As noites não podiam ser diferenciadas dos dias na Cidade dos Cavaleiros Mortos. O céu era sempre cheio de nuvens avermelhadas, poeira negra e brilhos fracos das estrelas ou do sol de inverno. A casa subterrânea não dispunha de janelas, então Imani não se importava de uma maneira ou de outra. Sentia falta dos dias brilhantes na província de Tâmara, mas voltar para sua família sempre a fazia feliz. A única comunicação com o mundo exterior era a chaminé que carregava o cheiro delicioso do almoço. Ou seria aquele o jantar?
-Mãe, tem alguém batendo na porta –disse a filha renascida da cozinheira.
A menina tinha manchas de molho em suas vestes brancas. Seus cabelos castanhos tamém estavam sujos, mas de poeira e suor. Ela e os irmãos tinham passado a tarde inteira brincando nas escadas da cidade e se recusavam a tomar baho antes da comida estar pronta. A pobrezinha jamais veria-se livre da cicatriz que se estendia da têmpora ao ombro, mas para Imani, sua filha era perfeita. Nas duas vezes em que a viu nascer, Imani teve certeza de que ela era a criatura mais perfeita de toda Érestha.
-Nada de visitas –gritou Imani, tapando o cozido na panela e começando a ralar as cenouras. –Deixe a porta trancada como eu disse.
-Sim, mãe.
As batidas na porta chegaram aos ouvidos de Imani quando o visitante insistiu. A mulher não gostava de ser interrompida quando fazia comida. Ela jogou a colher de pau na pia e andou até o próximo cômodo. Seus filhos estavam divertindo-se com jogos de carta no chão, rindo alto e ignorando a porta como as boas crianças que eram. Bateu na porta com força, imitando o visitante.
-Não quero visitas. Vá embora!
-Preciso que abra –disse uma voz feminina determinada.
-E eu preciso terminar de cozinhar para meus filhos. Vá embora e tente não voltar.
-Sou Isabelle DiPrata e exijo que abra essa porta imediatamente.
Os filhos da mulher calaram-se à menção daquele nome. O crepitar das cenouras na frigideira e as batidas do coração era tudo o que Imani ouvia. Ela destrancou a porta e abriu uma fresta. A menina negra não disse nada e esperou que Imani a deixasse entrar. Isabelle era tudo o que as crenças de Imani detestavam: morte, traição e o negro. O filho mais novo da cozinheira assustou-se com a aparência dela. O menino nunca tinha sequer saído do subsolo. A jeans preta, o cinto preto e a blusa preta o impressionaram. A menina não cumprimentou ninguém, apenas estendeu a mão que segurava algo para Imani ver. Era uma lagartixa que esperneava, desesperada por liberdade.
-Quando o rabo de uma lagartixa cai, ele se regenera –ela falou, fechando a porta atrás de si.
Isabelle passou os olhos pela sala de Imani, observando e ignorando a simplicidade. A casa era toda cavada em pedra branca e lixada. O pó escorria por elas todos os dias, dando um trabalho enorme para a família da cozinheira. O sofá de couro tinha um cobertor laranja cobrindo-o, e o tapete redondo no centro tinha o desenho de uma espiral. Pregados na paredes estavam foos enquadradas da família, para as quais Isabelle olhava com inveja. A mulher não queria que ela deixasse seu olhar por todos os cantos, sujando a casa recém limpa auja de olhos azul tempestuosos.
Imani sinalizou para as crianças afastarem-se e os três arrastaram-se para o canto da sala. Ela andou até o terceiro cômodo da casa, o menor e mais apertado de todos. As prateleiras estavam cheias de vidros com líquidos coloridos e potes com animais pequenos. No centro haviam dois banquinhos de madeira e uma mesa com frascos e fogo. Isabelle sentou-se em um dos banquinhos e colocou a lagartixa na palma de sua mão, segurando-a pelo cotoco do rabo.
-Não trabalho para sua senhora –Imani grunhiu, tomando a lagartixa da menina e colocando-a no porte de plástico junto das outras.
-Não estou aqui por Tabata –a voz dela parecia não vir de seus lábios. Estes eram secos, finos e gelados, enquanto a voz era confiante e autoritária. -Tenho outros propósitos.
Ela apontou para uma caixa de madeira que emitia um brilho azul no topo da prateleira à esquerda. Imani não tinha coragem o suficiente para desafiar Isabelle DiPrtata. Quando pequena, Imani descreveria o mal com o físico da menina. Sua mãe diria que aquelas feições delicadas e o corpo bem desenhado atraíam pecados. Aqueles olhos azul escuro escondiam centenas de segredos obscuros. Todos os detalhes prata em suas vestes eram um insulto para seu nome manchado. A espada albina que carregava tinha sangue seco por toda a lâmina, e ela mal se importava. A cozinheira branca chacalhou a cabeça em derrota e esticou-se para alcançar o objeto.
-Eu tenho escolha? –perguntou. Isabelle negou, acariciando o punho de sua espada. -Posso ao menos saber que outros objetivos são esse?
-Quero alguém que está esperando sua paz no mundo de Tabata –respondeu. –Preciso trazer alguém de volta, mas não da maneira convencional.
-Por que uma lagartixa? –Imani questionou, curiosa.
-Acho que ela vai gostar.
Imani desenhou algumas formas geométricas na mesa com o giz branco enquanto murmurava. Estrelas dentro de tiângulos e círculos em volta de retângulos. Foi Isabelle quem abriu a caixa e escolheu o frasco vermelho dali de dentro. Isabelle esticou a mão para a mulher, que pegou uma agulha de uma gaveta. A menina preferiu fazer ela mesma o furo em seu dedo. A gota de sangue pingou dentro do frasco e a mulher ofereceu um algodão para ela limpar-se. Isabelle apenas riu e abaixou a mão, ignorando o sangue. Imani sentou-se à frente dela e pegou uma das lagartixas. O bichinho continuava a espernear, e não parou até seu coração não estar mais batendo. Imani cortou um pedaço do bicho com precisão cirúrgica e passou-o na chama do fogo que queimava na mesa de madeira. Quando pegou fogo, ela mergulhou-o no líquido precioso do frasco vermelho e tampou antes da fumaça escapar.
-Feito –ela falou, relaxando os ombros.
-Faz parecer tão fácil –levantou-se a menina.
-E é –Imani disse, abrindo a porta para Isabelle sair.
A menina pegou seu frasco e guardou-o no decote, satisfeita.
-Muito obrigada, Imani. E continue ajudando a princesa Argia.
-Como sabe disso? –Imani assustou-se, dando alguns passos para longe dela. –Fica espionando a escola? Planeja mais ataques aos alunos inocentes, é isso?
-Alunos inocentes? –Ela riu-se, irritando a cozinheira. –Os mais velhos lutarão por Tâmara e mancharão suas mãos com sangue negro, verás. Não tenho motivos para atacar aquela escola, por enquanto. Talvez Tabata ou talvez Pedro, mas não eu. Você é uma peça chave para meu jogo, Imani, não precisa temer-me –sorriu sombriamente, divertindo-se com o medo da senhora de branco. –A não ser, é claro, que a princesa da morte descubra algo sobre esse nosso encontro. Tabata não ficará sabendo sobre minha visita, não é mesmo?
Imani chacoalhou a cabeça, negando. Isabelle andou até a sala e sorriu para as crianças, esperando que a porta fosse aberta para ela. Os pequenos encolheram-se ainda mais e o mais novo desatou a chorar. A cozinheira branca passou por eles com passos determinados escondendo o desconforto e insatisfação que sentia em ter que usar seus conhecimentos com aquela menina. Abriu a porta e Isabele passou, contente. Antes de Iamani ter a chance de trancar tudo, ela virou-se para trás e colocou um dedo sob os lábios finos, pedindo sigilo. Imani concordou com um aceno de cabeça. Aquela visão ficaria presa nos pesadelos de Imani para sempre. A mulher demorou para acalmar os filhos e fazê-los prometer sigilo, mas sentiu-se protegida quando eles finalmente se acalmaram.
-Mas o que ela queria, mãe? –perguntou a renascida, tapando os ouvidos dos irmãos mais novos.
-Sou uma peça –respondeu a cozinheira branca. –E era a vez dela de jogar.
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Érestha -Castelo de Cristal [LIVRO 4]
FantasíaA verdadeira guerra iniciou-se após a morte do rei. As coisas não parecem estar andando para frente. Thaila está mais preocupada em divertir-se e deixar os irmãos felizes do que ajudar Dave a descobrir do que se trata o enigma da rainha. Riley cons...