Capítulo 10

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João Henrique saiu apressado. Havia dois meses que estivera em casa de Maria
Antonieta pela primeira vez e a cada dia sentia aumentar seu interesse por ela.
Comparecia ao teatro todas as noites e depois acompanhava-a à casa, onde
permanecia durante horas, saindo sempre a contragosto. Falara-lhe do seu amor,
dos seus sonhos, e ela não o levava a sério, procurando conduzir o assunto para
outros interesses.
Entretanto, João Henrique, cada dia mais apaixonado, alimentava planos para o
futuro. Finalmente, acabara seu curso. Dentro de duas semanas, haveria a
cerimônia da formatura e o baile de gala. Pretendia comparecer com Maria
Antonieta e apresentá-la aos pais e à sociedade. Dias depois, fariam o jantar de
noivado e marcariam a data do casamento, para o começo do ano seguinte.
Contava com a tolerância dos pais. Não a apresentaria logo como artista.
Depois de conhecê-la, ficariam encantados o que facilitaria as coisas
quando descobrissem a verdade.
Não os enganaria durante muito tempo. Ela era muito conhecida para isso. No
baile mesmo, depois que a tivessem apreciado, diria tudo.
Olhou as horas e refletiu que não chegaria em tempo de assistir o espetáculo.
Resolveu ir mais devagar. Esperaria por ela no final. Chegou ao teatro com a
peça em meio e, enquanto esperava, fazia planos para o futuro.
Estava interessado em um projeto para melhorar a cidade. Não podia aceitar que
a capital do país fosse tão descuidada com a higiene das ruas e a beleza de suas
praças. Contava obter o auxilio do prefeito e da população abastada. Organizaria
um escritório, trabalharia muito e contava com o dinheiro dos pais, a influência
do seu nome para conseguir seu próprio dinheiro e fazer carreira.
Tinha certeza de poder oferecer à Maria Antonieta uma vida de rainha e todo seu
amor.
Naquela noite, quando ela saiu do teatro, rodeada de muitos amigos, quis ir ao
restaurante cear. Apesar da sua ansiedade em Conversar com ela sobre o futuro,
ele não teve outro remédio senão segui-la. Fazia parte de sua fama, de sua
carreira, esses jantares, onde quase sempre, programavam-se novos
Contratos e mantinham a popularidade. Passavam da meia-noite quando finalmente João Henrique despediu-se dela na porta de sua casa, para
retornar meia hora depois, discretamente
Quando entrou, ele abraçou-a com paixão, beijando-lhe os lábios repetidas vezes.
Vestindo longo traje de cetim cor-de-vinho, justo no corpo e aberto dos lados à
moda chinesa, ela deixava-se beijar. Quando sentiu-se mais calmo, João
Henrique tomou-a pela mão conduzindo-a ao sofá, fê-la sentar-se, sentando-se a
seu lado.
— Precisamos ter uma conversa séria - disse olhando-a nos olhos.
Ela desviou o olhar.
— Por favor! Hoje não. Estou cansada. Não quero Pensar em nada.
- É preciso. A cada dia que passa sinto que a amo mais. Não posso mais viver
sem você. Diga que também me quer.
Ela aproximou-se e beijou-o levemente nos lábios.
- Eu gosto de você. Senão, não estaria aqui. Mas, eu preferia que não
se precipitasse. Afinal, nos Conhecemos há pouco tempo. Falaremos sobre
isso outro dia.
— Não. Tem que ser hoje. Eu a amo. Quero casar com você.
Ela levantou a cabeça assustada.
— Está louco!
— Você me ama, eu a quero para sempre. Juntos seremos felizes.
Ela olhou-o com Preocupação.
— É Cedo demais para pensar nisso. Não estrague nossa amizade.
João Henrique tomou-a nos braços, apertando-a contra ao peito, beijando-a
longamente.
— Você me pertence, — disse com voz que a paixão enrouquecia. — Não quero
perdê-la!
— Deixemos os assuntos sérios para depois, — respondeu ela, baixinho.
— Venha, vamos viver o momento presente.
Puxou-o pela mão até o quarto, e João Henrique mergulhou novamente em seus
braços, sem pensar em mais nada.
Quando Luciana chegou em casa de Maria Helena, encontrou Maria Lúcia um
tanto inquieta. Amoça melhorava a olhos vistos, contudo teimava ainda em
manter a aparência apagada de sempre.
Depois de cumprimentá-la carinhosamente, Maria Lúcia puxou-a pelo braço e
pediu:
— Sente-se aqui. Preciso da sua ajuda.
Seu rosto estava ansioso e corado.
— O que é? — indagou Luciana, interessada.
— O baile de João Henrique. Ele acha que eu preciso ir.
— Claro. Isso é ótimo.
— Você não entendeu. Eu não quero ir sozinha. Você vai comigo.
— Não sei. Trata-se da formatura dele. Só irão os convidados.
— Mas ele a está convidando. Olhe. Pediu-me que lhe entregasse o convite, com
suas desculpas por não tê-lo feito pessoalmente. É que ele tem aula na hora em
que você vem.
— Obrigada. Agradeça o convite.
— Você irá comigo?
— Acha que preciso? Você pode ir a esse baile com sua família.
Os olhos dela brilhavam quando disse:
— É que eu preciso da sua ajuda. Você prometeu.
— O quê?
— Não vai rir de mim? Posso pedir uma coisa?
Ela estava corada e sem jeito.
— Pode. Fale sem medo. O que quer fazer?
— Quero ir bem bonita. Desejo mudar tudo. Fazer como na sua casa, ficar
diferente.
Luciana sorriu:
— Que bom ! Será maravilhoso. Sua mãe vai adorar.
— Será? Tem certeza de que não ficarei ridícula?
Luciana beijou-a levemente na face.
— Ficará linda. Verá. Depois há espelhos nesta casa, poderá ver por si mesma. Já
escolheu o vestido?
— Não.
— Tenho excelente modista que o fará para você. Sua mãe aceitaria?
— Não quero que ela saiba. Farei surpresa.
— Está bem. Faremos tudo em segredo. Sábado, quando for a minha casa, ela a
esperará lá. Tem tudo que vai precisar.
Maria Lúcia estava alegre e excitada.
— Gostaria que fosse hoje. Estou ansiosa para escolher o vestido. Terei que
esperar até sábado!
— Pode ir amanhã, se sua mãe deixar.
— Será melhor. Direi que preciso vê-la. Ela não se oporá.
— Como queira. Amanhã então escolheremos tudo.
Maria Lúcia permaneceu pensativa durante alguns segundos, depois disse: —
Acha que algum moço me notará?
Luciana sorriu alegre:
— Garanto que muitos a notarão e quererão dançar com você.
Maria Lúcia levou a mão ao rosto assustada.
— Dançar?
— Sim.
— Mas eu danço mal. Não terei coragem. Melhor não ir.
