Instinto

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Cidadela


Ainda era muito cedo quando Ainne despertou ouvindo o barulho da cortina da tenda sendo levantada. Já desanimada por saber o que aconteceria em seguida, rolou os olhos para a manhã começando nada amistosa. Tinha dezessete anos e ainda assim as coisas não estavam mais fáceis do que antes. Agora seus inimigos não eram somente os Apóstatas, mas também os homens sem vergonha da tribo.

Sentiu as mãos dúbias se aventurando pelas suas curvas por baixo do cobertor. Suspirou se irritando pela falta de sossego. Teria que dar uma lição em mais um dos tantos que já tentaram fazer o mesmo. Não pensou duas vezes, agarrou aquela mão e virou o pulso, escutou o estalo do dedo quebrando. Deu uma risadinha divertida ao fazer a soma de mais um aleijado na tribo. Ignorou quando ouviu os palavrões.

Em sua maioria, os homens de sua comunidade não tinham por hábito mexer com as garotas, mas ela em particular vez ou outra passava por isso. O líder dizia que era por ela ser Nefilin e seu cheiro mudava alguns dias do mês, por isso era difícil a eles pensar direito e acabavam cedendo a luxúria, mas Ainne também não tinha por hábito desculpar essas atitudes.

Queria ficar mais tempo deitada, mas já sabia que seria impossível, e sem outro remédio já que continuava a ouvir os berros do homem tolo, levantou e se espreguiçou anunciando categoricamente.

— Não comerás mais da minha comida, amaldiçoo sua mão. Se pegar qualquer coisa que eu trouxer, a partir de agora, será roubo.

Os xingos cessaram e a preocupação cresceu nos olhos do homem de meia idade. Esquecendo a dor ele ajoelhou em desespero.

— Perdoe-me, eu me excedi, estava perdido em luxúria e não pesei meus atos, mas nunca mais a tocarei. Retire o que disse coletora, lhe rogo por meus filhos.

Ainne sorriu friamente. — Seus filhos e sua mulher comerão do que eu trouxer, é você que não terá essa regalia.

Os olhos do homem se encheram de ódio. — Vadia! Devia ter passado uma lâmina em seu pescoço ao invés da mão no vão de suas pernas!

Ainne ignorou a ira daquele membro ocioso da tribo e saiu da tenda. O deixou ainda lhe rogando imensas pragas, amaldiçoando toda a geração de anjos que pisou na terra e a amaldiçoando por depender dela para poder comer algo descente.

Ainne não se incomodou, era sempre assim. Nesses anos que viveu nessa tribo, não foi poupada de palavras baixas, mas não se importava mais, estava blindada de ataques físicos graças ao líder da pequena clanades. E estava blindada desses tipos de pessoas graças ao pouco valor que dava ao que pensavam dela.

— Problemas, pequena coletora?

Ela não se virou, já conhecia essa voz preocupada do líder. Ele sabia que tinha pouco tempo, que sua vida não duraria muito e temia que com sua morte os membros da tribo não mais respeitassem o corpo de Ainne.

— Eu estou bem, senhor Gulu. Ele é só mais um que ficará com o dedo torto, não se preocupe com isso.

— Sinto muito por tudo o que passou conosco, e agradeço por nunca ter nos virado as costas, apesar de tudo.

Dessa vez Ainne se virou, não queria e nem podia destratar aquele líder, pois ele, apesar de usá-la para trazer alimentos para sua tribo, nunca a destratou e sempre tentou compensá-la por isso.

Sentiu algo parecido com afeto ao observá-lo, os olhos caídos e a imensa olheira mostrava que o senhor Gulu estava naqueles dias onde a dor estava insuportável. Ele tinha problemas nas juntas, inchava frequentemente e por vezes nem conseguia andar. Sofria e ainda assim estava ali preocupado com ela.

— Vá se recolher senhor Gulu. Descanse as pernas, trarei algumas raízes e ervas para ajudar com suas dores. Não se preocupe, voltarei logo.

— Por quê? — Ele perguntou amargurado e Ainne suspirou sem paciência, hoje era um daqueles dias que ele refletia sobre suas atitudes temendo seu julgamento depois da morte. Ela entendeu a pergunta, ele sempre perguntava isso. Porque ela continuava ali com eles depois de tudo.

