CAPÍTULO 6
Na semana seguinte, ao chegar para a aula, Luciana, con pontualidade que fazia
questão de manter, encontrou Maria Lúcia na postura de sempre. Contudo,
percebeu que ela vestira um vestido cor-de-rosa. Aproximou-se dela beijando-a
na face.
— Como vai? — indagou atenciosa.
— Bem — disse ela. — Você hoje demorou!
Luciana respondeu com naturalidade:
— Senti saudades de você. O tempo custou a passar. Hoje, vamos aproveitar bem
nossa aula.
— Aqui nesta sala, tem muitas coisas que foram feitas pelas mãos. Enquanto
esperava, fiquei contando.
— Assim não vale. Você vai ganhar. Eu ainda não observei nada!
Maria Lúcia sorriu e seus olhos brilharam. Num gesto carinhoso, Luciana passou
a mão pela face da moça.
— Você tem covinhas encantadoras quando sorri. Já percebeu isso?
Maria Lúcia corou. Luciana fingiu não ver. Continuou:
— Nós, mulheres, precisamos descobrir nossos encantos para realçá-los.. —
Você é muito bonita — disse Maria Lúcia.
Luciana passou o braço sobre os ombros dela.
— Faço o possível para parecer melhor. Não acredito em feiúra. A beleza está
em todas as pessoas. É preciso cultivá-la.
Maria Lúcia abanou a cabeça negativamente.
— Não concorda?
Ela baixou a cabeça sem responder. Luciana não insistiu.
— Vamos nos sentar aqui, neste sofá, para nossa aula.
Maria Lúcia obedeceu e como Luciana não dissesse nada, levantou os olhos curiosa. Luciana detinha nas mãos uma pasta de couro.
— Você trouxe o livro?
— Trouxe.
Com calma tirou-o da pasta colocando esta sobre uma mesa lateral.
— Hoje eu estou em desvantagem. Você pensou no assunto, eu não, O que mais
tem aqui feito pelas mãos?
Com certa ansiedade, Maria Lúcia começou a enumerá-las, e Luciana percebeu
que a menina havia conseguido mais do que esperava. Sentiu-se
feliz. — Você viu tudo. Não deixou muita coisa para mim. Ganhou longe.
— Tomou a mão de Maria Lúcia e continuou: — Sinta como nossas mãos
são preciosas. Eu, às vezes, quando as movimento, agradeço a Deus por possui-
las. Se eu quiser, poderei fazer muito mais coisas com elas. Não é uma beleza?
Maria Lúcia olhava suas mãos admirada.
— Há também os pés. — A outra olhou-a curiosa. — Acha que eles só servem
para andar?
— É — fez Maria Lúcia. — Nunca olhei para eles.
— Sente-se aqui, perto de mim, vamos ver no livro.
Abriu uma página onde havia uma sapatilha de balé.
— Você gosta de balé?
Ela deu de ombros.
— Não sei...
— Nunca foi ao teatro assistir a um balé?
— Nunca.
Luciana virou a página onde havia um quadro retratando uma bailarina.
— Essa foi uma das melhores bailarinas do mundo. Quando dançava, encantava
pela graça, leveza e arte. Vendo-a em cena, as pessoas choravam de emoção
tocadas pelo seu talento. Gostaria de conhecer sua história?
Os olhos de Maria Lúcia brilhavam quando respondeu:
— Sim.
Com voz suave e emocionada Luciana fez a narrativa que Maria Lúcia ouviu
encantada. Maria Helena estava curiosa. As duas moças estavam na sala de
música, mas não se ouvia o piano. O que estariam fazendo? Não lhe
passara despercebido que a filha mostrava interesse pelas aulas. Procurava
dissimular, mas, ainda assim, notava-se que se impacientava pela chegada de
Luciana.
Esperou e quando o horário da aula acabou, como as duas ainda permanecessem
na sala, ela entrou.
As moças estavam sentadas lado a lado no sofá, o livro aberto no colo de Luciana
que falava animada. Olhos brilhantes, Maria Lúcia ouvia-a com muito interesse.
Maria Helena admirou-se vendo a expressão comovida da filha e o brilho de seus
olhos. Luciana interrompeu-se, vendo-a entrar.
— Pensei que a aula já houvesse terminado — disse.
— Estou no fim, — esclareceu Luciana. — Permita-me terminar.
— Claro, eu me retiro.
— Pode ficar, D. Maria Helena. Ela fez da arte a expressão dos seus sentimentos.
