2. Júlia e Gustavo - A Bailarina

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... e 7 e 8:

Contrair o diafragma. Concentrar a força no core. Encaixar o quadril e a coluna. Manter os braços leves, a cervical firme e as mãos gentis. Elevar-se nas pontas dos dedos, dentro das tiranas sapatilhas de gesso que a acompanharam por quase uma vida. Essa era sua chance. Depois de curtos solos e das humilhantes fileiras de bailarinas, Júlia era o destaque da apresentação.

Testes, e mais testes, e incansáveis rotinas de ensaios. Pés feridos. Joelhos castigados. Panturrilha e bumbum mais doloridos que de costume. Emagrecera mais do que o esperado. Ser magra era seu menor sacrifício. Difícil mesmo era manter-se com o peso mínimo necessário. Com tantos exercícios, e alongamentos, e aulas de fortalecimento muscular, ela tinha que comer quase o dobro para conseguir manter uma aparência realmente saudável. Poucas bailarinas sabiam o que era isso. Algumas reclamavam do esforço que era se manter em boa forma, das restrições alimentares, etc., porém muito poucas sabiam o que era se esforçar para manter um peso saudável, sem comer porcaria e ainda se manter vegetariana. Júlia, para aonde ia, tinha que manter consigo algum alimento. Sempre. Do contrário, perder 2kg em dois dias era uma realidade que ela já tinha vivido. Por mais de dois dias.

Jean, seu parceiro de dança, era um elegante bailarino. Negro, corpo musculoso e mãos delicadas. Dançavam juntos há cerca de 5 anos. Conquistaram a chance de interpretar os papéis principais juntos, com uma apresentação coreografada e dirigida por um artista menos conhecido do ramo. Uma surpresa, porém uma satisfação enorme ao ver o nome dos dois – juntos! - na lista do elenco selecionado.

A coreografia proposta era diferente. Era desafiadora e empolgante. Foram longos 6 meses de ensaios. Inúmeras idas ao quiroprata. Incontáveis idas ao nutricionista. Fadiga muscular. Cansaço mental. Lágrimas. Até ali, nenhuma contusão registrada, mas tantas unhas encravadas quanto seus maltratados pés acreditavam que podiam suportar.

Como quem firma o olhar em apenas um ponto do seu caminho, Júlia, de collant rouge e tchu-tchu rosa-pink sem armação, sobe em suas sapatilhas para, enfim, encenar a dança dos amantes. Era um espetáculo lindo, eles tomavam todo o palco. A iluminação era quase fantasmagórica em alguns momentos e completamente irreverente em outros. Jean, sorria enquanto conduzia a parceira para um salto e outro. Ambos sorriam, lendo os olhares cúmplices de dois grandes amigos, sabendo que o que faziam estava certo. A coreografia estava perfeita. Cada mão, braço, abraço, salto... eles tinham atingido o máximo que seus corpos podiam. Eles estavam certos dos aplausos. Eles estavam lindos em sua glória.

A cortina se fechou. Os aplausos explodiram da plateia. A cortina foi aberta 1 vez. Todo o elenco se reuniu na frente do palco para a grande reverência. A cortina se fecha, todo o elenco mantém-se em pose elegante no fundo do palco. A cortina se abre uma segunda vez. Jean e Júlia caminham elegantemente até o grande círculo iluminado na frente, beirando a borda do palco. Os bailarinos são reverenciados por uma chuva de rosas com elegantes laçarotes amarrados nos talos. A cortina se fecha uma última vez. E os parceiros se envolvem em um abraço amigo, fraterno, desgastado e vitorioso. Lágrimas rolam de seus olhos.

- Está doendo. – Júlia diz, deixando o choro romper o rio de gargalhadas e celebrações. - Muito!

Jean percebe de imediato o desespero da parceira. Ela estava com muita dor. Provavelmente desde o primeiro passo que deu naquele palco. Todo o seu collant estava molhado de um suor frio. Ela provavelmente suportou calada durante todo o espetáculo. De prontidão, ele a tomou em seus braços e saiu daquela multidão de colegas. Enquanto pedia auxílio a um e a outro auxiliar de bastidores, conseguiu chegar à frente do teatro e chamar um táxi. Júlia não dizia uma palavra. Tremia apenas. Soluçava às vezes.

- Vai ficar tudo bem... Vai ficar tudo bem. - Ele a acalmava. Envolvendo-a com o casaco que um dos auxiliares lhes deu durante o caminho.

Era pouco depois das 22 horas. A emergência não estava vazia, mas não tinham ambulâncias por perto.

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