— Porque, senhor Gulu, apesar da raiva que sinto de quase todos da tribo, tem aqueles poucos que me trataram bem desde que cheguei. E é por causa desses e do senhor que ainda permaneço aqui e permanecerei até que o último desses poucos dê seu último suspiro, então minha dívida com essa tribo estará paga e partirei sem nenhuma pena dos que ficarem sem alimento. Não irá demorar muito para eu conhecer a liberdade, todos já estão velhos e doentes, incluindo o senhor.

Ela estava ciente de que suas palavras eram duras, ainda mais para ele que estava doente, mas precisava deixar clara sua intenção, ou então logo seria abordada com pedidos para ficar e isso estava fora de cogitação.

Senhor Gulu assentiu. Seu rosto magro, a pele negra com lábios grossos e nariz largo lembrava a Ainne constantemente sua mãe que tanto amou, por isso, ela evitava sempre olhar para ele, porque era doloroso.

— Obrigado, filha.

Ainne assentiu e virou em direção ao bosque. Estava maluca para voar, para rever o túmulo da mãe e para ficar sozinha. Andou firme e apressada sentindo que apesar das dores, o líder continuou ali, olhando para suas costas, esperando vê-la sumir entre as árvores.

Ainne apressou o passo para fugir daqueles olhos amargurados, não se importava com os arrependimentos dele, somente lhe era grata por ele tê-la recolhido juntos aos seus, mas não se sentia obrigada a amá-lo, pois sabia que pagou por sua estadia todos os dias, incansavelmente.

Já no meio da floresta respirou fundo, sentindo finalmente a paz lhe chegar. Inspirou de olhos fechados agradecendo sua sorte por poder novamente ver o túmulo de sua mãe. Aquela floresta tão exuberante e tão perto da cidadela foi seu esconderijo e sua morada na infância, agora era seu santuário, um santuário que ela almejava visitar a cada decisão do líder de retornarem a Cidadela.

Mas Ainne, não importava o tempo que ficassem na cidadela, só visitava o túmulo de sua mãe uma vez. Não suportava a dor da perda e se torturar mais que uma vez ao ano lhe era muito.

Suspirou quando avistou a entrada da caverna, seu antigo lar e agora apenas ruínas já quase encoberta por trepadeiras. Olhou para os lados para garantir que não estava sendo observada e concentrou seus sentidos em seu próprio corpo, tentando buscar a ferroada em suas omoplatas, uma coceirinha que fosse, mas não sentiu nada, não havia perigo por perto.

Soltou o ar com força sentindo saudades e angústia e entrou na caverna. Seguiu para um túnel estreito e rastejou por ele. Pouco depois encontrou a reentrância que era grande o suficiente para acomodar sua consagração a um corpo inexistente e muito amado.

O amontoado pequeno de pedras com a pedra maior e colorida estava ali, intocado como sempre estivera há cinco anos. Pois depois que partiu Ainne só conseguiu entrar na caverna novamente, anos depois, e foi só então que pôde finalmente consagrar o amor por sua mãe.

Ajoelhou e retirou da bolsa um pêssego. Colocou em cima da pedra maior, ficou olhando com carinho para a palavra que lapidou com a ponta de uma faca. Com os olhos ardendo Ainne sussurrou.

— Sinto sua falta, sempre sentirei. Não sei se te incomoda eu ter escrito mãe em sua lápide, mas essa palavra para mim é sagrada porque é tudo o que sei sobre você. Não sei se teve um nome e me dói saber que nunca ouvi ninguém a chamando por ele porque por minha culpa você nunca teve amigos. Para me proteger você se isolou do mundo deixando de ser alguém entre os clãs para ser apenas minha mãe. Obrigada e me perdoe por não ter forças para proteger você quando precisou de mim.

Ainne enxugou o rosto, essa era uma das raras vezes que se permitia chorar. Ficou ali mais algum tempo se deixando amargar por sua perda e então se arrastou novamente pelo pequeno e apertado espaço.

Ao sair para o salão maior, colocou a pedra grande de volta no lugar selando o túmulo e sussurrando baixinho que voltaria no ano seguinte.

A Era dos Anjos- Os filhos de Ayel- DegustaçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora