Angelus

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Três anos depois

— Está atrasada anjinha, porque demorou?

Ainne abriu os olhos, não estava atrasada, na verdade havia chegado cedo e pegou no sono, desconfiava que ele só apareceu por conta disso, aproveitando que ela estava dormindo. Ele sempre fazia assim, só aparecia do lado que ela não estava olhando ou então, quando ela chegava já o encontrava a esperando. Ou como agora, quando ela pegava no sono.

— Não estou atrasada Ange, você que marca um horário e sempre chega muito cedo ou tarde demais, nunca, em todo esse tempo, chegamos juntos ao que eu me lembre.

Ângelus levantou os ombros. — Nunca consigo cumprir meus horários, já falamos disso.

Ainne não respondeu, não gostava de pressioná-lo, mas já sabia há algum tempo que essas esquivas, esses aparecimentos do nada, eram para deliberadamente esconder suas asas. Nesse tempo todo de amizade, desde que se encontraram no topo da montanha pela primeira vez, ela nunca as viu. E pela aparência diferente dele, ela desconfiava que as asas também fossem diferentes.

. Ainne o achava bonito, cheio de segredos e cruel com as palavras, às vezes. A amizade nasceu turbulenta entre eles. Deitavam lado a lado e ficavam olhando o céu, perdidos nos próprios pensamentos, dividiam os alimentos que ambos traziam, mas não conversavam, até que um dia Ainne perguntou seu nome e ele respondeu seco que não era da conta dela e que calasse a boca.

A resposta a pegou de surpresa e ela bufou sem conseguir responder a altura, acabou ficando amuada e virando de lado, continuou ali deitada ao lado dele, porém se manteve em silêncio. Depois de uma hora ele perguntou o nome dela e ela respondeu com um grunhido o fazendo rir, e do nada ele começou as conversas sobre as nuvens, sobre o formato que via nelas. Ainne o ignorou completamente, porém ele não parecia se importar com isso e continuava seu monólogo e assim uma semana passou e todos os dias que ela subia ali ele já estava e continuava falando e ela o ignorando até que passado essa semana ele lhe contou seu nome e Ainne sequer se interessou, pois tinha perdido a graça saber.

Mas esse foi o primeiro passo, depois da insistência dele e dos nomes finalmente ditos, outros assuntos foram surgindo até que ele também passou a dormir ali, e as observações sobre as estrelas, sobre o céu e sobre a terra também enriqueceram suas conversas.

Três semanas depois ela se despediu dele cheia de tristeza, pois tinha se afeiçoado ao estranho. Sua tribo ia seguir em direção ao Oeste, pois os coques eram oriundos das minas de lá e claro que seria ela que coletaria, mas quando ele perguntou se ela ajudaria a carregar a carroça ela bufou respondendo que jamais seria usada como burro de carga, pois já bastava ter que fazer a coleta de tudo.

Angelus tinha assentido em aprovação e pela primeira vez naquelas três semanas ele manifestou sua opinião sobre os Nefilins serem usados pelas comunidades como único meio de sustento. Se mostrou solidário a ela e disse que quando ela voltasse eles fariam juntos a coleta para que ela tivesse mais tempo.

Apesar de ela não ter acreditado, ficou contente pela oferta, mas meses depois quando ela voltou ele cumpriu a promessa e juntos caçaram, coletaram e ele velou suas costas quando sentiam o perigo.

Para Ainne hoje Angelus não é apenas um sócio proprietário do topo da montanha, é seu amigo, estranho e cheio de mistérios, mas um amigo, o único no qual ela confia de ficar perto e de dormir ao lado sem ter o receio de sofrer algum tipo de abuso.

Angelus a respeitava, a ouvia e além de se preocupar com ela, ele sempre trazia as melhores comidas, por isso ela gostava dele.

— Vai à seleção? — Ele perguntou desinteressado como se tivesse apenas puxando assunto.

Desde a morte do líder Gulu, sua filha Gamula virou a nova líder e como ela pensava diferente, aderiu a uma clanades só para deixar de lado o costume nômade do pai. Por isso Ainne estava basicamente liberta, na verdade ela forçou a própria liberdade deixando de cuidar da alimentação da tribo quando o casal Shaddit morreu, ainda assim, ela se sentia ligada a Eloá que junto com algumas moças ia concorrer na seleção.

— Eloá vai estar lá, ela me pediu.

Ele assentiu e falou secamente. — É perigoso.

