A partir da noite do baile, a vida em casa de Maria Helena começou a modificar-
se. Nos serões das terças-feiras, Maria Lúcia interessou-se pelos jogos de salão e
pelas danças. Contudo, insistia na presença de Luciana para dar-lhe coragem.
Maria Helena, a pedido da filha, convidara-a e Luciana aceitara desejosa de
consolidar a mudança de Maria Lúcia. Queria que ela se sentisse mais segura e
depois, poderia afastar-se sem problemas.
Amoça entusiasmara-se com o sucesso e desejava aceitar todos os convites para
festas. Maria Helena aprovava feliz, percebendo o olhar surpreendido dos amigos
e conhecidos, diante das mudanças de Maria Lúcia.
Se antes desejava esconder a filha, agora, exibia-a satisfeita. Percebendo que a
filha só saia com Luciana, convidava a moça para acompanhá-la.
Assim, Luciana passou a tornar-se assídua e até de certa forma indispensável. E
onde elas estavam, Jarbas e Ulisses apareciam infalivelmente. Maria Helena
estava contente. Casar a filha parecera-lhe um sonho quase impossível, agora
tudo estava diferente.
Por outro lado, preocupava-a João Henrique que insistia em manter o noivado.
Uma noite, trouxera Antonieta ao serão e pedira-lhe para tocar. Fora preciso
muito controle para fazê-lo. Notara o olhar de admiração. dos homens e alguma
contrariedade nas mulheres. João Henrique a apresentou como noiva, e Maria
Helena sabia que os comentários seriam inevitáveis.
José Luiz, adivinhando a contrariedade da esposa, desdobrou-se em gentilezas
com todos, temeroso de que Maria Helena não conseguisse conter- se. Fingiu não
perceber o interesse dos homens e o ciúme das mulheres.
João Henrique estava feliz. Cercava Antonieta de atenções, fitava-a
com adoração. Maria Helena concentrou-se na execução, empenhando-se
para dominar a irritação. Algumas senhoras a fitavam com ar de reprovação.
— Querem ver como eu reajo, pensou ela com raiva. Perdem seu tempo. Não
lhes darei o gosto de fazer um escândalo.
Para alívio de José Luiz, Maria Helena tocou com o brilhantismo de sempre.
Quando terminou, ele aproximou-se dela oferecendo-lhe o braço.
— Foi uma bela execução — disse com um sorriso. — Posso oferecer-lhe uma taça de champanhe?
— Obrigada, — respondeu ela, passando o braço no dele.
Dirigiram-se à mesa onde José Luiz apanhou duas taças encheu-as e tomando
uma ofereceu-a à esposa.
— Beba que lhe fará bem — disse baixinho.
Ela obedeceu enquanto ele por sua vez levava a outra aos lábios.
João Henrique aproximou-se trazendo Antonieta:
— Mamãe, Antonieta deseja cumprimentá-la pela brilhante execução.
— É verdade — disse ela — a senhora é uma virtuose. Maria Helena conseguiu
sorrir.
— Obrigada — disse.
Havia um brilho malicioso nos olhos de Antonieta, ou havia sido impressão? José
Luiz interveio com delicadeza, tentando entabular uma conversação, falando de
assuntos amenos.
Antonieta respondeu educadamente, e João Henrique satisfeito com a atitude do
pai, procurou participar. Só Maria Helena mantinha-se silenciosa. Não lhe
agradava a postura desabrida daquela mulher, que parecia olhá-los com a
condescendência de uma rainha aos seus vassalos. E o mais submisso deles era
João Henrique. Tão orgulhoso, tão sério. Como se deixara apanhar assim?
Quando os dois se afastaram, José Luiz disse baixinho:
— Controle-se. Não dê a perceber o quanto está contrariada com esse noivado.
— Estou fazendo o possível. Não posso entender como João Henrique
se envolveu dessa forma.
José Luiz sorriu:
— Eu até que posso. Devemos reconhecer que ela é uma bela mulher.