Luciana segurou-a pelos ombros e olhou-a firme nos olhos.
— Não seja covarde. Você sabe que pode fazer isso.
Ela baixou os olhos.
— Olhe para mim, — continuou Luciana com firmeza. — O passado está morto.
Acabou. Você agora é outra. Não tem mais um corpo doente e humilhante. Sua
pele é limpa e sedosa. Você é linda. Merece a felicidade.
Daqui para frente, a vida lhe dará só alegria, amor, felicidade.
Maria Lúcia olhava-a admirada e havia um brilho profundo em seus olhos.
— Quem lhe contou?
— O quê?
— Os meus pesadelos. Como sabe?
Luciana acariciou o rosto de Maria Lúcia com suavidade.
— Sente-se aqui, conte-me esses seus pesadelos.
— Você falou sobre eles. Nunca contei a ninguém. Como descobriu?
— Existem pessoas que podem descobrir coisas a nosso respeito.
Digamos que converso com meu anjo da guarda e ele me disse.
— Como se faz isso? Nunca conversei com o meu.
— Foi em sonho. A alma de minha mãe vem buscar-me algumas vezes, nos
encontramos durante o sono.
— É possível?
— É. As pessoas que morrem vão para um outro mundo e vêm nos ver quando
podem. Minha mãe veio ver-me. Sonhei com ela, conversamos e ela contou-me algumas coisas sobre sua vida passada.
— Vida passada? Como assim?
— Eu sei que nós vivemos outras vidas antes desta, aqui na Terra mesmo, de
onde trazemos impressões e aprendizagem, necessidades e esperanças para
novas experiências e progresso do nosso espírito. Em cada nova experiência, em
um novo corpo na Terra, esquecemos o passado para ter liberdade de ação, mas
impressões fortes nos acompanham e podem intervir em nosso comportamento
de agora.
— E os pesadelos? De onde vêm?
— Várias causas. Lembranças desagradáveis do passado,
desequilíbrio emocional, preocupação, medo, influências dos pensamentos dos
outros, etc... Como eram os seus pesadelos?
— Horríveis. Meu corpo coberto de chagas. Mau cheiro, as pessoas afastavam-se
de mim correndo. As vezes, eu estava prensada entre quatro paredes, sem poder
encontrar saída. Acordava apavorada, sufocada. Ainda agora, ao recordar, sinto
meu corpo todo queimar como se minha pele estivesse em carne viva.
— Mas não está. Nada disso está acontecendo agora. São impressões de uma
vida que já acabou. Aquele corpo doente já não existe mais. Agora, você tem
outro corpo, bonito, sadio, forte; não precisa envergonhar-se dele, ao contrário,
deve orgulhar-se em possui-lo, cuidar bem dele.
— O que me diz é extraordinário. Quando disse isso, tudo desapareceu.
Estou admirada. Por que ninguém nunca me contou?
— As pessoas não sabem muito sobre essa coisa. Minha mãe tem me ensinado.
Há livros sobre isso também. Se quiser, poderemos estudar o assunto.
— Quero. Tenho vivido assustada, sentindo emoções desencontradas, sofrendo, e
você tem me ajudado. Deus a abençoe por isso. Gostaria muito de ter uma irmã.
Luciana comoveu-se. Abraçou-a com ternura.
- Você é minha irmã. Eu a quero muito.
— Eu também.
Permaneceram abraçadas, sentindo alegria e paz no coração.
No dia Seguinte, Maria Lúcia foi á casa de Luciana, onde a modista lá a esperava
com o necessário para que ela escolhesse o vestido.
Vendo-a entretida rosto corado, Olhos brilhantes, Egle não se Conteve
e comentou:
— Luciana, como ela mudou! Nunca a vi tão bonita!
Luciana sorriu satisfeita. Procurou interferir o menos possível na
escolha, deixando-a decidir por si mesma.
- Confio em seu bom gosto — dissera.
Observou que ela soube decidir, depois, apenas pedindo opinião a Luciana que
aprovou com entusiasmo. Maria Lúcia estava indo muito bem. Quando a modista
se foi, Maria Lúcia considerou:
— Mamãe quer escolher a roupa para mim. O que farei?
- Diga-lhe que já escolheu uma do seu gosto.
— Ela não confia em mim, teme que eu não me apresente bem.
Luciana sorriu:
— Ela não sabe do que você é capaz. O que faremos então?
— Vou deixá-la escolher uma. Mas, vou pedir-lhe para deixar que eu venha
aprontar-me aqui. Irei ao baile com você e D. Egle.
— Vovó não irá. Você poderá ir com seus pais. Fica melhor.
— Nesse caso, você irá conosco, caso contrário, não irei. Não terei coragem.
Diga que fará isso por mim. Falarei com papai.
— Sua mãe pode não gostar.
— Gostará sim. Só que eu não vou dançar.
— Por quê?
— Eu já disse, danço mal.
— Vamos ver isso.
Luciana escolheu um disco e colocou-o no gramofone. Era uma valsa.
— Venha — disse — vamos ver que tal está.
Maria Lúcia olhou-a assustada.
— Vamos, a música não á muito longa.
Ela aproximou-se e Luciana enlaçou-lhe a cintura começando a dançar.
Quando a música acabou, Luciana comentou:
— Vamos novamente. Você está muito presa. Precisa soltar mais o corpo. Vamos
ver.
Rosto corado, Maria Lúcia recomeçou.
A tarde ia morrendo e o sol já se escondera quando Maria Lúcia voltou para
casa. Ao jantar, Maria Helena olhou-a admirada:
— Você demorou em casa de Luciana. O que foi fazer lá?
Amoça corou.
— Ela estava me ensinando um jogo e eu fiquei até aprender.
— Seja como for, você parece muito bem. Pelo jeito, gosta de estar lá. — disse
José Luiz com naturalidade.
Após o jantar, Maria Helena pediu:
— Antes que se recolha, sente-se aqui, precisamos conversar.
Maria Lúcia obedeceu.
— É sobre o baile de seu irmão. Amanhã a modista virá para provar seu vestido.
Já o escolhi. Ficará lindo!
Maria Helena admirou-se porque a filha disse simplesmente:
— Sim, senhora.
Ela não aceitava as coisas com facilidade.
— Fico contente com sua atitude. É melhor assim. Agora, pode recolher-se.
Vendo que Maria Lúcia não se mexia, indagou:
— O que é mais?
— Desejo pedir-lhe um favor. — Maria Helena esperou e, após ligeira hesitação,
ela continuou: — João Henrique convidou Luciana. D. Egle não irá.
Eu gostaria muito de convidá-la para ir conosco.
Foi José Luiz quem respondeu:
— Certamente, filha. Sua mãe e eu ficaremos encantados. Ela irá conosco.
— Amanhã, quando ela vier, eu mesma farei o convite. —esclareceu Maria
Helena.
