Apertem os cintos

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Acordei às 5h da manhã com o telefone tocando. Era a recepcionista, avisando que o ônibus da companhia aérea passaria no hotel às 8h para levarmo-nos para o aeroporto e que todos deveriam aguardar no saguão, após o café da manhã.

Olhei o relógio e pensei que poderia dormir mais meia hora. Lembrei-me da noite anterior e minha cabeça quis começar a construir estórias novamente.

Afastei o edredom e os pensamentos. Me enfiei embaixo do chuveiro, me vesti e deitei mais um pouco, depois de conferir que ainda estava cedo para descer. Liguei a TV e cochilei com o controle remoto na mão. Voltei a acordar com batidas na porta do quarto. Por um momento, pensei que fosse minha mente tentando retomar os movimentos do dia anterior. Esperei um pouco e as batidas insistiram. Então, levantei e abri a porta.

Do outro lado, Carol segurava uma lata de chá de limão com um canudo enfiado. Quando me viu, estendeu a lata de chá para mim e disse:

- Bom dia! Dormiu bem?
- Pouco, mas bem. E você? – retribui
- Ai, desculpa, fiquei conversando e não deixei você dormir – disse, baixando os olhos como se tivesse feito uma travessura.
- Não foi você, a conversa estava ótima – eu disse, tomando um gole de chá.
- Vim buscar você para tomar café – convidou.
- Tá. Deixa só eu pegar minha mala

Enquanto entrei no quarto para buscar a bagagem, ela se apoiou no portal e começou:

- Estava pensando...o que eu já posso saber no quinto encontro?

Estiquei a cabeça de um jeito de pudesse vê-la e provoquei:

- Pode perguntar se eu gosto que chá
- Aí não vale. Tudo que eu sei, descobri sozinha, com meu próprio esforço – reclamou – Me diz uma coisa, isso tudo é desconfiança? Você acha que sou uma serial killer ou uma louca obcecada que persegue as pessoas no aeroporto? – perguntou.

A esta altura, eu já tinha voltado com a mala e estava parada na frente dela.

- Digamos que eu seja uma pessoa precavida – respondi.
- Não sei nem como você aceitou o chá. Trouxe, mas tinha certeza que você ia jogar fora, achando que eu queria te envenenar – disparou.
- Também não é assim, vai. E vamos embora, senão vamos acabar nos atrasando – apressei.

Atrasado, como sempre, estava o avião. Depois de esperar mais de 12h no aeroporto, de responder uma centena de emails e de trocar duas dezenas de telefonemas com o escritório, embarcamos às 21h.

Entramos no avião e logo verificamos que estávamos afastadas por umas dez filas. Alojei-me em meu assento e Carol caminhou para o seu. Tentava sintonizar o rádio quando vi que alguém se dirigia à minha vizinha, dizendo:

- Senhora, se não se importar, poderia trocar de lugar comigo? Estou a dez filas daqui, também no corredor. É que minha prima, que está ao seu lado, tem uma estranha síndrome que a acomete de desmaios súbitos, precisando de cuidados especiais. Seria possível realizar a troca? – relatou a pessoa.

Eu olhava a cena, atônita, até que a mulher prontamente respondeu já de pé:

- Sim, claro.
- Muita gentileza da sua parte, senhora – respondeu aquela que se dizia responsável por mim.

Esperei a minha vizinha ir embora e soltei:

- Carol, que loucura é essa?
- Não vai desmaiar agora, priminha! – disse ela.
- Tá doida, Carol? – perguntei.
- Não quer minha companhia não? Fiz isso por você - disse.
- Quero, sim, mas não precisava disso, não é? – reclamei.
- Bom, livrei você de passar três horas na companhia de uma estranha – declarou.
- Obrigada. Seria, de fato, uma tarefa difícil exercitar um diálogo – agradeci.

O avião decolou e ela disse:

- Bom, agora temos três horas para conversar – ofereceu.
- Estou à sua disposição – aceitei.
- Na verdade, acho que você podia aproveitar esse tempo para dormir. Está cansada e eu culpada por ter te alugado a noite passada – sugeriu.
- Nunca consigo dormir direito em avião. É desconfortável e frio – reclamei.
- Deixa eu ver o que podemos fazer para aliviar seu sofrimento – falou.

Ela chamou a aeromoça, solicitou um cobertor e um travesseiro e foi prontamente atendida. Então, levantou o braço da cadeira, que separava a dela da minha, sentou de costas para o corredor e apoiou o travesseiro em suas coxas. Fez sinal para que eu deitasse e me cobriu com a manta trazida pela aeromoça. Embora o espaço fosse pequeno e minhas pernas tivessem que ficar para fora da cadeira, era irresistível.

Eu deitei e ela começou a passar os dedos em meus cabelos, como se os penteasse. Meu cabelo muito negro destoava das suas mãos, muito brancas. Tentei dormir, mas não consegui. Estava enjoada e minha rinite alérgica não me deixava parar de espirrar. Resisti até onde pude, ouvindo Carol contar sobre a palestra intitulada "a origem do jeitinho brasileiro", que tinha ido dar numa universidade em São Paulo. Como ela era inteligente, o que a tornava cada vez mais interessante.

O enjoo estava deixando meu estômago completamente embrulhado e os espirros me tiravam o humor. Olhei para o relógio, tínhamos uma hora de voo pela frente. Decidi então tomar um remédio, ou melhor, dois, já que, definitivamente vomitar e espirrar não eram das coisas mais sexy para se fazer na frente de alguém a quem se almeja. Sabia que aquilo era uma combinação explosiva, remédio para enjoo e anti-histamínico para alergia. Um sossega leão dos melhores. Mas, entre o vexame e o sono, fiquei com o sono.

Carol pediu água à aeromoça e eu engoli os dois comprimidos. Quando começaram a fazer efeito, o comandante já havia dado o aviso de pouso.

Por AcasoOnde histórias criam vida. Descubra agora