Como o ser humano pode sobreviver trabalhando tanto. Tinha a nítida sensação que a minha existência se resumia exclusivamente ao trabalho. No meu caso, a frase "vivo para trabalhar" vinha bem a calhar.
Na minha hora do almoço – comendo uma salada em frente ao computador na minha sala do escritório –, parei para atender ao telefone. Do outro lado da linha, Marina praguejava sobre meu excesso de trabalho e minha mania de eficiência.
Eu concordava, sem a esperança de solucionar o problema, mas certa de que ela tinha razão. Ela fazia referência ao regime de castas, citava Marx, falava da necessidade de ascensão da classe média e todas as frases acabavam, invariavelmente, com "tá ligado véi". Eu a ouvia, invejando aquela forma leve de levar a vida e, ao mesmo tempo, sem conseguir me imaginar dentro daquele estilo.
Ela acabou o telefonema lembrando um e-mail que eu havia ficado de enviar. Sim, claro, o e-mail que concordei em enviar para Carol. Respondi que ainda não tinha tido tempo para fazê-lo e ela me interpelou dizendo que a dinâmica capitalista tinha dessas coisas, colocava as pessoas dentro de uma roda viva, onde o dinheiro passava a gerir o tempo e o tempo passava a ser dinheiro. Segundo ela, as pessoas então não paravam para contemplar os pequenos instantes da vida e tudo se tornava efêmero.
"Meu senhor!" – pensei, mas o que falei foi:
– Acho que, de fato, essa fuga pela satisfação por meio do consumo torna o sujeito pós-moderno, um indivíduo fragmentado, alheio ao mundo real – teorizei.
– Pois é, e é isso que você está fazendo, rejeitando as relações sociais – diagnosticou.
– Por causa do e-mail? – perguntei
– Também. O e-mail é apenas mais uma reação sua às relações. Vejo que você julga tudo como relações líquidas, com as quais você nada pode aprender. Mas reflita, entenda que cada relação contribui para a sua transformação como ser humano – explicou.
– Sem dúvida. Prometo que vou mandar o e-mail e transgredir minhas concepções amargas de mundo – encerrei.
– Aguardo notícias – determinou.
– Pode deixar – afirmei.
Desliguei o telefone e lembrei porque eu era amiga de Marina: porque ela era única. Só ela conseguia simplificar o que havia de mais complexo no mundo e tornar complexo o que havia de mais simples no mundo.
Além disso, ela ainda era loira – embora eu não gostasse de loiras -, tinha olhos verdes, era linda e conseguia tomar chope e fumar sem que eu a odiasse.
Acabei de comer minha salada, pensando em largar tudo e ser hippie para vender minha arte na praia. Quem sabe o acaso não me reservava algo potencialmente interessante numa comunidade alternativa.
Embora fosse verdadeiramente apaixonada pelo meu trabalho, estava cansada emocional e fisicamente. Há 15 anos, vinha construindo uma carreira de sucesso dentro do Direito Privado, especificamente no que se refere ao Direito Empresarial, passando por inúmeros escritórios de advocacia. Agora, depois de muita luta, finalmente havia chegado ao topo, tinha me tornado sócia de um dos maiores escritórios de advocacia do Brasil, com filial nas principais praças do país – isso explica minha peregrinação pelos aeroportos da nação – e contas de grandes empresas nacionais e internacionais.
Vivia em tribunais defendendo clientes, em sua grande maioria indefensáveis, perdendo e ganhando, sempre aos olhos cansados e, muitas vezes, dissimulados da justiça. Sem saber o que, ao certo, era justo. Mas, bem, deixemos ao acaso.

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Por Acaso
RomanceLuísa é advogada, sócia de um grande escritório de advocacia. Lu, como é chamada pelos mais próximos, é reservada e muito desconfiada. Lu chama atenção mesmo fazendo de tudo para passar despercebida. Seu jeito desconfiado muitas vezes faz com que el...