7. Sayonara e Guilherme - A filha do Guilherme

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- o texto a seguir é um monólogo -


sala de estar e jantar, confortável e aconchegante. sofá de canto e um criado mudo, abajur e tapete claros. mesa de madeira redonda com três cadeiras. no centro da mesa, um jogo de xicrinhas pra café e uma garrafa térmica. homem e mulher entram em cena.

homem com mala média na mão. o paletó pendurado dentro das alças da mala. sem gravata. camisa social puxada de qualquer jeito para os antebraços. cabelo e costas da camisa nitidamente molhados.

mulher com vestido de gala, com o penteado desgrenhado, vestido meio amarrotado. descalça. recostada melancólica sobre o próprio braço no encosto do sofá, com as pernas encolhidas sobre o móvel. os sapatos de salto no canto do tapete.

olham-se fixamente.

homem se aproxima, dá-lhe um beijo suave e demorado. sai. desse do palco por uma escada lateral e caminha por um dos corredores da plateia. luz de foco. para antes de abrir a porta e olha de volta para o palco. sai pela porta dos fundos. luz de foco o acompanha até sua saída. a porta se fecha.

mulher não se move e não acompanha a saída do homem. olhar perdido e indiferente. a porta bate. a luz de foco apaga bruscamente com o bater da porta. deve ser usada em todo o palco uma luz âmbar e azul. todo o cenário ganha um ar melancólico, triste, frio.

pega os sapatos e leva para um trocador que deve estar atrás do sofá. troca a roupa de festa por uma camisola longa de seda branca.

vai até a mesa, admira a porcelana, serve-se de água morna e um saquinho de chá. senta-se mantendo uma postura ereta e inerte. cruza as pernas. beberica um ou dois goles.

[não deve usar muitos gestos, nem muitas expressões. deve se expressar pelo tom de voz]