Conseguiu tocar a alma das pessoas, fazendo-as perceber a beleza que
guardavam dentro de si. Quem a viu dançar um dia, nunca mais a esqueceu.
Veja, Maria Lúcia, como os pés podem expressar a beleza, a alegria, a arte.
Nesses dias vamos pensar como os nossos pés são importantes e merecem ser
valorizados. Sem eles não poderíamos ir a parte alguma.
Maria Lúcia baixara o rosto na postura costumeira, aparentando indiferença.
— Estão estudando arte? — disse Maria Helena.
— Estamos estudando a vida, a beleza e a manifestação da arte.
— Ótimo, — considerou Maria Helena, satisfeita.
— Um grande artista é sempre um instrumento do belo e da elevação
dos sentimentos. Toca a nossa alma e nos aproxima de Deus.
Maria Helena olhou-a com admiração. Luciana falava com
segurança, desembaraço e naturalidade. Sentiu vontade de conversar mais com
ela.
— Aceitaria ficar e tomar chá conosco?
Luciana balançou a cabeça num gesto gracioso.
— Teria muito gosto. Hoje, porém, não posso demorar-me. Um outro dia, talvez,
aceitarei com prazer.
Maria Lúcia, olhos baixos, não escondia a inquietação. Não parecia a moça de
momentos antes. Para Luciana, foi fácil perceber que a presença da mãe a
constrangia e irritava.
Com naturalidade e calma, guardou o livro e aproximando-se de Maria Helena
disse com simplicidade:
— Boa tarde, D. Maria Helena. Obrigada pelo convite. — E voltando-se para
Maria Lúcia:
— Até terça-feira. Aproveite bem seu tempo como da outra vez. Sua filha, D.
Maria Helena, teve ótimo aproveitamento da nossa aula anterior. Foi melhor do
que eu. É muito observadora e inteligente.
Amoça corou, porém nada disse. Sentiu uma sensação nova envolvê-la. Acabara
de ser elogiada.
Maria Helena não ocultou seu espanto. Estaria Luciana querendo agradá-la? O ar
sério da moça não lhe permitia essa suposição.
— Acompanho-a até a porta — disse com amabilidade. Uma vez longe de Maria
Lúcia, ela não se conteve:
— Você fez uma afirmativa surpreendente ainda há pouco. Parece-me
por demais otimista. Estou ciente dos problemas de Maria Lúcia. A inteligência
não é seu forte.
— Desculpe, mas não concordo. Maria Lúcia tem problemas, não nego, mas não
é pobre de inteligência. Em alguns momentos tem se mostrado muito perspicaz;
tenho testado sua capacidade e apesar do pouco convívio que tivemos, pude
perceber que quando ela gosta do assunto, capta com facilidade. Estou
observando e estabelecendo um plano para despertar nela a alegria de viver, Isso é o que lhe falta. A depressão em que vive, a impede de sentir entusiasmo, de perceber as coisas boas que poderia desfrutar com sua juventude, sua família,
seus amigos e principalmente enriquecer o espírito aprendendo com as
experiências do dia-a-dia.
Maria Helena estava boquiaberta.
— Ela não consegue aprender direito. Todos os seus professores disseram isso!
— Ela tem bloqueios psicológicos. Por isso tenho procurado prepará-la para
aprender música. Se eu for direto ao piano, ela não vai aprender. Desejo que ela
sinta essa necessidade.
— Ela não gosta de nada. Jamais vai sentir isso.
— Se ela não sentir, jamais poderá tocar. Amúsica é a voz do sentimento e para
ser um bom intérprete há que senti-la.
Maria Helena suspirou.
— Quero que ela aprenda alguma coisa. Sou mãe, tenho o dever de educá-la.
Luciana sorriu com suavidade:
— Se a senhora me permitir continuar, acredito que ainda se surpreenderá.
— Claro que desejo que continue. Receio que se decepcione e desista.
Luciana sacudiu a cabeça.
— Não vou desistir, D. Maria Helena. Sua filha é como uma pequena planta
delicada e cheirosa, sufocada pelos galhos mais fortes dos arbustos que a
cercam. Precisa apenas enxergar seu espaço. Um dia crescerá e abrirá
seu próprio caminho, transformando a paisagem e encantando com sua
beleza, distribuindo seu perfume. A senhora sentir-se-á feliz vendo-a desabrochar.
Passar bem, D. Maria Helena.
Com um gesto gracioso, Luciana afastou-se.
Maria Helena entrou pensativa. As últimas palavras de Luciana perturbaram-na.
O que teria ela querido dizer? Elogiara Maria Lúcia! Era inusitado. Estaria sendo
sincera?
Quando José Luiz chegou, contou-lhe o que se passara.
— Essa moça é diferente dos outros professores. Não estará se iludindo? Elogiar
Maria Lúcia! Será ela tão pouco exigente?
José Luiz pensou um pouco antes de responder, depois
— Ela pareceu-lhe leviana?
— Não. Ao contrário. Parece segura do que afirma. Garante que Maria Lúcia é
inteligente! Não posso acreditar. Alguma coisa está errada.
— Não a entendo. Você temia que ela desistisse de ensinar Maria Lúcia. Está
acontencendo exatamente o contrário. De que se queixa? Ela age de forma
diferente.
— Tem métodos modernos. Estudou na Europa. Não se esqueça que é educadora
e pelo que me informaram, das melhores.
— Quando entrei na sala, o rosto de Maria Lúcia parecia outro. Seus olhos
brilhavam e sua fisionomia era expressiva. Logo voltou a ser como sempre, mas
reconheço que estava modificada. Sabe o que a professora contava? A vida da
maior dançarina do mundo. disse: — Está certo. Ela deseja que Maria Lúcia
aprecie arte. Se despertar-lhe o interesse, facilitará sua aprendizagem. Acho a
idéia brilhante!
— Pode ser. Receio que se desiluda. Garantiu-me que não vai desistir.
— Melhor assim. Os outros nunca conseguiram nada. Vamos apoiá-la.
— Quero conhecê-la melhor. Formar uma opinião mais de perto.
— Como quiser. Entretanto, dê-lhe liberdade de ação para ensinar Maria Lúcia.
Talvez ela esteja agindo certo.
— Tenho minhas dúvidas. Conheço nossa filha, infelizmente! Mas, não vou
interferir por enquanto.
— Melhor assim — concluiu José Luiz, aliviado.
Confiava em Luciana. Sentia necessidade de visitá-la para falar sobre o assunto.
Iria vê-la na noite seguinte.
Sentado confortavelmente em gostosa poltrona em casa de Luciana, José Luiz
ouvia-a falar sobre Maria Lúcia. Quando ela terminou, disse:
— Não desejo desanimá-la, mas não estará demasiado otimista?
Luciana sacudiu a cabeça negativamente.
— Não. Maria Lúcia não é a pessoa indiferente e inexpressiva que aparenta.
— Ela estará dissimulando? — perguntou ele com ar de incredulidade.
— Isso não. Eu diria que ela se defende.
— Não compreendo.
— Ela se acredita incapaz e por isso receia cometer erros, bloqueia
seus sentimentos reais, admite a própria incapacidade para não ter que fazer
nada. Agindo assim, julga proteger-se da critica.
Ele admirou-se:
— Por que agiria assim?
Luciana deu de ombros num gesto gracioso e muito seu.
— Não sei. É cedo para que eu possa afirmar alguma coisa. Porém, percebo que
D. Maria Helena faz distinção entre os dois filhos. Não esconde sua admiração
por João Henrique e sua decepção pela filha.
— Posso perceber isso, porém ela age assim justamente porque eles são muito
diferentes. Se Maria Lúcia fosse uma pessoa como todo mundo, por certo Maria
Helena reconheceria e seria muito feliz, pode crer. Ela, mais do que ninguém,
lamenta a postura de nossa filha.
— Certo. Não estou afirmando que a postura de D. Maria Helena tenha originado
o problema. Mas que o tenha agravado, não tenho dúvidas.
— Você acha?
— Acho. Não vai aqui nenhuma crítica. Seu comportamento é, até certo ponto,
natural dentro da situação. Ela desconhece os problemas do passado espiritual.
José Luiz remexeu-se na poltrona.
— Esses seus assuntos são muito complicados.
— Ao contrário. Podem esclarecer muitos problemas como os de Maria Lúcia.
Prova, de inicio, que cada pessoa traz ao nascer suas experiências de outras vidas. Mesmo que você não deseje aceitar essa verdade, só a reencarnação pode
esclarecer as diferenças de personalidade entre os filhos de um mesmo casal,
em igualdade de condições. A gritante disparidade entre seus filhos parece-lhe
explicável de outra forma?