— Obrigada — respondeu Maria Lúcia, satisfeita.
Quando ela se retirou, Maria Helena comentou:
— Maria Lúcia realmente está mudada. Pelo menos conversa.
— É verdade. Em boa hora essa professora apareceu.
— Maria Lúcia está muito dependente dela. Aposto que foi ela quem pediu a
Luciana para vir conosco.
— Pode ser. Sente-se segura a seu lado. Está começando a perceber a vida. Um
dia aprenderá a voar.
José Luiz falara como para si mesmo, olhos perdidos em um ponto vago.
— Espero que ela não quebre a asa.
Ele fixou-a procurando perceber o que se passava em seu íntimo.
— Por que diz isso? Nossa filha é jovem, tem todo o direito de ser feliz.
Maria Helena deu de ombros.
— A felicidade é uma ilusão de poucos. Tenho pena dos jovens que sempre são
os mais iludidos.
— Você está muito amarga.
Ela sorriu procurando desviar o assunto.
— Falava por falar. São conceitos sociais que repetimos sem pensar.
José Luiz levantou-se e aproximou-se dela tocando-lhe levemente o queixo,
fazendo-a levantar o rosto para ele.
— Talvez, alguém sem pensar tenha destruído suas ilusões. Você era tão cheia de
vida!
Maria Helena cerrou os lábios com força. Levantou-se rapidamente.
— Eu era uma ingênua como todas as adolescentes. Felizmente, cresci.
José Luiz olhou-a pensativo, depois considerou:
— As vezes, sinto saudades da juventude!
— Pois eu não. Prefiro conservar os pés no chão, saber com o que se pode
contar.
— As aparências enganam. Em alguns casos, pode-se obter muito mais do que se
espera. Depende da forma como nos posicionamos.
— O que quer dizer? — admirou-se ela.
— Que formulamos conceitos com facilidade e nos fechamos neles certos de
que são verdadeiros. AI, um dia, de repente, percebemos que eles nos limitaram
e que além deles há outras coisas, outros valores não considerados que poderiam
modificar tudo, criando novas e melhores opções.
— Não compreendo onde pretende chegar.
— São constatações que tenho feito, nesta fase da nossa vida.
Maria Helena estava tensa e um pouco pálida. Sempre quando conversavam,
eles tacitamente não se referiam ao próprio relacionamento. Ela temia tocar
nesse assunto e não poder mais controlar seus próprios sentimentos represados.
Baixou a cabeça e conservou-se silenciosa.
José Luiz notara seu nervosismo. Luciana teria razão? De repente, sentiu-se mais
culpado. Se ela realmente o amasse ainda, depois de tudo e de tantos anos, o que
pensaria do seu procedimento?
Uma onda depressiva o acometeu e ele disse simplesmente:
— São pensamentos vagos, sem nenhum sentido. Vou recolher-me. Boa noite. —
Boa noite — respondeu ela com voz baixa.
Vendo-o retirar-se, sentiu-se curiosa. José Luiz estava mudado. Mais humano.
Aquela noite chegara a pensar que ele estivesse procurando uma aproximação.
Seu coração bateu descompassado. Estaria arrependido de suas atitudes
passadas? Talvez se sentisse só e desejasse achegar-se.
Cerrou os lábios com orgulho. Não queria ser para ele apenas uma companhia
para ajudá-lo a suportar a própria solidão. Amava-o
profundamente, ardentemente, e não aceitaria as migalhas que ele se dispusesse
a oferecer-lhe. A lembrança dos primeiros tempos do casamento, dos momentos
de intimidade, fizeram-na vibrar de emoção.
— Preciso controlar-me — pensou assustada.
Devia preservar sua dignidade a todo custo. Recolheu-se, mas não conseguiu
dormir. Por que José Luiz não a queria? Por quê? As lágrimas brotaram e ela
deixou-as rolar livremente. Só muito tarde conseguiu adormecer.
José Luiz procurou Luciana para conversar. Sentia-se triste e desalentado. Antes,
pensava ter na morte de Suzane o seu maior problema, agora, observando
melhor os fatos, compreendia ter Outros mais, além daquele. O sofrimento de
Maria Helena, a distância afetiva dos filhos, somavam-se à sua frustração
amorosa. Julgara-se um vencedor e percebia ser apenas um vencido. Destruíra
suas Possibilidades de uma vida feliz e infelicitara a própria família.
Luciana recebeu-o com carinho de sempre, notou logo seu estado de espírito. A
um ligeiro sinal, Egle afastou-se discretamente e ela, tendo-o acomodado em
Confortável poltrona, sentou-se em um banquinho a seus pés, segurando suas
mãos com afeto.
José Luiz, observando-lhe a solicitude, disse triste:
— Ainda bem que tenho você. Apesar do mal que lhe fiz, é boa o bastante para
me amar e ajudar minha família.
— Papai, não se deixe envolver por pensamentos tão depressivos.
— É verdade, filha. Tenho feito tudo errado. Sou incapaz de fazer a felicidade dos
meus. Sinto-me desanimado. Gostaria que tudo houvesse sido diferente.
Luciana Olhou-o séria dizendo com voz firme:
— Mas não foi. Tudo é como é. Nada que faça agora poderá mudar o
que passou. Por que perde tempo com coisas inúteis?
Ele protestou:
— Acha inútil reconhecer minha culpa? Saber que errei e que sou responsável
pela infelicidade de várias pessoas?
— Pai, quando começará a enxergar? Quando verá os fatos como realmente são,
sem fantasias ou deturpações?
Ele apertou as mãos dela fortemente.
— Agora estou vendo a realidade. O fato de pensar que Maria Helena possa me
amar, torna-me ainda mais culpado.
- Porquê?
Porque eu a iludi. Fingi que a amava quando era mentira. Porque ela é mulher
digna, honesta e apesar de perceber a verdade, não me acusa. Suporta minha
presença, atende minhas vontades. Cuida do meu bem-estar. Sinto remorsos,
Luciana, pelo que fiz a ela.
— Pai, você sentiu que se enganou. Arrependeu-se. Isso é bom. Mas não exagere
sua culpa. D. Maria Helena escolheu seu caminho livremente. Podia ter-se
separado, reconstruído a vida de outra forma. A sociedade pune, mas logo
esquece. No entanto, ela preferiu viver a seu lado. Ama-o e respeita-o. Engana-
se ao julgar-se responsável pela felicidade dos outros. Essa conquista é interior e
independe das outras pessoas ainda que estejam ligadas conosco.
— Se ela me amava, deve ter se sentido infeliz ao perceber por que eu me
casara com ela.
— A desilusão dói, mas é a visita da verdade. As pessoas constroem suas
fantasias, mas a vida as destrói fatalmente. Assim, vamos
amadurecendo, aprendendo os valores verdadeiros. Compreendendo que o amor
não condiciona nada, simplesmente é - e inunda nossa vida de felicidade. D.
