CAPÍTULO 3

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Nos dias que se sucederam, José Luiz voltou várias vezes à pequena casa do
subúrbio para ver a filha.
Quanto mais conversavam, mais ele sentia crescer a admiração e o respeito por
Luciana. Amoça tinha caráter bem formado e idéias próprias. Foi com carinho
que procurou uma casa para comprar. Desejava rodeá-la de luxo e conforto.
Pretendia apagar qualquer ressentimento que a moça pudesse guardar do
passado. Mostrar seu lado melhor, conquistar-lhe a admiração, a estima.
Tinha intenção de adquirir um palacete na Glória, mas Luciana recusou.
Preferia casa mais simples. Recusou-se também a deixar de trabalhar.
Era professora no colégio Santo Antônio. Gostava do seu trabalho e
desejava continuar.
— Você não precisa — argumentou José Luiz, aborrecido. —Sou seu pai, vou
cuidar de você como é de direito. Terá dinheiro suficiente para viver muito bem.
Luciana fixou no pai seus belos olhos luminosos dizendo com voz firme:
— O trabalho pode não ser só o dinheiro que se recebe por executá-lo.
Pode ser alguma coisa a mais. Ensinar as crianças a enxergar a vida, mostrar-
lhes as belezas do conhecimento, despertar seus espíritos para o bem, para
a participação útil e ativa na sociedade, é uma satisfação que não tem preço,
que escolhi voluntariamente e que não pretendo deixar.
José Luiz admirou-se. Para ele o trabalho sempre fora um fardo desagradável
que se carrega unicamente em função dos proventos que ele dá.
— Mas agora você não precisa. Poderá ocupar-se em coisas mais interessantes.
Ter seu tempo livre para fazer o que quiser.
Luciana sorriu alegre:
— Eu quero lecionar. Está claro que eu, como moça pobre, valorizo o
dinheiro que recebo pelo meu trabalho. Porém, quando estou dentro da sala de
aula, esqueço tudo. Diante daquelas crianças, vendo-as despertar para
o conhecimento, mostrando-lhes a perfeição da natureza, a beleza da
vida, ensinando-as a desenvolver todo o bem que guardam no coração, sinto-
me muito feliz. Eu gosto de fazer isso. Não conseguiria viver na ociosidade,
entre um sarau e outro, o salão de modas ou a vida social. A chance de viver é muito importante para que eu gaste meu tempo na inutilidade. Tudo se
movimenta no Universo, gerando equilíbrio e progresso. Quero viver em
harmonia com ele. O trabalho é para mim como o ar que eu respiro.
José Luiz olhava-a sem compreender.
— Nunca ouvi tais conceitos. Não está sendo muito severa consigo mesma,
privando-se das alegrias a que tem direito?
— Você não entendeu o que eu disse. Minha alegria está também em meu
trabalho. Ele não é um fardo, mas um prazer. Um prazer que toma parte do meu
tempo, que não impedirá que eu tenha outras atividades. Entretanto eu não gosto
de freqüentar certos meios onde a futilidade e os mexericos ditam regras e os
preconceitos deturpam os valores verdadeiros e eternos do espírito. Gosto de
fazer amigos, de conviver com as pessoas, de relacionar-me com elas, porém,
seleciono os amigos, faço apenas o que eu gosto e o que me alegra o coração.
Respeito quem pensa diferente, mas não aceito pressão do convencional, da
obrigação social, da hipocrisia.
— Se todos fossem como você, nossa sociedade se desagregaria. Seria o caos.
— Engana-se. As pessoas seriam mais leais, mais verdadeiras. Não arrastariam
suas vidas com um sorriso nos lábios e a mágoa no coração, tentando fugir de si
mesmas, afundando-se nos vícios, na mentira; sentindo-se a cada dia mais sós
em seu meio social, mais infelizes e abandonadas, empobrecendo o coração,
sentindo o vazio de uma vida sem objetivos nem amor. José Luiz saiu da casa de
Luciana pensativo. As palavras da filha faziam-no pensar em sua própria vida,
tão cheia de sonhos, mas que se transformara exatamente em solidão, vazio,
desencanto, amargura.
Ele era o homem de sociedade. Requisitado, convencional, fechando o coração
para seus sentimentos verdadeiros, mascarando uma felicidade inexistente,
carregando o peso do preconceito, lutando para que os outros não descobrissem
seu desencanto, sua vida inútil e vazia, fazendo o papel do homem feliz,
aparecendo diante dos outros como um vencedor, um forte, alguém que
conseguiu conquistar a felicidade, despertando a inveja dos incapazes, a
admiração dos fracos.
Sua vaidade satisfazia-se com isso, mas seu coração estava infeliz e a angústia
que o cometia estava ficando mais difícil de suportar a cada dia.
Apesar disso, ele não pensava em mudar. Não tinha coragem de enfrentar
os preconceitos, nem de admitir que não era feliz. Sentia-se preso à situação que o sufocava, mas não queria fazer nada para modificá-la. Carregava o peso
da culpa no coração, aceitando as conseqüências de seus atos passados
como uma punição merecida da qual não tinha o direito de queixar-se.
Não compreendeu o ponto de vista de Luciana. Ela era inexperiente, sonhadora,
pensou. Naturalmente mudaria de idéia quando já estivesse usufruindo de uma
posição melhor, e o dinheiro lhe chegasse às mãos.
Ela lhe pedira para escolher a casa antes de comprá-la, e José Luiz concordou.
Apesar de desejar comprar um luxuoso palacete, ele gostou da casa que Luciana
escolheu. Era graciosa, bela, rodeada por lindo jardim em um bairro um pouco
afastado. Entusiasmou-se vendo sua alegria, percorrendo os aposentos e
idealizando a decoração.
José Luiz sentia-se feliz.
— Contrataremos um especialista para escolher o mobiliário.
Luciana colocou a mão no braço do pai dizendo com delicadeza:
— Gostaria de fazer isso eu mesma. Como um estranho poderia saber o que
apreciamos? Vovó tem muito bom gosto, me ajudará. Só preciso saber de quanto
dinheiro dispomos para isso.
José Luiz abanou a cabeça indeciso.
— Quero que a decoração seja a mais linda possível. Desejo que vocês vivam
bem e com alegria. Acha que saberá fazer isso?
— Penso que sim.
— Vamos fazer o seguinte: quero que tudo seja da melhor qualidade: mobiliário,
louças, cristais, roupas, etc. Você escolherá tudo. Porém, vou mandar madame
Marie para auxiliá-la. Ela entende da qualidade dos fornecedores de tudo e
providenciará para você. Quanto ao dinheiro, gaste o que quiser. O que eu quero é que tudo seja do melhor e o mais bonito.
Luciana abraçou-o emocionada.
— Não é preciso tanto. Eu seria feliz com menos.
— Você merece o melhor e o terá.
José Luiz comprou a casa e levou Mme. Marie a Luciana e então começou para elas dias de intensa atividade. A casa foi pintada, mobiliada e
José Luiz satisfeito reconheceu o bom gosto da filha.
Um mês depois, mudaram-se para lá. José Luiz contratara criados e pretendia
comprar um carro, mas Luciana recusou.
— É demais. Teria que ter chofer e não há necessidade. Quando precisar, tomo
um carro de aluguel. Chega já o que fez por nós. Tudo está maravilhoso.
Egle sentia-se feliz, vendo o carinho de José Luiz para com Luciana.
Entusiasmara-se com o belíssimo piano que havia na sala, frente ao qual sentava-
se todas as tardes e tocava velhas canções inglesas, recordando a pátria distante.
Vendera seu piano depois da morte da filha para poderem sobreviver.
Luciana também gostava de tocar. Havia estudado desde criança. Sabia
os clássicos, mas preferia as valsas, os lundus, os xotes e os tangos.
Nenhuma delas tocava diante de José Luiz. Sentiam-se inibidas. Foi ele quem,
uma tarde, sentado no sofá após o chá, costume que Egle
conservava religiosamente, lembrou:
— Há aqui um piano. Lembro-me que a senhora tocava muito bem.
Nunca esqueci aqueles tempos! Seu piano era lindo. Procurei um igual
para comprar, mas não achei.
— Trouxe-o de minha terra. Era um tanto antigo, mas muito bom.
Infelizmente tive que vendê-lo.
Pelos olhos da velha senhora passou um brilho de emoção.
— A senhora tocava lindas canções. Eu as adorava. Quer tocá-las para nós? Egle
dirigiu-se ao piano e com graça tocou várias canções. José Luiz, olhos
marejados, sentia-se transportado ao passado, com Suzane a seu lado na pequena
casa em São Paulo. Por que a perdera? Por quê?
Egle terminou uma canção, e Luciana, observando a tristeza no rosto do pai, disse alegre:
— Vovó, agora sou eu.
Imediatamente Egle levantou-se, e Luciana, sentando-se frente ao
piano, começou a tocar um xote muito em voga.
Arrancado do seu mundo interior, olhou a filha admirado. Ela jamais dissera que
tocava piano. Luciana não só tocava bem como cantava com voz agradável, sem
ser empossada tão ao gosto da época. Graciosa, do xote passou à valsa, da valsa
ao tango, que não cantou.
Ele estava deliciado. Quando ela parou, ele perguntou:
— Não toca clássicos?
Ela sorriu.
— Gosto de brincar ao piano, não sou uma virtuose. Gosto de cantar, traz alegria
ao coração. Nunca faço isso diante dos outros. Quis alegrá-lo. Você estava triste.
— Mas estudou piano...
— Estudei. Quer ver?
Luciana tocou uma peça de Liszt razoavelmente bem. O pai ficou satisfeito.
— Você toca bem — disse ele — deveria dedicar-se mais aos clássicos.
— Por quê? Gosto deles, há páginas belíssimas. Mas aprecio também as canções
em voga. Esta música, por exemplo, é uma delícia.
E a moça tocou um xote malicioso e alegre.
— Tem razão. Possui um jeito especial para essas músicas alegres. Faria muito
sucesso em qualquer sarau.
— Deve ser o meu sangue plebeu. Sou do povo e gosto das coisas populares.
José Luiz riu divertido. A jovialidade alegre de Luciana fazia-lhe enorme bem.
As horas que passava em casa da filha, passaram a ser os momentos mais felizes
de sua vida. Lá, podia ser ele mesmo, sem fingimentos nem dissimulações. Dizer
o que pensava, usufruir de uma atmosfera de paz, carinho, alegria, amor. Sentia-
se querido, recebido com prazer, valorizado.
Também apreciava conversar com Luciana. Gostava de sua inteligência arguta,
seu espírito alegre, sua maneira de enxergar a vida. Por isso, suas visitas eram cada vez mais assíduas, e ele sempre achava um jeito de passar por lá, ainda mesmo quando seus compromissos não lhe permitiam demorar.
Apesar da mudança que a presença de Luciana trouxera em sua vida,
ele continuava cumprindo religiosamente suas obrigações sociais com a família.
Maria Helena sentia que o marido estava diferente. Havia um brilho novo em
seus olhos, e havia momentos em que ele parecia haver remoçado.
Estava menos irritado, mais paciente e mostrava-se algumas vezes
distante, pensativo, absorto.
O que teria acontecido? Em casa, nada havia se modificado. Os problemas eram
os mesmos. Havia guerra na Europa, mas os negócios iam bem, como sempre.
O que estaria acontecendo?
Uma noite em que recebiam os amigos, Maria Helena ao piano
executou brilhantemente uma música clássica. Quando terminou, José Luiz
aproximou- se dela, dizendo com olhos brilhantes:
— Que beleza! Você é uma artista!
— Obrigada — respondeu ela, sentindo seu coração bater mais forte, tal
a emoção. Seu marido jamais elogiara uma execução sua. Parecia-lhe que
ele sequer prestava atenção quando tocava. Admirou-se.
José Luiz olhou a filha que sentada a um canto da sala parecia indiferente e só.
Aproximou-se dela que vendo-o, levantou-se.
— Fica sentada.
Sentou-se a seu lado. Ela sentara-se novamente, na ponta da cadeira.
Estava tensa. Seu pai quase nunca lhe dirigia a palavra, principalmente
em público.
— Como vão seus estudos de piano? — perguntou.
A moça corou e baixou a cabeça, sem responder.
— Estou falando com você. Continua estudando piano, não é?
— Sim. — respondeu ela baixinho.
— O que você gosta de tocar?
— Eu toco o que a professora manda.
— Você gosta de tocar?
— Não muito.
— Por quê?
— Eu não sei tocar como mamãe. Nunca vou aprender. Ela nunca acha que está
bom. Ela tem razão.. Eu não dou para a música.
— Você não gosta?
— Não sei. Tenho vergonha. Sei que vou errar as notas. Sempre erro alguma.
Prefiro não tocar.
José Luiz olhou-a desanimado. Que diferença de Luciana, tão cheia de vida,
sabendo sempre o que quer.
Levantou-se e olhou o filho. Conversava com alguns amigos. Naquele momento,
tinha o rosto descontraído e alegre. Era um bonito moço. José Luiz aproximou-se.
Falavam sobre arquitetura, grande paixão de João Henrique. Vendo-o aproximar-
se, pararam o assunto ao que José Luiz considerou:
— Por favor, continuem, também me interesso pela beleza da nossa cidade.
Eles retomaram a conversa, mas João Henrique mudara completamente sua
expressão. Seu rosto tornara-se frio, ouvia calado as palavras dos demais e José
Luiz, entristecido, depois de alguns minutos, afastou-se.
João Henrique não o aceitava. Por quê? Teria sido influenciado por
Maria Helena?
Ele era muito afeiçoado a ela. Essa atitude do filho começava a incomodá-lo.
Afinal, era seu único filho homem. Era inteligente, culto, por que se afastara
tanto dele?
José Luiz preocupava-se com os filhos. O amor de Luciana, a felicidade que
sentia a seu lado, despertara nele os sentimentos de pai. Durante aqueles anos,
havia se voltado muito aos seus próprios problemas, jamais usufruíra das alegrias
da paternidade. Teria sua indiferença os afastado de Si?
Olhou-os. Talvez já fosse muito tarde para tentar modificar as coisas.

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