- Sabe quando você confia numa pessoa? Confia? Confiar mesmo? de não temer, não se esconder, muito menos escapar ou querer fugir? Entrega-se por completo? Sabe como é isso? (pausa longa) Este apartamento foi comprado há três anos. À vista. O carro que está na garagem também. Eu e... e... Guilherme... nos... conhecemos na época de colégio. Éramos ótimos amigos. Amigos. Apenas amigos. Quando terminamos o segundo grau, acabamos indo para a mesma faculdade. Ele cursava direito, e eu, biomedicina. Amávamos os nossos cursos. Ele era extremamente apaixonado pelas letras e discursos. Eu amava meus tubos de ensaio e minhas pilhas de páginas para ler e analisar. Guilherme sempre foi muito atraente. Sempre pareceu mais velho do que realmente era. Sempre foi o maduro, o correto, o incorruptível. Eu sempre fui aquela mulher que... nunca sonhou com casamento nem filhos. A natureza, feliz que seja! me ofereceu um ótimo cérebro e um rosto bem afeiçoado. nunca me faltaram homens ou convites. era nerd, sim! de segunda a sexta. sábados, domingos e feriados eram reservado para o que eu quisesse. fazer o que quisesse... de tudo que quisesse. Guilherme, não! era concentradíssimo. Estudava o quanto podia e transava ao término do dia com quem bem entendesse – se assim quisesse -... mandava a menina embora, estudava mais umas duas horinhas e dormia. No dia seguinte a mesma coisa. (respira fundo) Como nos relacionamos? Não me lembro bem. Quer dizer, lembro. Lembro sim. Foi numa festa de encerramento de uma república perto da minha. Eu não tinha com quem ir, mas fui. Ele, eu não sei nem como foi parar lá. Estava tão bêbada que nem sabia onde meu sapato tinha ido parar. (ri) Sei que acordei no apartamento dele, na cama dele, com ele só de cueca e eu nua só com um blusão dele. meu vestido estava pendurado no cabide, tampando o vidro da janela, meu outro sapato não sei como veio parar no canto da porta. minha bolsinha de mão estava no criado mudo (olha o criado no canto do sofá, levanta-se com a xícara na mão e liga o abajur. luz fraca, como abajur de quarto de bebê. apaga-se a luz azul, mantem a luz âmbar. põe a xícara sobre o criado onde ainda possa ser iluminado, mesmo que fracamente, pela luz do abajur. senta-se no canto do sofá ao lado do criado mudo) Sabe quando você confia em alguém? Confia? Confiar mesmo? dar-se por completo e sem medo? eu sabia que nada tinha acontecido entre a gente. pelo menos rezei pra que não tivesse acontecido (ri envergonhada). levantei, pus meu vestido, peguei os sapatos e a bolsa e, como "boa moça", fui embora sem dizer uma palavra. acho que foi aí que começou a minha paixão por ele. ...não parava de pensar naquela bunda bonita e nem no cheiro que tinha o quarto. (pausa. suspiro) passamos a nos encontrar com mais frequência, inclusive para estudar e almoçar juntos. depois do estágio, ele vinha pra minha casa, sentava na minha escrivaninha e empilhava os livros dele. eu me empoleirava na cama e lia meus artigos. eram momentos únicos... (suspira). nunca soube o que realmente aconteceu naquela noite. sei que os momentos de livros foram trocados por momentos de cama-pão-e-cama (ri mais uma vez) e que nos casamos pouco depois da minha formatura... (suspira) há 7 anos (suspira)... raramente brigávamos, raramente mentíamos, quase nunca deixávamos de transar pelo capricho do cansaço. ontem foi nossa primeira briga de verdade. depois do almoço ele se sentou na mesa e não parou com a calculadora. sussurrava a todo momento "não pode ser, tem que ser menos"... eu estava cansada da clínica, tirei a tarde de folga. deitei no sofá e dormi quase a tarde toda. acordei e ele continuava escondido atrás da pilha de papéis em cima da mesa. ele se virou, olhou pra mim e disse que Mirna – a secretária dele – estava grávida. Eu falei que era ótimo pra ela. Afinal, já estava casada há uns 5 anos. Já era hora! Ele olhou pra mim com um sorriso estonteante (com ar de quem sonha...) não me lembrava de ver sorriso nem olhar mais brilhantes ou encantadores. Ele me pediu um filho. Um filho, não. (corrige-se) Uma filha! (começa a chorar) Guilherme, que nunca havia me pedido nada, me pediu uma filha. (aumenta o tom.) Uma filha! (daqui pra frente o texto deve ser vomitado, ritmado, como se fossem palavras explicando uma alucinação) Como ele podia me pedir aquilo? Eu trabalhava 12 horas por dia, ele 10. queríamos mudar de apartamento, mudar de carro, comprar uma cozinha nova e ele vem me pedir uma filha? não tive outra reação: ri! (chora e ri ao mesmo tempo. As palavras saem desenfreadas, angustiadas...) ri alto enquanto sua feição ia se transformando em algo menos debochado e mais sério. (pausa. respira fundo. volta a falar atônita. olhos mirando o espaço, como se as palavras não saíssem por vontade, mas de modo automático) Ele estava falando sério. (pausa) Ele queria uma filha. (pausa) (deixa o choro cessar, enxuga as lágrimas) Agora há pouco estávamos no coquetel de lançamento do meu livro. Ele estava lindo, esbanjando charme. a barba bem feita, o cabelo bem arrumado, o smoking impecável... Ele que escolheu meu vestido. (ri) Disse que era pra combinar com o smoking dele. Comportou-se como o ótimo companheiro que sempre foi. teve paciência com os fotógrafos, com os entrevistadores, com os câmeras, com tudo... sorriu para todos os Mestres e Doutores totalmente desconhecidos por ele... com o mesmo sorriso sincero de sempre. (pausa longa... começa a chorar novamente. não há exagero, nem lamúria. apenas choro sentido, doído, quase calado) assim era o que eu achava. (respira fundo. fala como se falasse e ao mesmo tempo tentasse analisar e identificar o que havia de errado nos últimos acontecimentos) chegamos em casa. ele se sentou comigo no sofá (passa a mão sobre o assento) tirou meus sapatos, brincou entre minhas pernas, me seduziu, romântico como era. transamos aqui mesmo, não tiramos nem a roupa. o sorriso dele enquanto se saciava uma, duas, três vezes era estonteante... e depois (pausa) chorou... chorou como se algo lhe doesse. pediu um abraço e (pausa. continua sem compreender ao certo o que estava descrevendo) continuou chorando enquanto balbuciava coisas sobre a discussão da tarde anterior, sobre termos uma filha, sobre que já era a nossa hora também, que me amava, que adorava estarmos juntos há tanto tempo, que era mágico como nos entendíamos em tudo... que era único estar comigo. mas... que... que... (atira a xícara no chão) (grita) aaaaaaaaaaaaaaaaaah!!!!! queria uma filha! (chora escandalosamente – a luz deve ficar mais clara) ... (acalmando-se) ... e que sempre soube que eu era... ....que eu era... que ter uma filha ou filho era a única coisa que eu nunca poderia lhe dar. (chora desconsoladamente dando as costas ao público encolhendo-se no encosto do sofá)

a luz do palco vira apenas uma penumbra. na penumbra, chorando, ela cata os cacos de xícara. põe em cima da mesa. senta-se numa das cadeiras, abaixa a cabeça sobre os braços cruzados sob a mesa. as cortinas se fecham.

fim de cena

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Gabriella Almeida

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