Maria Helena preferiu viver a seu lado, mesmo não sendo amada como sonhara,
do que afastar-se, deixar de vê-lo, de estar junto, de cuidar do seu bem-estar.
Ela escolheu essa forma de felicidade e tem desfrutado dela. Talvez
houvesse sonhado com outra, mas soube aceitar o que a vida lhe deu. Sentiu, sem sombra de dúvida, que você não tinha condições de oferecer-lhe mais e
optou pelo possível.
— Acha que foi isso? Tão simples assim?
— Claro, papai. As pessoas sentem o que lhes convém mais e escolhem seu
caminho.
José Luiz passou a mão pelos cabelos e permaneceu calado durante alguns
instantes.
— Da forma que você fala, não me Sinto tão culpado.
— Seria bom que esquecesse a culpa. Nosso julgamento é muito
relativo. Ninguém é vítima nem algoz. Cada pessoa, no jogo da vida, opta,
decide, participa. Agora, por exemplo, você escolheu a posição de réu. Quer
punir-se para satisfazer seu orgulho ferido pela noção de ter errado.
— Está sendo severa comigo.
— Estou apenas percebendo fatos. Quando quiser, poderá escolher outro
caminho, o do bom senso e da sua própria felicidade.
— Não depende de mim.
— Só depende. Se prefere ficar deprimido, recriminando-se por coisas que não
pode remediar ou mudar, se sentirá infeliz pelo resto da vida. Será uma pessoa
desagradável, triste, incapaz, que a família terá dificuldade em suportar. Se ao
contrário, optar pelo esquecimento do passado e desejar a felicidade a cada
instante, percebendo as coisas boas que o cercam, valorizando as pessoas, dando-
lhes amor, observando-lhes as qualidades e respeitando-lhes os limites.
Colocando entusiasmo nas coisas boas do dia-a-dia, agradecendo a Deus a dádiva
da vida, da felicidade, do amor, da saúde e da prosperidade, sentirá por fim
felicidade e a espalhará ao seu redor.
— É o que você faz, filha. Você leva a felicidade onde entra. Esse é o
seu segredo.
— Sim, papai. Sinto no coração a alegria de viver. Cultivo o bem a cada instante e
não permito que os pensamentos negativos me escravizem. Mamãe sempre me
diz para agir assim, Sinto grande bem-estar.
José Luiz acariciou a cabeça da filha delicadamente. Ela falava de Suzane como se ela não estivesse morrido. Essa fantasia de Luciana
o preocupava um pouco. Mas, tinha que admitir que ela era muito sensata
e equilibrada e que demonstrava sabedoria muito além de sua idade.
— Acha que, se eu escolher a felicidade, ela virá para mim?
— Claro. Se acreditar nela, se procurá-la adequadamente, verá.
— E como sepultar meus fantasmas?
— Lutando. Procurando esquecer. Dizendo consigo mesmo que quer esquecê-los.
Que prefere o presente onde pode fazer em cada instante alguma coisa boa.
— Tentarei. Amanhã será o baile de João Henrique. Maria Helena convidou-a a
ir conosco.
Luciana sorriu.
— Irei. Prepare-se para uma grande surpresa.
— O que está tramando?
— Já disse que é surpresa. Estou tão entusiasmada! Mal posso esperar.
— Não sabia que gostava de baile.
— Há muita coisa sobre mim que ainda não sabe.
— Viremos buscá-la.
— Obrigada, mas eu irei à sua casa mais cedo. Maria Lúcia pediu.
— Como queira.
José Luiz sentia-se tranqüilo e alegre. A crise havia passado.
Eram dezessete horas do dia seguinte quando Luciana desceu do carro, tocando a
sineta da casa de Maria Helena. À criada que atendeu, pediu que a auxiliasse a
carregar as caixas e pacotes que trouxera, levando-os ao quarto de Maria Lúcia.
Enquanto subiam a escadaria para o andar superior, Luciana perguntou:
— D. Maria Helena está?
— No momento, descansa em seu quarto.
Maria Lúcia apareceu apressada, fisionomia alegre, auxiliando-as a colocar tudo
sobre a cama. Quando a criada saiu, fechou a porta excitada.
— E então? — indagou.
— Não esqueci nada.
— Estou tão nervosa!
— É natural. Quando se vai a um baile, tudo pode acontecer, até encontrar o
homem de sua vida.
Maria Lúcia suspirou ruborizada.
— Um baile é como um conto de fadas. Belos vestidos, flores, música, rapazes
atraentes, momentos de poesia, encantamento.
Os olhos de Maria Lúcia brilhavam fascinados. Havia comparecido a muitas
festas, a um ou outro baile, sempre com sacrifício, terror, obrigação.
Sentindo-se horrível, rejeitada, insignificante, desprezada. Agora, tudo parecia-
lhe diferente. Sentia-se bonita, não se cansava de passar os dedos sobre sua pele
sentindo a maciez, de contemplar seu talhe elegante, prejudicado sempre pela
postura inadequada.
Luciana a ensinara andar, manter a postura, dançar, e ela agora percebendo que
era capaz de fazer tudo isso bem, não se cansava de treinar diante do espelho.
Sentia-se tão alegre que dançar era como se pudesse voar, sentindo o gosto de
viver e a alegria da liberdade.
Luciana compreendia e sabia colocar encantamento nas coisas de tal sorte que
ela esperava esse baile como se fosse o primeiro.
— Sinto haver dado trabalho a D. Maria Helena ocultando a verdade.
— Veja o vestido que ela escolheu.
Estava pendurado no armário. Era um vestido fino, sóbrio, discreto, sem muitos
enfeites. Próprio para não chamar muito a atenção.
— Ela não sabe que você mudou. Verá quando estivermos prontas.
Conversaram alegremente até a hora do jantar.
Era a primeira vez que Luciana jantava com a família e não pôde deixar de
sentir-se emocionada. Discreta, educada, tratada com delicadeza por
todos, enquanto comia, ela não podia deixar de observar a classe de Maria
Helena, a finura e elegância do pai, a postura costumeira de Maria Lúcia, metida
em seu vestido sem graça e conservando a aparência de sempre.
Em seus olhos, porém, havia um brilho novo e arguto, uma vivacidade que ela,
mantendo os olhos baixos, escondia e ninguém notou. Havia a beleza viril de João
Henrique, deixando transparecer no rosto o entusiasmo e a alegria.
Naquela noite, esqueceu-se da discrição que sempre adotara diante do pai, estava
loquaz e bem-disposto. Falou de seus projetos para o futuro, de seu desejo de
casar-se e constituir família.
José Luiz sentia-se esperançoso. O ambiente de sua casa estava acolhedor e
podia perceber o contentamento em cada semblante. Depois,
Luciana estava ali. Não se cansava de observar-lhe a finura, a elegância e
a delicadeza.
Maria Helena estava radiante. Seu querido filho estava feliz e ela orgulhava-se
dele, de sua formatura com louvor e admiração dos mestres. Quando o jantar
terminou e as duas moças pediram licença para se preparar, Luciana
aproximou-se de Maria Helena e disse com sinceridade:
— Obrigada pelo jantar, D. Maria Helena, e pela honra de ir ao baile com os
senhores. Estou muito feliz.
Maria Helena sorriu. Apreciava a delicadeza de Luciana.
— É um prazer, Luciana, tê-la conosco. Gostaria de pedir-lhe um pequeno favor.
— Certamente, D. Maria Helena.
Havia certa hesitação em sua voz quando ela pediu:
— Você sabe, Maria Lúcia não tem muito gosto, eu apreciaria muito se pudesse
influenciá-la quanto à sua aparência. Nesta noite, tudo deverá ser alegria.
— Farei o possível. Pode deixar — respondeu Luciana com um sorriso.
José Luiz, Maria Helena e João Henrique estavam prontos esperando no hall
Percebendo a impaciência de Maria Helena, José Luiz sugeriu:
— Nós podemos ir. Os carros estão prontos. João Henrique acompanhará as moças.
— Com prazer — concordou ele de boa vontade.
— Está bem. Está na hora e não gosto de esperar. Gostaria de verse Maria Lúcia
está decentemente vestida.
— Pediu à Luciana, pode ficar tranqüila —lembrou José Luiz. Ele sabia que
podia confiar nela.
— Vamos, — resolveu Maria Helena.
Os dois saíram deixando João Henrique no hal . Ele sentia-se eufórico.
Convencera Antonieta a comparecer ao baile após o teatro. Era a
última apresentação da peça. A companhia partiria para a Europa dentro de
alguns dias. Ela concordara em ficar e casar-se com ele. Estava exultante.
Finalmente vencera. Há três dias fazia projetos para o futuro. Comprara
um belíssimo anel de brilhantes. De vez em quando, colocava a mão no bolso
e apalpava a caixinha de veludo, antegozando a alegria de entregá-lo a sua eleita,
oficializando o compromisso.
Finalmente, um farfalhar de saias e ele não acreditou no que estava vendo.
Luciana, linda, mas seu espanto era para Maria Lúcia. Abriu a boca, mas não
articulou nenhum som. Parecia-lhe outra mulher. O que havia acontecido? Um
milagre?
Ela parecia-lhe mais alta, mais esbelta, elegante em um maravilhoso vestido rosa
seco, lindos cabelos penteados com extremo bom gosto, tendo harmonioso
enfeite de flores, a pele aveludada, olhos brilhantes, o brinco delicado, tudo
estava perfeito.
Ele não escondia sua admiração. Sua irmã transformara-se em uma linda e
elegante mulher.
Luciana sorriu feliz.
— E então? — perguntou — gostou?
— Eu não acredito! Maria Lúcia, você está linda! Que transformação!
Ela sorria alegre, emocionada, sem saber o que dizer. Ele prosseguiu:
— Tem um sorriso encantador! Como não percebi isso antes?
— Ela se escondia. — tornou Luciana. — Agora, tudo será diferente.
— Eu imagino. Esta é nossa grande noite. Grandes coisas acontecerão — disse
ele, entusiasmado. — Faço questão de entrar no salão de braço com essas duas
beldades. Só quero ver a cara dos meus amigos! Vão chegar como abelhas no
mel. Maria Lúcia, prepare-se. Todos quererão dançar com você!
Seu rosto coloriu-se de rubor e suas mãos tremiam um pouco, mas ela disse com
voz firme:
— Quero dançar a noite inteira. Aprendi. Luciana ensinou-me.
João Henrique tomou a mão de Luciana e beijou-a com deferência.
— Obrigado. Sei que foi você quem trabalhou para isso. Não imagina o bem que
nos fez. Serei grato pelo resto da vida. Tem em mim um amigo sincero, um
verdadeiro irmão.
Ela sorriu e havia uma lágrima em seus olhos quando disse:
— Vocês são meus irmãos e os quero muito.
— Agora vamos — propôs ele, alegre. — Quero ver a cara de mamãe quando
ver a beldade de filha que tem.
Ofereceu os braços com galanteria, e juntos foram para o carro.
O Palácio das Rosas, como era chamado pela grande quantidade dessas flores
que havia em seus magníficos jardins, estava fartamente iluminado.
Suas enormes janelas, de lindas e luxuosas cortinas de renda, guarnecidas
de veludo dourado, abertas, deixavam aparecer a enorme varanda que
conduzia ao hall da chapelaria e à entrada do enorme salão.
Os carros entravam pelos grandes portões de ferro artisticamente trabalhados e
seguiam por graciosa alameda, em semicírculo, e paravam frente a escadaria de
mármore branco, coberta por larga passadeira vermelha que se estendia desde o
local onde parava o carro até a porta de entrada da varanda, indo juntar-se ao
grosso tapete vermelho que cobria toda a sala da chapelaria e as toaletes.
Por toda parte, luxo, bom gosto, arte e alegria. Muitas flores, requinte e elegância
desde o traje discreto e polido dos criados à distinção e gentileza com que
recebiam os convidados. O carro parava, as damas desciam apoiadas pelos cavalheiros, e os grupos entravam alegres entre o farfalhar discreto dos vestidos,
o perfume delicioso das mulheres e a postura dos homens galantes e bem-
educados.
O salão, caprichosamente adornado, era cercado por frisas onde as mesas
estavam parcialmente ocupadas. A orquestra já tocava, quando João
Henrique, conduzindo as duas moças pelo braço, entrou. Pararam
alguns instantes, vendo a frisa onde seus pais já estavam acomodados, dirigiram-
se para lá.
Maria Lúcia vendo tanta gente sentia-se um pouco temerosa. Luciana segurou-a
pelo braço dizendo baixinho:
— Você sabe que está linda! Esta é a sua noite! Tudo émagia e beleza.
Seu sonho se realiza! Você venceu!
Amoça que, copiando atitudes as quais se habituara anteriormente, tentara
esconder-se atrás de Luciana, levantou a cabeça e olhou frente a frente para as
pessoas que passavam. Percebeu a admiração nos olhares masculinos e sorriu
contente. Luciana tinha razão. O passado estava morto.
Aquele seria seu primeiro baile.
Quando entraram na frisa, Maria Helena levantou-se admirada. Aquela moça
bonita, cabeça erguida, elegante, segura de si, não poderia ser Maria Lúcia!
Estava linda!Ficou sem palavras para expressar seu estupor. Foi José Luiz quem
tomou a mão da filha com galanteria e disse emocionado:
— Como você está linda! Que bom gosto!
Olhou para Luciana como a dizer que ela transformara Maria Lúcia.
Luciana sorriu dizendo:
— O bom gosto é dela. Escolheu tudo. Desculpe. D. Maria Helena, não termos
contado a verdade. A senhora teve trabalho, escolheu outro vestido, mas
queríamos fazer surpresa. Espero que compreenda.
Maria Helena refez-se um pouco. Estava sem assunto. Finalmente disse: — Esta
noite é maravilhosa. Tenho a alegria de ver minha filha interessar-se pela vida.
— Quero desde Já que reserve uma valsa para mim — pediu José Luiz com galanteria.
— Não quero correr o risco de não poder dançar com você.
— Uma para mim também — acrescentou João Henrique. —Já vi uma porção
de amigos cumprimentando-me com muito empenho, e posso até perceber por
quê.
Maria Lúcia sorria, e Maria Helena reconheceu que ela possuía um sorriso
encantador. Como não percebera antes? É que ela nunca sorria.
Sentaram-se ao redor da mesa e logo Ulisses e Jarbas apareceram
para cumprimentá-los. Seus olhares iam Surpreendidos de Maria Lúcia a
Luciana, galantes e prestativos. João Henrique sorriu divertido. Orgulhava-se
da elegância dos pais, sua classe, sua finura, da beleza da irmã e dos encantos de
Luciana.
Era muito bom estar ali na noite de sua festa, em meio a seus amigos, com a
família e, logo mais, quando Antonieta chegasse, sua felicidade estaria completa.
A orquestra tocava uma valsa de Strauss, e Jarbas pediu:
— Gostaria de dançar com sua filha, senhor José Luiz. Posso?
José Luiz Concordou com a cabeça, e Ulisses pediu para dançar com Luciana.
Obtendo a permissão, os quatro dirigiram-se para o salão e logo estavam
valsando por entre os pares com graça e alegria.
— Estou vendo, mas ainda não estou acreditando! —comentou Maria Helena. —
É bom demais para ser verdade!
— É verdade, mamãe; Maria Lúcia despertou. Está Começando a sentir o gosto
de viver. Daqui para frente, tudo mudará para ela. Graças a Luciana. Abençoada
hora em que ela apareceu.
— É verdade. Nunca pensei que ela conseguisse.
— Trata-se de moça bondosa e inteligente — ajuntou José Luiz, Comovido.
— É verdade, papai. Seu método foi muito eficiente. Tenho Conversado com ela
a respeito. Hoje, os Conceitos estão mudando. A educação deve ser encarada de
forma diferente. A psicologia moderna está descobrindo a causa de muitos
problemas humanos.
— Você é um engenheiro, não pensei que se interessasse pelas ciências humanas
— considerou José Luiz, disposto a aproveitar a oportunidade para aproximar-se
do filho.
— O engenheiro aprende como construir uma casa, uma ponte. Usa cálculos
matemáticos, mas sabe que precisa obedecer às leis da natureza para obter êxito.
O comportamento humano, o porquê fazemos isto ou aquilo, certamente também
obedecerá a certos fatores, certas leis naturais que ainda não conhecemos
suficientemente, mas que a psicologia estuda. Ela vai ajudar o homem a
aprender a viver melhor e encontrar soluções adequadas aos seus problemas.
— Alguém já me disse que tudo é natureza, tudo é divino, tudo é Deus! João
Henrique surpreendeu-se. Não julgava o pai capaz de filosofar e muito menos de
pensar em Deus. Para ele, o pai interessava-se apenas pela vida social, pelo
dinheiro, pelo poder. Naquela noite, tudo parecia-lhe mágico. Todos estavam
diferentes.
— A natureza é interessante. Tem leis próprias. Não pensei que se interessasse
por ela.
— Engana-se. Gosto de observar como tudo se transforma. As estações, os seres,
as coisas, as pessoas. Tenho me perguntado o porquê de muitosproblemas que
preocupam a humanidade. A dor, o sofrimento, a morte, o nascimento, enfim, a
vida.
José Luiz falava como para si mesmo, olhos perdidos em um ponto indefinível.
— Encontrou alguma resposta? — João Henrique interessou-se.
— Ainda não. Tenho várias hipóteses trabalhando em minha cabeça, mas ainda
não concluí nada.
— Eu também tenho pensado nesses assuntos, principalmente quando observo a
desigualdade social. Parece que Deus não ofereceu a mesma charice para todas
as pessoas.
José Luiz fitou-o um pouco assustado.
— Não devemos questionar Deus. Ele sabe mais do que nós.
— Concordo, ele sabe mais. Por isso mesmo, certos fatos devem ter
uma explicação mais justa. Quanto a questionar, não penso assim. Temos
inteligência, devemos usá-la. É questionando que chegaremos ao esclarecimento desejado. Questionar não é ir contra. É apenas olhar a questão por vários ângulos.
- Tem razão. As questões sempre têm vários aspectos.
— João Henrique, as moças olham para cá, e você discutindo filosofia em pleno
baile! — atalhou Maria Helena.
— É verdade — aduziu José Luiz. — É melhor fazer as honras, afinal a festa é
sua!
João Henrique sorriu. Não estava interessado em nenhuma moça. Antonieta
preenchia todas as suas aspirações. Logo mais, ela estaria em seus braços e
ficariam juntos para sempre!
- Gosto de pensar sobre esses assuntos — disse. Essas mocinhas dengosas e
delicadas não me interessam.
Maria Helena olhou-o preocupada Notava nele alguma coisa nova, uma alegria,
uma loquacidade que não lhe era habitual, principalmente suas saídas noturnas,
caprichando na roupa, no asseio, até o discreto perfume. Pressentia a presença
de uma mulher no coração do filho.
Sentia ciúme, mas ao mesmo tempo, compreendia que um dia ele se casaria e
ela teria que aceitar. Ele, por certo, escolheria alguém à altura. Maria Lúcia
Sentia o braço de Jarbas em volta da sua cintura e o rosto alegre do moço, à sua
frente, olhando-a como se a estivesse vendo pela primeira vez.
— Você está linda! — disse — não sabia que dançava tão bem. Onde aprendeu a
valsar?
— Eu sempre soube.
— Mas você, nos bailes, nunca dançava...
— Eu não queria. Agora resolvi dançar.
Jarbas apertou levemente a mão que com delicadeza Sustinha na sua.
— Que outros encantos você escondeu esse tempo todo?
Ela sorriu.
— Descubra você mesmo — tornou, misteriosa.
— Adoro seu sorriso! — considerou ele, galante.
Maria Lúcia sentia-se excitada percebendo que podia agradar, que a admiravam
e que os rapazes gostavam de olhá-la. Seu pensamento voou para Ulisses. Ele
também a apreciaria?
Mostrava-se interessado em Luciana, mas ela garantira-lhe que não o
queria para um namoro. Talvez pudesse despertar-lhe o interesse,
quando percebesse que Luciana não lhe correspondia. Dançaria com ela?
Estremecia só em pensar nisso.