Ainne sorriu e virou de lado para olhá-lo, ele estava deitado de olhos fechados, as mãos atrás da cabeça, mas tinha o semblante carrancudo, típico de quando ele não estava gostando de alguma coisa. Ele estava preocupado com ela, mesmo que não admitisse em voz alta.

— Não é tão perigoso. É uma coisa que acontecesse sempre e confesso que estou curiosa para ver como são os anjos.

Ângelus grunhiu. — Eles não são anjos Ainne, são Nefilins assim como você. O fato de terem asas e serem lindinhos de aparência não os torna anjos puros. Apenas usam isso para fazer com que os ímpios os admirem.

Ainne suspirou chateada, Ângelus sabia muitas coisas e poucas ele dividia, nessas horas ela se sentia mal, acreditava que amizade devia ter cumplicidade.

— Porque não me diz o que sabe Ange? Você sempre se esquiva de me falar qualquer coisa, tenho raiva de você por isso.

Ele sorriu. — Essa raiva não vai mudar o fato de você me amar anjinha, e se não conto é porque não posso, por vezes também porque não quero e em outras vezes é porque não é de sua ou minha conta.

— Grosseirão. — Ainne sentou, deu um murro em seu estômago e cruzou os braços emburrada. Ângelus gemeu, piscou várias vezes e também sentou a encarando sério.

— Viu? Eu que devia sentir raiva de você, já me bate há três anos e nunca sequer levantei um dedo para me defender. — Como se lembrasse, ele ficou sério e olhou para o horizonte de nuvens. — Não posso proibir você de ir nessa bobeira de seleção, mas olha. — Ele retirou um colar com uma pedra achatada em formato de lágrima contendo dentro uma gota de sangue dourado. — Leve isso com você. Não o tire, o âmbar protege o icor dentro dela, por isso ninguém, nem mesmo um anjo poderá sentir a essência dessa gota de sangue de anjo, mas você sentirá porque é um presente de proteção. Se precisar de ajuda eu saberei como te ajudar, só precisa chamar.

Ainne colocou o colar com pequenino pendulo e vincou a testa. — Porque está me dando uma relíquia angelical? Isso é sangue de anjo puro e é raro, não existe para comércio, quem tem nunca negocia e como não pode ser roubado não é algo que os outros ambicionam. E de qual anjo é esse sangue?

Ângelus a olhou de canto. — De quem é não interessa, você está indo direto para o perigo anjinha, e uma relíquia angelical só funciona se dado para proteção, pode não acontecer nada, mas... — Ele limpou a garganta e sorriu largamente fazendo Ainne prender a respiração por ver o quanto ele ficava lindo quando o fazia.

— Se precisar de mim, estarei por perto.

Ângelus deu um adeus com a mão e pulou sumindo entre as nuvens. Ainne imaginou que ele só abriria as asas quando estivesse bem longe e acabou suspirando não pela primeira vez. Ela queria saber como eram as asas de seu amigo, tinha uma atração absurda por suas costas e nunca entendia porque parecia tão importante saber, no entanto parecia importante a Ângelus esconder.

Refletiu por um momento sobre essa preocupação dele sobre a seleção. Não parecia tão mal, apesar de ela não aceitar os termos, ainda assim parecia melhor do que nenhum meio de entrar no lado dos justos.

Se a menina fosse escolhida, poderia escolher outro para acompanhá-la e assim dois entrariam na terra dos justos, sem contar que a tribo receberia muitos presentes, inclusive frutas, carne, e claro, o famigerados rolos de tecido, esse era um dos produtos mais caros dentre os fornecidos pelos clãs dominantes.

Ao pensar nisso, Ainne levantou de um pulo, já estava ali tempo suficiente para estar atrasada, sabia que ao chegar até a tribo encontraria Eloá em uma pilha de nervos.

Assim que pulou sentiu o pequeno pingente balançar perto de seu pescoço e acabou se dando conta de que Angelus basicamente fugiu porque sabia que ela ia insistir em querer saber de quem era o sangue de anjo. Revirou os olhos o xingando com várias palavras feias, ele tinha jogado charme nela deliberadamente para se esquivar da insistência dela em saber. Típico dele!

Oiee gentee, mais um cap, logo vou terminar Venília, aí o foco será aqui e vamos ter muito mais caps sendo postados hein!! Obrigada viu por estarem lendo :D

A Era dos Anjos- Os filhos de Ayel- DegustaçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora