Capítulo II - Dilacerada

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Eu deveria ter me arriscado mais. Ter viajado mais. Ter feito mais amigos. Tomado um porre. Adotado um cachorro. Devia ter trabalhado com comércio internacional, que é minha área favorita. Devia ter feito uma tatuagem. Ou várias. Devia ter vivido mais. Vivido tudo o que eu tinha direito a viver. Quando esses pensamentos rodam em minha cabeça, percebo que a morte pode ser cheia de arrependimentos.

Nunca imaginei que depois da morte a dor dos sentimentos ainda pesasse, e o pior, parecia uma dor física, rasgante. É como se o cérebro fosse explodir. Uma luz vermelha dói no fundo dos meus olhos. Agora sim me sinto idiota, devo não ter morrido ainda.

Abro devagar meus olhos e a luz me atinge com a mesma piedade da faca que me perfurou. Malditas vidraças gigantes! De repente eu já não gosto mais tanto delas. Tenho a impressão de que meu corpo vai esfarelar igual a uma paçoquita. Ah que saudade de comer doces brasileiros, eu com certeza deveria colocar isso entre meus últimos desejos.

Depois de várias tentativas finalmente consigo focar minha visão. Estou caída ao lado da ilha da cozinha, a faca ainda está na minha mão e eu estou quase de barriga para baixo. tem bastante sangue pelo chão mas eu ainda estou viva. Devo ter estado pelo menos 12 horas inconsciente, já que parece ter passado das 9:oo da manhã agora. Percebo que tinha trazido a outra mão para perto do ferimento, provavelmente quando eu desmaiei ela o pressionou devido ao peso do meu corpo sobre ela. E isso me salvou. Com dificuldade me sento devagar, apoiando minhas costas contra o armário da pia. A frente do meu vestido floral de fundo claro está completamente vermelha e ensopada. Vou ter que rasgar o vestido para poder ver o tamanho do estrago. Uso a faca que quase me matou. Na verdade, a faca matou Elisa Novaes. Ela realmente está morta agora. Porquê desde que eu abri os olhos há poucos minutos entendi que a Elisa nunca voltaria, e agora eu teria que tentar entender quem eu realmente sou.

O corte era comprido e provavelmente fundo, mas eu não podia arriscar ir a um hospital. Além de ser caro, eles provavelmente me levariam para a psiquiatria alegando tentativa de suicídio. Vou ter que evitar movimentos bruscos e esperar por não ter órgãos perfurados. Sei que feridas superficiais fecham rápido em mim. O sangue está quase estancado, só tem um pequeno filete de sangue escorrendo do corte. Vou sobreviver. Mas preciso dar um jeito de fugir do apartamento para caso ele volte.

Reúno todos os meus esforços para tentar ficar de pé. E isso me parece ser a coisa mais difícil que eu já fiz na vida, mas eu preciso. Aos poucos consigo me sustentar sem precisar me apoiar na ilha. Consigo chegar no quarto, onde eu mantenho um kit de remédios, deve ter gaze, micropore e algumas coisas de primeiros socorros. Aplico água oxigenada no corte, e isso arde. Entre um gemido de dor e outro xingo Bruno de tudo que me vem à mente. Faço um curativo grosso no local e enfaixo minha cintura para manter compressão.

—Acho melhor vestir uma cinta de ginástica por cima para garantir— pondero eu.

Depois de cuidar disso procuro dinheiro no apartamento e acho 500 dólares que devem ser do Bruno, mas eu não me importo, tenho que sair daqui. Devo ter mais uns 1.500 dólares na minha conta. Visto um jeans confortável, uma regata branca soltinha e um tênis confortável. Meu coração reclama de ter que deixar meus escarpins e vestidos para trás, mas eu tenho que ser prática. Pego alguns itens de higiene e make, além de documentos. De saída, quando passo no escritório do Bruno vejo uma gaveta um pouco aberta e me obrigo a olhar o conteúdo. Há um portfólio preto e no canto dele, em letras muito pequenas lê-se: La Família. No interior há várias fotos de mulheres que parecem brasileiras ou latinas, o que confirmo quando leio seus nomes e sobrenomes nas páginas. Nelas consta também uma lista com característica físicas. Acho uma ficha em que aparece uma foto minha. Nunca esqueceria em que dia foi tirada. Aquele vestido preto. O dia do funeral da minha mãe, há três anos atrás. Elisa Novaes. 19 anos. 1,65m. Olhos verdes. Cabelo castanho claro cacheado. Provavelmente é antiga essa ficha, agora tenho 22 anos. Tem um X vermelho na minha foto. Resolvo levar o portfólio comigo e o coloco na minha bolsa. Não sei para onde eu vou, mas eu tenho que sair de San Francisco.

Cada passo que eu dou dói como o inferno, mas eu tento parecer natural ao passar pelo porteiro. Quando eu alcanço a rua eu olho para o céu lindo e ensolarado dessa maldita Califórnia e juro para mim mesma:

— Eu vou acabar com ele e com La Família, quem quer que sejam. Nem que seja a última coisa que eu faça com a minha vida. Eles. Vão. Pagar. Caro.

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