O baile prosseguia animado. As homenagens aos formandos, a valsa especial que
João Henrique dançou com a mãe. As duas moças muito solicitadas não
paravam de dançar e quando Ulisses convidou Maria Lúcia, ela sentiu as
pernas tremerem e o coração disparar. Finalmente ele a enlaçou e começou para
ela um novo encantamento. Ulisses olhava-a com admiração:
— Ainda não acredito que seja você. Qual foi o milagre que a transformou?
— Sinto vontade de viver — respondeu ela com alegria. —Agora, quero da vida
tudo o que tenho direito!
— É impressionante. Você é linda! Como conseguiu esconder-se tanto tempo?
— Eu sempre estive presente. Você é que não notou.
— Devia estar cego!
Ela sorriu feliz. Sentia brotar dentro de si uma imensa força e muita alegria de
viver!
Passava da meia-noite quando ouviu-se um zunzum pelo salão. Parada na porta,
acompanhada pela sua dama, estava Antonieta. Vestia um maravilhoso vestido
dourado, ajustado ao corpo, abrindo-se um pouco embaixo, deixando aparecer a
ponta de seus sapatos. Mangas curtas, decote discreto na frente, abria-se nas
costas descendo quase a sua cintura deixando à mostra sua pele maravilhosa e
delicada. Dois panos presos nos ombros desciam soltos pelas costas até os pés.
Nos cabelos curtos, delicado arranjo de pedraria, com pequenas plumas presas
na testa.
João Henrique sentiu seu coração disparar. Imediatamente dirigiu-se a ela,
beijando-lhe a mão com galanteria.
Todos os olhares dirigiram-se para eles. Com elegância, João Henrique conduziu as para a frisa.
José Luiz levantara-se surpreendido. A famosa atriz de teatro, em um baile de
formatura! Era inusitado.
Maria Helena estava perplexa. João Henrique conhecia a tal mulher e
a recepcionava em pleno baile! Ela estava escandalosamente vestida e
ainda mais, tinha os cabelos curtos.
Depois que a guerra se acabara, o modernismo da Europa ameaçava destruir as
melhores tradições da família. Tinha ouvido falar a respeito e não aceitava de
forma alguma esses modismos.
João Henrique aproximou-se e conduzindo Antonieta pelo braço, entraram na
frisa.
José Luiz, apesar da idéia extravagante do filho, conservava a fisionomia
distendida e amável. Maria Helena a custo dominava a irritação. Não gostava de
chamar a atenção pública e sentia o olhar das pessoas voltado para eles.
— Mamãe, quero apresentar-lhe a grande atriz, Maria
Antonieta Rangel.Naturalmente, já a conhece.
Antonieta fitou-a com olhos penetrantes e entreabriu os lábios em ligeiro sorriso.
— Por certo — balbuciou Maria Helena tentando readquirir o sangue frio.
— Como vai, minha senhora?
— Senhorita, mamãe — apressou-se a corrigir João Henrique.
— Senhorita? Bem. Como vai?
— Muito bem — respondeu a atriz curvando ligeiramente a cabeça.
— Este é meu pai.
José Luiz curvou-se com galanteria, tomando a mão delicada que Antonieta lhe
oferecia, beijando-a levemente.
— Encantado, senhorita. Tem em mim um admirador.
— Esta é minha amiga Norma Engel.
Após os cumprimentos, José Luiz, vendo que ela não pretendia retirarse, convidou-as a que se sentassem.
— Está gostando do baile? — indagou ele, cortesmente.
Antonieta passeou o olhar expressivo pelo salão depois disse:
— Está muito belo. O Rio de Janeiro tem lindas mulheres.
A senhorita é do Rio? — continuou José Luiz.
— Não. Nasci na Europa!
— Não parece. Fala sem nenhum sotaque.
— Sou portuguesa. Meus pais vieram para o Brasil quando eu era bebê. Só voltei
a Europa na adolescência para estudar. Era realmente uma mulher encantadora
— pensou José Luiz. Maria Helena readquirira a presença de espírito. Afinal,
naquela noite, o filho tinha direito a alguma extravagância. O melhor que tinha a
fazer era ser gentil com a moça.
Tentou interessar-se pela conversa.
— Minha mãe é excelente pianista — comentou João Henrique com orgulho.
— Não diga! Que tipo de música prefere tocar?
— Clássica. Para mim é a verdadeira música.
— Ah! — fez Antonieta.
João Henrique ia dizer alguma coisa mas calou-se. Maria Lúcia e
Luciana acabavam de chegar acompanhadas por dois elegantes rapazes.
Estavam coradas e alegres.
— Maria Lúcia, quero que conheça Antonieta. Esta é minha irmã.
A Moça olhou aquela bela mulher, tão diferente das que estava habituada a ver e
a admiração transpareceu em seu rosto ingênuo.
— Como vai? — indagou gentil.
— Bem, e a outra moça?
— É Luciana, amiga e professora de Maria Lúcia.
Luciana olhou-a nos olhos com curiosidade.
— Já vi o seu retrato e sei quem é. É uma honra conhecê-la.
Os rapazes haviam se afastado e as duas sentaram-se.
— Vocês dançaram sem parar. Devem estar cansadas —disse Maria Helena.
— Eu estou um pouco, mas Maria Lúcia parece que tem asas nos pés
— respondeu Luciana.
— Estou vendo e ainda não acredito.
Maria Lúcia olhou o rosto da mãe e não disse nada. Sentia vontade de irritá-la,
mas aquela era uma noite mágica, estava resolvida a ser feliz. José Luiz sentia-se
contente. Seu relacionamento com os filhos havia melhorado e imaginava que
com o tempo poderia melhorar ainda mais. Luciana era como uma luz, onde
tocava, iluminava. Havia tomado vinho e sentia-se alegre. — Vamos dançar —
convidou ele. Maria Helena estremeceu.
— Estou um pouco cansada — disse.
Ele não aceitou a desculpa. Tomou-a pela mão conduzindo-a para o salão. —
Precisamos comemorar esta noite. Afinal nosso filho está graduado.
O salão em penumbra, o perfume, o encanto da noite, o rosto distendido de José
Luiz, envolveu Maria Helena que emocionou-se quando ele a enlaçou.
A orquestra tocava um xote e o salão estava repleto de casais alegres. Jarbas com
Maria Lúcia, Ulisses com Luciana também dançavam. Só João
Henrique permanecia na frisa ao lado das duas mulheres.
Ulisses sentia-se empolgado.
- Luciana, — disse — não suporto mais suas evasivas. Desde que a vi não
Consigo pensar em outra coisa. Peço licença para visitá-la em sua casa. A Moça abanou a cabeça com graça.
— Não recebo visitas de rapazes em casa — disse... — Minha avó não permite.
— Afirmo-lhe que tenho as melhores intenções. Se me autorizar, irei conversar
com ela, pedir-lhe permissão
— Não acho necessário, senhor Ulisses.
— Por que me recusa? Não crê na minha sinceridade?
Luciana olhou-o séria.
- Não se trata disso.
— Então por quê? Não consegue sequer esquecer o tratamento cerimonioso!
— Desejo ser sincera. O senhor é amigo de Maria Lúcia, de sua família.
Tenho-lhe apreço. Sei que é um moço de bem. Seu interesse muito me honra.
— E então?
— Então, sou uma moça com idéias próprias. Só me comprometerei
com alguém por quem eu sinta amor.
— Quer dizer que não gosta de mim? — Havia uma ponta de agastamento em
sua voz.
— Nutro pelo senhor um sentimento de amizade. Não o bastante para
um namoro.
— Você é dura, não se importa em fazer-me sofrer.
— Não creio que seu desapontamento o impeça amanhã de esquecer-
me completamente. É preferível saber logo a verdade do que alimentar
ilusões inúteis.
— Você diz isso com muita certeza, O que a faz pensar assim? Não acha que
com o tempo poderia vir a me amar?
— Apesar de apreciá-lo, sei que nunca o amarei. Para mim é o bastante.
Ele apertou a mão dela com força.
— Já sei, com certeza ama outro homem. Claro, como não pensei nisso antes?
Quem é ele?
Ela abanou a cabeça negativamente. Ulisses estava sendo insistente
e desagradável. Fez o possível para contornar a situação. Não desejava criar
um caso com ele, principalmente por causa de Maria Lúcia. Não queria que ela
se decepcionasse. Um golpe agora poderia desencorajá-la a prosseguir em seu desenvolvimento.
— O senhor não tem o direito de fazer-me perguntas, —respondeu. — Não tenho
namorado, nem estou interessada em ninguém.
— Está tentando enganar-me. Saiba que nunca recebi uma recusa. Há muitas
moças ansiosas por um olhar, uma palavra minha. Se me recusa, é porque tem
outra pessoa.
Apesar de contrariada, Luciana procurou sorrir ao responder:
— Sei que é verdade, O senhor é um moço atraente e sabe disso. Só que as
pessoas não são iguais. Pode crer. Peço-lhe que esqueça este desagradável
assunto. Prefiro conservar uma boa amizade. Podemos ser bons amigos.
— Não vou insistir. Também não vou desistir. Saberei esperar. Hei de conquistá-
la.
Luciana suspirou aborrecida. Maria Lúcia estava iludida. Não conhecia Ulisses,
tão pretensioso e arrogante. Seria bom se ela se interessasse por outro. Ele jamais
a faria feliz.
Sentiu-se aliviada quando a música terminou e pretextando cansaço,quis voltar à
frisa.
A orquestra começou uma valsa de Strauss muito em voga, e José Luiz
quis continuar a dançar. Entregando-se ao encantamento daqueles
momentos, Maria Helena Sentiu o coração bater mais rápido. Tudo poderia ter
sido tão diferente! Olhou o rosto corado do marido, tendo o corpo dele tão
próximo ao seu, de repente aquele amor tanto tempo represado, oculto, abafado,
veio à tona aumentando sua emoção. Volteando em seus braços ao som da
música, todo passado desapareceu. Só havia o momento, o amor, a proximidade
dele.
Suspirou fundo e José Luiz olhou-a encantado. Parecia-lhe outra mulher,
linda, rosto corado, olhos brilhantes, lábios entreabertos, ardente, Suspirando
em seus braços. Foi acometido de emoção e um desejo forte. Apertou-a
de encontro ao peito, beijando-lhe a face e murmurando4he ao ouvido:
— Você está linda! Nesta hora eu gostaria de estar em casa para amá-la como
merece.
Maria Helena fechou os olhos para sentir melhor o encantamento. Estaria
Sonhando? Teve coragem para dizer:
— Sou feliz.
Ele continuava murmurando em seus ouvidos:
— Tenho sido cego. Sinto Vontade de beijá-la! Não consigo Suportar e esperar.
Maria Helena sentiu-se como nos tempos de namoro. Sorriu provocante:
— Você não se atreveria diante de todos.
— Você é minha mulher. Não tem nada de mais.
— Por isso mesmo.
Quando a música parou, voltaram à frisa corados e alegres. Luciana e
Maria Lúcia conversavam animadamente, e João Henrique só tinha olhos
para sua deusa. Conversavam educadamente e quando Antonieta quis retirar-
se, João Henrique dispôs-se a acompanhá-la. Luciana e Maria Lúcia voltariam
com os pais. Luciana percebeu o brilho do novo anel na linda mão da atriz
e compreendeu a intenção de João Henrique. Sentiu-se inquieta. Sabia que
a família não iria aceitar com facilidade um casamento entre os dois. Mas,
não era esse o ponto que a preocupava. Não tinha preconceitos. Pensava
mesmo que o amor era suficiente justificativa para uma união. No entanto, havia
algo em Antonieta que a inquietava. Não sabia ainda o que. Não gostava de
sentir essa sensação. Geralmente, ela precedia alguma coisa desagradável.
Por Outro lado, ficou alegre observando a aproximação do pai com a esposa.
Maria Lúcia, por sua vez, estava encantada com tudo.
— Vamos para casa — resolveu José Luiz — É tarde.
Chegando em casa, as duas moças se recolheram e, uma vez no quarto, deram
vazão à alegria.
— Você fez muito sucesso! De agora em diante, será sempre assim. Verá.
Receberá muitos convites. Foi muito cortejada esta noite — Considerou Luciana.
— Sim. Vários rapazes sussurraram coisas em meus ouvidos. Fiquei arrepiada.
Luciana riu gostosamente:
— Não se declararam?
— Certamente. Não os levei a sério. Até o Jarbas! Disse que ia sonhar comigo
esta noite e que amanhã passará em casa para ver-me.
— É um belo rapaz.
— Prefiro o Ulisses. Tão lindo! Acha que um dia ele me amará? Parecia tão
interessado em você!
— Você não o conhece bem.
— É amigo de meu irmão há muito tempo.
— O Jarbas também. Você nunca conviveu muito com eles. Procure aproximar-
se mais, conversar, Sentir como eles pensam. Desta forma poderá perceber qual
dos dois você gosta.
— Farei isso. Tem certeza de que não gosta mesmo dele?
— Tenho. Jamais o amarei. Quanto a isso, posso afirmar.
Depois que as moças subiram, Maria Helena passou o ferrolho na porta de
entrada. José Luiz esperava no hal . Não podia apagar da lembrança o
rosto ardente de Maria Helena, o calor que vinha dele. Vendo-a aproximar-
se, impaciente tomou-a nos braços, beijando seus lábios com ardor.
— Eu quero você — disse — esta noite é nossa.
Abraçados, foram para o quarto e atiraram-se nos braços um do outro, como se
fosse a primeira vez.

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