José Luiz baixou a cabeça pensativo. Esse enigma sempre lhe ocorria sem
qualquer explicação possível.
— Essa idéia de reencarnação parece-me fantasiosa. Ter vivido em outro corpo,
ter sido outra pessoa, é loucura!
— Mais loucura é acreditar que se viva na Terra apenas uma vez e que se tenha
tão pouco tempo para conquistar a sabedoria. Essa idéia apequena as coisas de
Deus e limita muito nossas chances de felicidade. Por outro lado, a possibilidade
de voltar a este mundo para desenvolver nossos conhecimentos e amadurecer
nosso espírito, abre-nos as possibilidades e faz-nos perceber a bondade de Deus.
— Não deixa de ser um belo sonho, — disse ele. Luciana sorriu.
— É realidade, papai, não sou eu quem afirma isso. Em todas as partes do
mundo, na Europa, na América, muitos cientistas estudaram esse assunto
e afirmaram essa verdade.
José Luiz olhou-a admirado.
— Não sabia.
— É verdade. Na França, o professor Rivail; na Itália, o grande Bozano; enfim,
homens sérios, estudiosos, cientistas interessados em descobrir a verdade o
afirmaram. Sem falar das pessoas que se recordam de coisas, fatos ou pessoas
que conheceram em vida anterior.
— Vamos supor que fosse verdade — disse ele — em que esclareceria o caso de
Maria Lúcia?
— Eu não sei quais os fatos que a tornaram assim, que a fizeram bloquear seus
verdadeiros sentimentos, mas, podemos supor que eles tenham sido causados por
alguma experiência dolorosa, provavelmente de dependência, onde foi dominada
ou se deixou dominar por alguém durante muito tempo e perdeu sua própria
identidade. Quando deixamos que os outros nos dominem, por temor ou por
amor, por comodismo ou por insegurança, perdemos o contato com nossa
própria essência, com nosso eu interior e passamos a agir como autômatos das
idéias alheias, produto do meio social ou do condicionamento familiar. Como não usamos nossa força interior, sentimo-nos inseguros e a cada dia mais e mais
receamos o fracasso e nos julgamos incapazes.
José Luiz fez um gesto vago.
— Como saber? Se ela teve problemas em outra vida, como descobrir
se ninguém se lembra de nada? Como ajudá-la?
— Tanto se lembra que continua agindo sob a ação do passado. Ela não está
consciente apenas, mas na ação, esse passado se revela em suas atitudes e
comportamento.
— Não seria inútil e injusto isso? Sofrer sem saber a causa.
— Não. Embora nós tenhamos vivido outras vidas na Terra, somos o mesmo
espírito, a mesma personalidade que viveu em corpos diferentes, tempos de
experiência. Amorte não modifica nossa essência e nem nos torna diferentes do
que somos só porque nosso estado físico foi modificado. Nossa individualidade
aprende sempre e só gradativamente vai conquistando a sabedoria. Só nos
libertamos dos nossos problemas íntimos quando conseguimos modificar nosso
espírito. Podemos carregar o mesmo desequilíbrio durante muitas encarnações
seguidas, até podermos vencê-lo.
José Luiz ficou sério. Seria verdade isso? Luciana continuou:
Os olhos de José Luiz encheram-se de lágrimas:
— Ah! Se eu pudesse vê-la ainda que fosse por alguns segundos!
Luciana olhou-o séria:
— Quem sabe um dia você também possa. Contudo, o fato de você
não conseguir, não a impede de estar a seu lado, de abraçá-lo e ajudá-lo sempre.
— Eu não mereço.
— Ela não pensa assim. Sei que lhe deseja todo o bem do mundo.
— O que é próprio de sua alma nobre. Como pude ser tão cego?
Luciana sorriu:
— O passado acabou. Nada poderá modificá-lo. Vamos viver o presente com alegria e amor. Renovando as idéias e procurando ser melhor.
Conversaram durante algum tempo e quando José Luiz saiu, beijou-a na testa com afeto e reverência. As palavras que Luciana lhe dissera, podiam ser questionadas ainda por sua mente cética, mas havia algo nelas que falava ao seu coração e infundia-lhe muito respeito e admiração.
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Quando a Vida Escolhe
SpiritualConheça a história da doce Luciana e aprenda, por meio dessa adorável personagem, que cada um de nós é a própria vida tornando-se realidade. Isso quer dizer que, quando escolhemos, é a vida escolhendo em nós. A vida jamais erra. Assim, seja qual for...