— Ele está cego! Viu como a fitava?
— Está apaixonado. Seja paciente e procure dissimular. Ele a odiará
se demonstrar qualquer animosidade contra ela.
— Meu Deus! Logo João Henrique que sempre foi tão meu amigo!
— Ele está fascinado. Precisamos manter a calma.
Maria Helena fez o possível para conter-se e enquanto atendia seus convidados,
procurando demonstrar uma alegria que não sentia, desejava ardentemente que
a reunião acabasse.
A partir daquela noite, João Henrique insistia com Antonieta para
que freqüentasse sua casa. Depois de acompanhá-lo a um jantar e de
comparecer a dois saraus, Antonieta recusou os novos convites.
— Por quê? — indagou ele.
— Porque não gosto das pessoas e não tenho vontade de ir.
Ele ficou magoado.
— Refere-se a meus amigos?
— Essa gente puritana e recalcada que me olha como se eu fosse
uma messalina. Quem eles pensam que são? Um bando de ignorantes,
não enxergam um palmo diante do nariz.
— Não pode falar assim. Todos a trataram muito bem.
— Sei o que estou dizendo. Não irei mais e está decidido.
— Minha família a recebeu muito bem.
— Deixe sua família fora disso. Não vamos brigar. Não tenho vontade de ir e não
irei.
— Está bem. Também não quero brigar. Seja como quiser.
— Faremos novos amigos. Deve haver gente mais interessante nesse Rio de
Janeiro.
Ele não disse nada. Conhecia-lhe o temperamento voluntarioso. Com o tempo,
haveria de fazê-la compreender. Porém, ela não compreendeu. A cada dia
tornava-se mais irritadiça. Saía todas as noites procurando divertir-se, e João
Henrique acompanhava-a contrariado. Tentou conversar, dizer-lhe que gostaria
de ficar um pouco em casa. Estava cansado, não tinha tempo para estudar,
dedicar-se ao trabalho, nem dinheiro para sustentar esse ritmo de vida. Mas Antonieta não lhe dava ouvidos. Ele que fosse descansar. Ela iria com os novos amigos. João
Henrique emagreceu, perdeu o apetite.
Maria Helena preocupava-se. José Luiz chamou o filho para conversar.
Percebeu claramente que as coisas não iam bem.
— Não há nada — garantiu ele.
— Você parece cansado, não se alimenta direito, sua mãe preocupa-se.
João Henrique sorriu:
— Estou bem. Mamãe exagera. Agora que Maria Lúcia melhorou, ela voltou
toda atenção para mim.
— Não seja injusto. Sua mãe pensa em seu bem-estar. Você não parece bem.
Tem se alimentado mal. Por que não nos conta o que o está afligindo?
— Tudo está muito bem. Minha única preocupação agora é o dinheiro.
O emprego esperado não sai, você sabe, tenho despesas. Antonieta é mulher
de classe. Freqüenta lugares finos. Minha mesada tem sido insuficiente.
— Precisa de dinheiro?
João Henrique corou ao responder:
— De fato. Minha situação financeira não é boa.
— Contudo, dobrei sua mesada depois do noivado. Não acha que estão gastando
além de suas posses?
— Minha felicidade é mais importante do que um punhado de moedas. Somos
ricos. Não posso fazer triste figura com minha noiva.
— Sua mesada parece-me capaz de suprir essas necessidades a não ser que você
fosse dado a vícios, coisa que não acontece.
João Henrique olhou para o pai escolhendo as palavras para responder. Estava
inquieto e atormentado.
— Pai, a mesada que recebo é generosa. No entanto, Antonieta vivia na Europa,
está habituada a gastar sem reservas. Eu não gostaria de ser mesquinho, de contar os tostões.
José Luiz olhava-o pensativo. O problema se agravara antes do que ele pensava.
— Filho, — retrucou calmo. — Se ela vai casar com você, deve aprender a viver
de acordo com suas posses.
