas assim que se foi entendido as palavras, a calmaria se findou. A notícia que saiu da boca dos anjos gerou um surto generalizado de pânico, pessoas se ajoelhavam na mesma hora enquanto ouviam aquelas palavras.

Em uma cacofonia de vozes e gritos de desespero, eles pediram perdão olhando para o céu finalmente acreditando que haveria sim um julgamento por seus atos, e seria em vida.

Porém não houve meio, os anjos ditaram a sentença.

Genteee, perdoem os erros se encontrarem viu *-*... Beijos :D

A Era dos Anjos- Os filhos de Ayel- DegustaçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora