A fantasia de Amélia tinha acabado no momento em que solta o cão, até um simples animal lhe fazia melhor companhia do que a sua própria família. Mal largou o cão, disse para seus pais:
- Está feito, já podem estar descansados. - Disse virando as costas.
Custou-lhe muito deixar o pobre cão assim mas também não queria arranjar mais chatices com a sua mãe por causa dele. Mas agora, Amélia tinha outros assuntos com que se preocupar, hoje iria para a Universidade ter uma das suas últimas aulas. Como passou depressa! Já faltava menos de um mês e ela não se lembra nem metade do que fez lá. Estas últimas aulas para Amélia é como se fossem as primeiras. Mas havia algo que a inquietava... Depois de terminar os estudos da Universidade o que é que iria fazer na sua vida? Trabalhara tanto desde pequena e agora teria de usar os seus conhecimentos para demonstrar o início de uma nova era.Não podia ficar em casa de seus pais para sempre, teria de um dia deixá-los e começar a sua vida sozinha. A melhor parte, é de não precisar de ninguém e ser completamente livre. Passara tudo depressa demais e o tempo parecia que não colaborava com Amélia. Se ao menos existisse uma forma de dar oportunidade às mulheres que queriam estudar... Amélia poderia abrir uma escola só para raparigas e ensinar-lhes que as mulheres não foram feitas para serem apenas donas de casa. Essa ideia agradava a Amélia que ficava cada vez mais convencida de que era mesmo isso que queria fazer para além do seu sonho de infância de querer ser médica. Em Coimbra não havia tantas oportunidades como na capital ou no Porto. Teria de planear muito bem o seu futuro para se habituar à sua nova vida mas, essa vida de sonho agradará a seus pais? De qualquer forma, não iria desistir tão facilmente dependendo da opinião de seus pais. O que a deixava triste, era de ter de deixar Coimbra, a cidade que ela tanto amava e vivera desde que nasceu. Ia ser complicado murar numa cidade que não conhecemos, não só os lugares mas também as pessoas. Ao início vai ser duro mas, passado uns anos, iria habituar-se rapidamente à nova cidade. Amélia tinha uma qualidade muito interessante em aprender depressa o que quer que fosse. Talvez um cão é que lhe daria jeito agora para não se sentir tão sozinha.
Amélia estava demasiado ansiosa para a sua aula, é como se nunca tivesse ido antes para a Universidade. Ao abrir o guarda-fatos, tira o seu traje e fica a olhar para o espelho com ele. Só de pensar que daqui a um mês já não teria de vestir aquele traje horrível, Amélia sentia-se muito melhor pois quando vestia-o, parecia que ia a um funeral. Depois de vestir o traje, pega nos livros e desce rapidamente as escadas. Alice, que estava a limpar as escadas, pergunta a Amélia:
- A menina vai a algum funeral? Quem é que faleceu? - Perguntou abatida.
- Ninguém Alice não se preocupe, é o meu traje da Universidade.
- Já não o usava à algum tempo! Não me lembrava que era assim tão...
- Aterrador? Sim foi o que eu pensei mal o tirei do roupeiro.
- Nem acredito que já está quase a terminar a Universidade! Ainda me lembro do primeiro dia em que foi à Universidade, estava tão feliz...
- É uma pena que eu não me lembre desse dia.
Ao Amélia acabar de dizer isto, o relógio toca. As duas olham e vêem que marca as duas da tarde. Amélia com presa, despede-se da empregada e segue caminho até à Universidade. Quando acaba de chegar, Amélia já um pouco atrasada, sobe rapidamente as escadas e ao chegar ao topo fica a pensar:
- Mas onde será a aula?
Amélia percorreu por todos os corredores, espreitou pelas portas, subiu e desceu escadas até que encontrou a sala. Ela entra sem dar muito nas vistas e sentasse no único lugar que estava vazio. O professor, apesar de incomodado, continua a dar a sua aula:
- Os oito mil oitocentos e dezasseis versos do Lusíadas, ilustram bem o conceito dipopeia que outros trabalhos renascentistas também reclamam.
Amélia, diz logo a seguir muito interessada na matéria:
- Há algo mais que os Lusíadas reclamam senhor professor?
- Lá está você a interromper-me outra vez, deixe-me terminar.
- Sobretudo no canto nono com a ilha dos amores, os prazeres carnais são explorados sem pudores por convenções.
De repente surge um silêncio na sala, também com a vergonha e cabeças baixas do resto dos homens que ali estavam. O professor para além de impressionado, fica um pouco zangado por Amélia não o deixar acabar o que tinha para explicar.
Depois da aula, Amélia vai para a biblioteca acabar os trabalhos que tinha para fazer, principalmente continuar a estudar os Lusíadas para a próxima aula. Enquanto lia, ouve alguém que aparece de repente à sua frente:
- Quantos homens conseguiriam falar publicamente sobre prazeres canais, sem corarem de vergonha?
- As pessoas hoje em dia são demasiado preconceituosas. - Responde Amélia levantando-se.
- Existe algum assunto que te seja difícil de discutir?
- Não, sou capaz de falar de tudo. É difícil arranjar uma mulher com que se possa falar de arte, política, da economia do país...
- De que falam as tuas amigas?
- Normalmente costumam falar sobre os maridos, dos filhos, da última moda em Paris. Às vezes nós mulheres somos as nossas piores inimigas.
- Quantas mulheres há aqui na tua Universidade?
- Nenhuma, sou a única. Mas eu estou convencida que no futuro vamos conseguir fazer as mesmas coisas que os homens.
- É possível.
- Bem se a minha mãe soubesse o que estamos a falar... Ela está empenhada em arranjar-me um marido para casar e ter filhos claro.
- Mas tu não queres?
- Eu? Eu não preciso de homem nenhum.
- Nem imaginas a alegria que me dás a ouvir isso Amélia.
- Como sabe o meu nome? E quem é você?
Logo depois, a mulher cai no chão e sai do seu corpo o espírito de Henrique. Amélia pega nos seus livros e sai da biblioteca a correr. Quando pára, olha para trás e não vê ninguém. Ela entra novamente na biblioteca e olha à volta mas não vê o espírito de Henrique nem a mulher que estava deitada no chão. Amélia, confusa pergunta a si mesma:
- Seria uma ilusão ou eu estou a ficar maluca?
Depois de dizer isto, sai da biblioteca olhando várias vezes para trás. Já era tarde e Amélia tinha de voltar para casa antes que seus pais tivessem preocupados com a falta dela.
Ao chegar a casa, Amélia vê seus pais na sala de jantar. Alice estava já a servir a sopa acabada de fazer. A mesa parecia muito vazia sem ela. Amélia, antes de entrar, fica a ouvir por detrás da porta a conversa de seus pais:
- Olha tu dirás o que quiseres mas eu vejo que ela anda muito esquisita. - Diz Diana sentando-se na mesa.
- Na idade dela nós também éramos esquisitos. Deixa lá, está a descobrir a vida. - Diz Gonçalo sorrindo para a mulher.
- Eu quero é que ela descubra um noivo.
- E vai encontrá-lo.
- Como se ela passa o tempo todo na Universidade e naquele trabalho dela na biblioteca? Quem é que vai querer casar com uma rapariga destas?
- Alguém como ela, não te preocupes a nossa filha é uma mulher muito especial!
Amélia entra na sala de jantar e diz:
- Mãe, ai desculpem o atraso...
- Senta filha, vamos jantar que a sopa está a arrefecer.
Amélia sentia-se um pouco desconfortável por saber da conversa que seus pais tiveram. Ela pensava que a sua mãe tinha mudado mas pelos vistos um homem de convicções é difícil de mudar.
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A Minha Motivação |livro 1|
Ficção Histórica| A Minha Motivação livro 1 | Amélia de Carvalho, a primeira mulher a frequentar a Universidade de Coimbra (1871-1966). Amélia é uma jovem de 23 anos de finais do século XIX, que vive à frente do seu tempo. Ela quer muito ter uma vida que não é típi...