— Por isso desejo trabalhar o mais rápido possível. Preciso ganhar dinheiro.
— Tem razão. Contudo, para fazer carreira, subir na vida, conquistar prestígio,
bens, posição, é preciso tempo e esforço. Ninguém consegue isso de um dia para
o outro. Sua noiva é mulher experiente. Deve saber que está compromissada
com um moço recém-formado, cujos pais são ricos, mas cujos bens virá a
herdar só quando eles morrerem. Fora disso, embora possa receber ajuda, não
deverá esperar uma situação brilhante. Começar a vida com seus próprios
recursos, subir pelos próprios méritos, valoriza o caráter, solidifica a união.
- Você não pensava assim quando se casou — retrucou ele, sentido.
Ouvindo a alusão sobre o motivo de seu casamento, José Luiz enervou-se.
Procurou controlar-se. Não queria brigar com o filho. Manteve silêncio
por alguns instantes, buscando agir com calma. Quando falou, estava sério e
em sua voz havia um tom de tristeza.
— É verdade. Hoje porém, se pudesse voltar atrás, agiria de outra forma.
Percebendo a atitude digna do pai, João Henrique arrependeu-se.
— Desculpe. Não pretendia ofendê-lo. Na verdade estou mesmo inquieto, queria
muito resolver esse problema, casar o quanto antes.
— Casamento não resolve problemas, meu filho. Ao contrário, muitas vezes os
acentua. É uma decisão muito séria que modificará toda sua vida.
Não pode ser precipitada.
— Pai, eu amo Antonieta. Sinto-me inseguro. Tenho medo que ela se arrependa.
Com o casamento, tudo passará.
— Engana-se. A maior segurança da união entre duas pessoas é o amor, o
entendimento, a harmonia. Quando não há essas coisas, o casamento não se manterá.
João Henrique passou a mão nervosamente pelos cabelos em um aquele compromisso não se prolongaria.
— Felizmente não é esse o nosso caso. Nós nos amamos e nos compreendemos.
O único problema é do dinheiro. Você podia arranjar isso, se quisesse. Tem
poder, prestígio...
— Está bem, — concordou ele para acalmá-lo. — Vou providenciar.
— Faça isso. Um posto importante, quem sabe até no governo, e tudo estará bem.
Por favor, papai. Ser-lhe-ei eternamente grato.
— Está bem. Vou tentar.
— Obrigado.
— Trate de acalmar-se. Quero vê-lo mais satisfeito e disposto.
João Henrique sorriu. Tudo haveria de dar certo. José Luiz não pretendia facilitar
as coisas para que aquele casamento se efetuasse. Percebia claramente o que
estava acontecendo. Não acreditava que Antonieta levasse o compromisso até o
fim. João Henrique sofreria, mas acabaria por conformar-se. Era jovem e o
tempo cura todas as feridas.
Pensou em seu amor perdido, em Suzane e concluiu: quase todas.
Embora sua ferida estivesse menos dorida, a saudade e o arrependimento ainda o
faziam lamentar as atitudes passadas. Procurou Maria Helena, pondo-a a par da
conversa com o filho.
— Sinto que esse noivado não vai durar — concluiu.
— Deus o ouça! — respondeu ela, radiante.
— João Henrique vai sofrer. Está envolvido até o pescoço.
— Não importa. Ele esquecerá. Há de encontrar outras moças que o ajudarão a
equilibrar-se. Acha mesmo que as coisas estão mal entre eles?
— Acho. Tenho a impressão que ela não se acostuma longe do palco e da vida
noturna. João Henrique não fica em casa uma noite sequer. Tem chegado de
madrugada.
— Esta mulher está arrastando João Henrique para a devassidão. Ele nunca foi
dado a excessos. E se ela não desistir? Não podemos deixar que se casem. Seria gesto desalentado. José Luiz penalizou-se. Teve a certeza de que aquele compromisso não se prolongaria.
— Felizmente não é esse o nosso caso. Nós nos amamos e nos compreendemos.
O único problema é do dinheiro. Você podia arranjar isso, se quisesse. Tem
poder, prestígio...
— Está bem, — concordou ele para acalmá-lo. — Vou providenciar.
— Faça isso. Um posto importante, quem sabe até no governo, e tudo estará bem.
Por favor, papai. Ser-lhe-ei eternamente grato.
— Está bem. Vou tentar.
— Obrigado.
— Trate de acalmar-se. Quero vê-lo mais satisfeito e disposto.
João Henrique sorriu. Tudo haveria de dar certo. José Luiz não pretendia facilitar
as coisas para que aquele casamento se efetuasse. Percebia claramente o que
estava acontecendo. Não acreditava que Antonieta levasse o compromisso até o
fim. João Henrique sofreria, mas acabaria por conformar-se. Era jovem e o
tempo cura todas as feridas.
Pensou em seu amor perdido, em Suzane e concluiu: quase todas.
Embora sua ferida estivesse menos dorida, a saudade e o arrependimento ainda o
faziam lamentar as atitudes passadas. Procurou Maria Helena, pondo-a a par da
conversa com o filho.
— Sinto que esse noivado não vai durar — concluiu.
— Deus o ouça! — respondeu ela, radiante.
— João Henrique vai sofrer. Está envolvido até o pescoço.
— Não importa. Ele esquecerá. Há de encontrar outras moças que o ajudarão a
equilibrar-se. Acha mesmo que as coisas estão mal entre eles?
— Acho. Tenho a impressão que ela não se acostuma longe do palco e da vida
noturna. João Henrique não fica em casa uma noite sequer. Tem chegado de
madrugada.
— Esta mulher está arrastando João Henrique para a devassidão. Ele nunca foi
dado a excessos. E se ela não desistir? Não podemos deixar que se casem. Seria uma desgraça!
— Ele não tem condições financeiras para casar-se de imediato. Quer que eu lhe
arranje um emprego que lhe dê condições.
— Você não fará isso!
— Não a curto prazo. As coisas não vão bem entre eles. Não quero que ele fique
ressentido comigo. Procurarei arranjar-lhe um bom lugar que o valorize e o
coloque em condições de mostrar seu conhecimento. Mas farei isso de forma a
não facilitar seu casamento.
— Devia ignorar esse pedido. Seria mais seguro.
José Luiz balançou a cabeça em negativa.
— Não. A amizade de João Henrique é muito importante para mim. Ele nunca se
aproximou. Agora que estamos nos entendendo, não desejo afastá-lo. Maria
Helena olhou-o admirada. Seu marido estava mudado. Parecia-lhe mais
humano, mais próximo, muito diferente de outros tempos.
— Só não quero que ele estrague sua vida casando-se com aquela mulher.
— Vamos esperar. Deus conduz a vida e sempre faz o melhor.
Sem perceber, ele repetia palavras de Luciana. Maria Helena calou-
se. Aprendera que as coisas sempre podem melhorar. Luciana e Maria Lúcia
estavam na sala de música. Amoça conseguira que sua aluna tocasse certinho
algumas peças, mas percebia que ela distraía- se constantemente interessada em
outras coisas. Decidiu esclarecer o que ocorria.
— Vamos conversar um pouco — sugeriu.
Maria Lúcia suspirou aliviada.
— Você não se interessa muito pelo piano.
— Não é bem assim. O que posso fazer se não tenho habilidade?
Luciana sorriu.
— Cuidado. Não seria mais adequado dizer que não sente vontade de tocar?
— Não. Se eu disser isso, minha mãe se zangará. Depois, você não será mais minha professora. Irá embora.
Luciana olhou-a nos olhos enquanto dizia:
— Você pode viver bem sem mim. Tem capacidade suficiente para isso.
Maria Lúcia levantou-se do banquinho e aflita segurou as mãos de Luciana.
— Você não vai me abandonar! Por favor. Diga que ficará. Eu prometo estudar,
esforçar-me. Não terá motivos para me deixar.
Luciana abraçou-a:
— Não penso em deixá-la. Quem disse isso? Acontece que podemos ser amigas,
nos ver, sem que precise dar-lhe aulas de piano. Nada vai mudar entre nós. Só
que não acho justo você estudar contrariada, e sua mãe pagar por aulas que não
lhe são proveitosas.
— Tenho medo que você não venha mais aqui. Fico esperando ansiosamente sua
chegada.
— Nossa amizade está acima de todas as coisas. Lembre-se sempre disso. Agora
seja franca, gosta ou não de estudar piano?
Maria Lúcia permaneceu pensativa por alguns segundos, depois disse:
— Adoro quando você toca, D. Egle e até mamãe. Mas não me sinto capaz. —
Você gosta de música, aprendeu a dançar com muita facilidade.
— Mas ao piano sou sofrível, reconheço.
— Pense bem. Na vida, em momentos de decisão como este, é sempre bom
parar e observar cuidadosamente nossos verdadeiros sentimentos. Faça isso.
Procure descobrir o que torna sua aula de piano tão sem interesse para você.
Seja honesta, corajosa. Não tenha medo de ver a verdade. Reconhecer que não
gosta de fazer uma coisa, não significa que seja incapaz de
fazer maravilhosamente outras, às vezes, até mais importantes e que lhe
dariam mais valor do que esta. Aprender a se conhecer é o caminho mais seguro
para a felicidade.
— Está bem. Tentarei. Mas prometa que se não houver mais aulas de piano você
virá aqui da mesma forma.
— Se você desejar, e sua mãe permitir, virei sempre.
Na aula seguinte, Luciana encontrou Maria Lúcia a sua espera. Assim que se
recolheram à sala de música, foi logo dizendo
— Fiz o que você mandou. Pensei, procurei sentir no fundo do coração e já sei do
que não gosto.
— Ótimo. O que é?
— Essas músicas complicadas. São enfadonhas, tristes. Deixam-me deprimida.
Gostaria de tocar músicas da moda. Gosto de melodias brejeiras, alegres.
— Estamos descobrindo que você é uma moça alegre e gosta de divertir-se.
Podemos tentar de forma diferente. Ao invés de clássicos, aprenderá chorinhos,
valsas, modinhas.
— Minha mãe não concordará. É exigente e não transige quanto a isso. Ou
clássico, ou não tocarei nada.
— Sua preferência por esse tipo de música não é tão forte como pensa.
— Porquê?
— Porque não está querendo lutar e defender seus gostos, suas idéias. Só merece
conquistar o que deseja, quem luta para isso.
— Você fala, mas mamãe é dura. Não permitirá.
— Se você se considera derrotada antes de tentar, não há nada para fazer. E diz
que gosta de lutar.
— Gostaria sim. Acredite. Adoraria no sarau tocar as músicas que os jovens
apreciam. Quando fomos ao sarau em casa dos Menezes, adorei ver a Celinha ao
piano. Reparou como todos se alegraram quando ela tocou? Gostaria de ser como
ela. Cheguei a invejá-la.
— Está bem. Tentaremos. Falarei com D. Maria Helena. Veremos o
que acontecerá.
— Tenho medo!
— Não diga isso. Onde está a moça corajosa que venceu todos os medos e brilhou no baile de João Henrique?
Maria Lúcia respirou fundo.
— Seja — disse. — Vamos tentar.
— Assim é que se fala. O que pode acontecer de pior?
— Ela dizer não...
— Esse fato não vai mudar nada. Continuaremos como até agora por mais algum
tempo, depois voltaremos ao assunto.
— Você é maravilhosa. O que seria de mim sem você?
— Um dia descobriria a verdade e reagiria por si mesma.
Naquela tarde mesmo, ao encerrar a aula, Luciana pediu para conversar com
Maria Helena. Uma vez em seu gabinete, foi direto ao assunto.
— Precisamos conversar sobre as aulas de piano de Maria Lúcia.
— Estou à sua disposição. Sente-se, por favor.
Luciana acomodou-se em graciosa poltrona enquanto sua interlocutora sentava-
se em outra.
— A senhora tem observado Maria Lúcia ao piano. O que acha?
— Ela tem melhorado. Toca as peças sem errar, é já uma grande vitória.
— Estive pensando que isso não é o bastante para tornar-se um bom executante.
É preciso mais.
— É preciso talento, — aduziu Maria Helena, — e isso certamente ela não possui.
É isso que quer me dizer.
— Não é exatamente isso, D. Maria Helena. Na Inglaterra, no conservatório, há
grandes professores. Todos eles interessados em estudar esse assunto. Fizeram
experiências, pesquisas e chegaram a alguns resultados que muito têm
contribuído para o incentivo e o desenvolvimento dos instrumentistas.
Maria Helena interessou-se:
— Acha que poderiam ajudar Maria Lúcia a ser uma boa musicista?
— Talvez. Tem ajudado muitas pessoas. Por que não ela?
— Pode ser. Na época moderna tudo está se modificando.
— Diga-me, D. Maria Helena, quando decidiu que Maria Lúcia deveria estudar
piano, o que esperava dela? Que se tornasse uma grande virtuose como a
senhora, ou outras pessoas famosas?
— Não. Desde o começo eu sabia que Maria Lúcia não tinha condições de
tornar-se grande executante.
— Desculpe insistir nesse ponto. É muito importante para o progresso dela que
falemos sobre isso.
— É inusitado, Luciana. Mas, concordo. Você tem conseguido com ela o que
ninguém jamais conseguiu. Hoje, graças a você, minha filha é uma
moça normal, como as outras. Confio em sua capacidade e em seus métodos
de ensinar, embora sejam diferentes.
— Desde o início, a senhora acreditava que ela não se tornaria grande pianista.
— Isso mesmo.
— Mas insistiu ainda assim.
— Sim. Pensei que a música pudesse sensibilizá-la, despertar-lhe o interesse pela
vida. Maria Lúcia foi sempre uma menina triste. Amúsica tem o dom de falar
aos sentimentos.
— É verdade. A senhora pensou com acerto. Se surpreenderia se eu lhe dissesse
que sua filha talvez possa tornar-se uma brilhante musicista?
Maria Helena abriu a boca e fechou-a de novo sem saber o que dizer. Ficou
silenciosa alguns momentos, depois disse:
— Você é surpreendente. Pensei que fosse dizer-me que seria melhor desistir
dessas aulas; porque ela jamais faria isso bem, e agora... Você realmente me
surpreende. Não sei o que dizer... Em que se baseia para afirmar isso? — Em
uma frase que li de famoso autor: o prazer está associado ao processo de
aprendizagem. Só faremos o melhor, se tivermos prazer em fazê-lo. Não foi
assim com a senhora? Não adorava suas aulas de piano?
— É verdade. Eram para mim os melhores momentos. Aguardava-
os ansiosamente.
— Ainda hoje quando toca, seu rosto de transfigura de prazer e alegria.
— É verdade. Contudo, não vejo a relação que isso possa ter com minha Filha.
Ela sempre sentou-se ao piano Como quem vai ao sacrifício.
— Tem razão nisso também. A princípio também pensei como a senhora e
procurei incentivar-lhe o gosto pelas artes e tudo o mais. Observando sempre,
COnversando com ela, cheguei à Conclusão de que ela não aprecia os
CLÁSSICOS.
— Como? A verdadeira música. Amúsica eterna!
— É verdade. A senhora já tem sensibilidade para sentir isso. Mas, as pessoas são
diferentes umas das outras. O que comove uma até as lágrimas, deixa a outras
indiferentes, e a recíproca é verdadeira.
— Onde quer chegar?
— Descobri que Maria Lúcia não aprecia os clássicos, mas comove-se e adora
músicas populares. Aprender a executá-las seria para ela enorme prazer.
— Ela disse isso?
— Não claramente Receia desgostá-la Ficou entusiasmada com a Celinha.
Maria Helena, cenho fechado, olhava séria e calada.
— Disse-me que gostaria de ser como ela e alegrar uma festa.
— Fazer ruídos Como eles fazem.
— Os Costumes estão mudando. Ela é jovem, deseja viver sua época.
— O que sugere?
— Gostaria da sua permissão para ensinar-lhe algumas peças atuais. Terei
cuidado ao escolher. Isso lhe daria prazer e incentivaria ao estudo.
Depois que ela adquirir gosto, talvez desenvolva a sensibilidade que lhe falta.
Maria Helena suspirou.
— Está bem. Confio em seu bom senso. Confesso que se conseguir que ela se
torne uma executora brilhante, será um milagre. Vamos ver isso.
Luciana levantou-se alegre.
— Obrigada, D. Maria Helena. A senhora é uma mulher compreensiva e inteligente. Obrigada mais uma vez.
Notando a euforia de Luciana, Maria Helena sorriu. Gostava muito dela
e agradecia a Deus havê-la colocado em seu caminho.
Luciana voltou a entrar na sala de música, olhos brilhantes de prazer.
Maria Lúcia a esperava.
— D. Maria Helena concordou. — disse alegre.
— Parece mentira! Só você poderia ter conseguido isso! Qual nada. Sua mãe
mostrou-se muito compreensiva.
Maria Lúcia entusiasmou-se:
— Quero aprender aquele chorinho que mexeu com todas as pessoas. Ao ouvi-lo,
até os mais sisudos marcavam o compasso com os pés.
— Eu sei. Vovó tem boa coleção de Nazaré. Na próxima aula, trarei algumas
para escolhermos juntas. Sabe o que faremos?
— O quê?
— Surpreenderemos a todos. Você vai escolher duas músicas e estudá-las.
Quando estiver tocando bem, as executará em nosso sarau.
Maria Lúcia enrubesceu, mas seus olhos brilharam de prazer.
— Acha que serei capaz?
— Você é capaz. Resta descobrir se quer e se gosta.
— Vamos tentar. Se você diz, eu acredito.
Uma vez em casa, Luciana aconselhou-se com a avó que a ajudou a escolher
algumas músicas que, mesmo sendo populares e estando em voga, ofereciam
boas condições de desenvolvimento e aprendizagem.
Egle entusiasmou-se:
— Agora, tenho comigo que essa menina irá apreciar as aulas. Nem
todos possuem sensibilidade para sentir a música mais elaborada. Os jovens gostam de coisas alegres.
Luciana concordou satisfeita. A partir daquele dia, Maria Lúcia passou
a interessar-se mais pelo piano, e sua execução melhorou
sensivelmente. Luciana estava radiante. Além do mais, descobrira que Maria
Lúcia possuía belo timbre de voz, muita afinação e gostava de cantar, embora
tentasse não demonstrar. Com o tempo, haveria de fazê-la mudar de idéia.
Em pouco tempo, Maria Lúcia executava as duas músicas bastante bem.
Um chorinho e uma valsa de Nazaré.
— Amanhã à noite, no sarau, você vai executá-la.
Apesar de um pouco assustada, os olhos de Maria Lúcia brilharam.
— Acha que conseguirei? Uma coisa é tocar só para nós, outra é estar na frente
de todos. Sinto um frio no estômago. Não tenho coragem!
— Por quê? Você está tocando muito bem. Não tem que se preocupar. Ë só fazer
de conta que estamos só nós duas aqui, como sempre.
— Ulisses virá?
— Ele e Jarbas nunca faltam. São os primeiros a chegar e os últimos a sair. O
Jarbas só tem olhos para você.
— Eu preferia que fosse o Ulisses. Esse só olha para você.
— Um dia ele há de perceber que perde seu tempo e desistirá.
— Você não gosta mesmo dele?
— Claro que não.
— Eu não gostaria de magoá-la. Vê-se que ele está interessado e que vocês não
namoram porque você não quer.
— Não quero mesmo. Não me interesso por ele. Não pretendo namorá-lo.
— Posso tentar conquistá-lo? Você não me julgaria mal?
— Por certo que não.
— Sonho com ele todas as noites. Estou apaixonada.
Luciana sentiu-se apreensiva. Não considerava Ulisses capaz de fazer Maria Lúcia feliz. Jarbas seria mais indicado, possuía caráter, delicadeza e parecia
sinceramente interessado nela.
— Não sente nada pelo Jarbas? Ele está apaixonado por você.
— Pode ser. Mas prefiro Ulisses. Quando ele aparece, meu coração bate mais
forte, fico trêmula. Quando danço com ele, a emoção toma conta de mim.
Luciana sorriu:
— Não tem jeito mesmo.
— Acha que ele pode interessar-se por mim?
— Claro. Entretanto, às vezes, essas coisas não acontecem como imaginamos.
Sabe por quê?
— Não.
— Porque Deus escolheu para nós coisa melhor.
— Para mim, se Ulisses me amasse, seria a felicidade.
— Você pensa assim agora. Imagina apenas. Não experimentou viver com ele
num relacionamento dia-a-dia. Deus sabe tudo e quando não nos dá o que
desejamos é porque nos reserva coisa melhor.
— Gosto dele. Se ele não quiser, não caso com mais ninguém.
— Não seja radical nem injusta. Está agindo como uma criança mimada.
Como pode saber o futuro? Quem nos garante que esse seu entusiasmo não acabe
e amanhã apareça outra pessoa que desperte seu afeto de forma mais profunda e
verdadeira do que agora?
— Não creio. Não me interesso por mais ninguém. Luciana mudou de assunto
dizendo:
— Vamos repassar essas músicas. Amanhã surpreenderemos a todos.
Maria Lúcia riu excitada. Tocar no sarau! Teria coragem?
— Imagine que o sarau já começou. Todos estão aqui, sua mãe, seu pai,
Ulisses, Jarbas, todos.
— Fico tremendo só em pensar.
— Eles estão aqui, mas você vai tocar só para mim, só eu estou perto de você.
Vai ser um sucesso. Vamos. Toque.
Maria Lúcia, trêmula, obedeceu e aos poucos foi se firmando e conseguiu tocar
bem.
— Muito bem, — aprovou Luciana. — Vamos novamente e durante a execução
vai sentir a música e mergulhar nela de corpo e alma. Nesta sala não haverá
mais ninguém. Só você, a música e seus sentimentos. Não existe mais nada.
Deixe-se levar e perceba o que cada nota desperta dentro de você.
Maria Lúcia começou a tocar, e Luciana continuou falando e a moça aos poucos
foi se envolvendo com a melodia, sentindo vibrar de emoção, num crescendo de
entusiasmo e expressão. Quando ela terminou, Luciana não conteve o
entusiasmo. Beijou-a na face carinhosamente. Maria Lúcia olhou-a emocionada
sem encontrar palavras para descrever o que lhe acontecera.
Luciana considerou:
— Hoje, sua alma conseguiu expressar-se através da música. Sinto que daqui
para frente você encontrará seu próprio caminho dentro da arte.
— Foi uma emoção muito forte. Não posso explicar. Uma felicidade, alguma
coisa muito grande, muito boa, dentro de mim.
— Eu sei. Amanhã fará tudo bem, tenho certeza.
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Quando a Vida Escolhe
روحانياتConheça a história da doce Luciana e aprenda, por meio dessa adorável personagem, que cada um de nós é a própria vida tornando-se realidade. Isso quer dizer que, quando escolhemos, é a vida escolhendo em nós. A vida jamais erra. Assim, seja qual for...