Capítulo 21

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Sentado na pequena sala da delegacia, Ulisses esperava. Aqueles dias na prisão
haviam sido um pesadelo. Embora houvesse recebido um tratamento especial
pelo nome de sua família, e o delegado simpatizasse com o seu drama de
apaixonado (ele continuava no papel), não o libertara.
O coronel Albuquerque era muito influente e estava realmente empenhado em
punir o rapaz exemplarmente. A prisão suja, a cama dura, a comida horrível, a
humilhação e a raiva, eram insuportáveis. Mandava comprar comida fora, e a tia
conseguira-lhe um advogado a quem encarregara de tirá-lo dali. Esperava-o
com impaciência. O dr. Antero chegou sobraçando sua pasta de couro, e Ulisses
levantou-se ansioso. Quando o guarda fechou a porta, e ele sentou-se do outro
lado da pequena mesa que estava em sua frente, Ulisses o cumprimentou e
antes mesmo de tornar a sentar-se indagou:
— E então?
O advogado colocou a pasta sobre a mesa, tirou o chapéu e colocou-o sobre ela.
— Bem, — começou ele, escolhendo as palavras — preciso ter calma.
— Calma? Ficar aqui nesta prisão infecta e você pede calma? Quero saber
quando vai me tirar daqui. Sou de classe. Não posso ser tratado como uma pessoa
qualquer.
— Ficar nervoso não vai facilitar as coisas. Você está encrencado. O coronel é
influente e está empenhado em mantê-lo aqui.
— Ele não pode fazer isso. Afinal, ninguém saiu ferido.
— Ele não esquece o vexame da filha e o susto que passaram.
— Preciso sair daqui. Não agüento mais isto.
— Estou fazendo o que posso.
— Também tenho amizades influentes. Minha tia não lhe deu as cartas para
procurá-los?
— Deu. E eu fui.
— E então?
O advogado coçou a cabeça indeciso.
— Fale. O que eles disseram?
— Bem... se recusaram a intervir, O doutor Menezes disse que não moverá uma
palha para libertá-lo, e o dr. Campos disse que você teve o que mereceu.
— E o Ernesto Gomes?
— Que foi bem feito.
— Bandidos! Em resumo...
— Ninguém quis ajudar. Ao contrário, preferem vê-lo preso. Disseram que o
riscaram da lista de amigos. E se quer saber, não o receberão mais em casa.
— Que súcia de traidores!
— A coisa anda feia. Na sociedade, nos clubes, nas casas de família, estão todos
contra você.
Ulisses levantou-se e começou a andar de um lado para outro preocupado.
— Nesse caso, precisamos usar outros meios. O dinheiro compra tudo.
Vamos dar um jeitinho, talvez o delegado ou o próprio carcereiro,
facilitem minha saída.
— Pensa em fugir?
— Pelo menos por algum tempo. Esconder-me até que esqueçam.
— Seria pior. A lei é dura para o infrator reincidente. Se o apanham, a pena
dobra. Depois, para onde iria? Sua casa, impossível, e todos estão contra você.
Não teria como esconder-se e logo seria descoberto. O coronel moveria céus e
terra.
— O problema é meu. O seu papel é facilitar minha saída.
— Como arranjará o dinheiro? Sei que está quebrado. Sua tia está passando
dificuldades.
— Ela terá que dar um jeito, arranjar seja como for. Vá la, fale com ela.
Diga que não suporto mais ficar aqui. Faça-me um favor. Peça-lhe para dar um pulo até aqui.
— Está bem, irei.
Depois que ele saiu, o carcereiro convidou-o a recolher-se no pequeno quarto
que lhe servia de cela. Estirado na cama dura, Ulisses arrependeu-se do passo
impensado que dera. Fora estúpido e imprudente. Aqueles idiotas, que se diziam
seus amigos, puseram tudo a perder e ainda se saíram bem, como heróis. Eles
ficaram com o papel de galã, e ele como vilão. Eles não perdiam por esperar.
Agora, precisava sair dali, defender a pele. Seu instinto advertia-o de que o
coronel não sossegaria enquanto não acabasse com ele.
Precisava pôr-se ao largo. Talvez fosse melhor sair da cidade. Estava riscado na
sociedade. Endividado, e sua mentira sobre a herança, descoberta.
Ninguém lhe emprestaria um níquel sequer. Restava-lhe a casa de
família. Nunca quisera vendê-la porque representava seu trunfo para conseguir
um casamento rico. Enquanto pudesse manter as aparências, pensava,
teria chance. Agora, descobertas suas mentiras, estava perdido.
Seria melhor vender a casa e com o dinheiro tentar a sorte em outro lugar. Faria
isso. Para onde iria? O coronel o perseguiria, tinha a certeza. Foi então que
decidiu. Iria para Portugal. Prepararia tudo e tomaria o próximo vapor para lá.
Tomada essa decisão, esperou a tia com impaciência.
Só no fim da tarde foi que ela chegou. Estava abatida e triste. Sentia vergonha.
Parecia-lhe que todos a apontavam, e ela trancara-se em casa, de onde saíra
diante da insistência do advogado e do desespero do sobrinho.
Vendo-o, abraçou-o comovida. Ulisses, percebendo que o carcereiro se afastara
e fechara a porta, disse em voz baixa:
— Tia, preciso da sua ajuda. Fiquei sabendo que o coronel Albuquerque pretende
vingar-se. Deseja matar-me!
Ela torceu as mãos aflita:
— Valha-me Deus! Que maldade.
— Pois é. Não contente em destruir-me com infâmias e mentiras, ainda deseja
acabar comigo. Preciso da sua ajuda para fugir daqui.
— Eu? O que posso fazer?
— O que eu disser. Estive pensando. Ouça-me com atenção.
Segurou as mãos dela, olhando-a nos olhos com determinação.
— O que quer que eu faça?
— Depois do que aconteceu, não posso mais ficar no Rio de Janeiro. Estou
desmoralizado, perdido. Além do mais, há o coronel que quer me matar. Nós não
temos dinheiro. Precisamos vender a casa.
— Nossa casa? — disse ela com voz dorida.
— Sim. É a única forma de me salvar. Você vai ao seu Manoel Carvalho, que
sempre quis comprá-la e vende.
— A casa é só o que temos. O que será de nós sem ela?
— Já pensei em tudo. Iremos embora para Portugal. Lá, começaremos vida
nova, longe de tudo isto. As más línguas falam. Como você vai ficar aqui depois
do que aconteceu? Com o dinheiro, montaremos um negócio qualquer
e viveremos bem.
Ela meneou a cabeça indecisa:
— Não sei não...
— Prefere ver-me morto? O que fará se eles me matarem?
Ela estremeceu horrorizada.
— Não diga isso. Você é como meu filho! Só tenho você neste mundo.
— Então, faça o que estou falando. O tempo passa e eu tenho medo.
— Está bem. Farei o que me pede. Seja tudo pelo amor de Deus.
— Assim é melhor, tia. Vai fazer tudo como eu disse. Vai na agência de viagens e
me traz as partidas mais próximas para Europa. AI, planejaremos tudo.
Venderemos a casa, compraremos as passagens e quando tudo estiver pronto, partiremos.
— Como sairá daqui?
— Não se preocupe. Com dinheiro na mão, será fácil. Agora vá e faça tudo o mais depressa que puder.
Quando a tia saiu, Ulisses sentiu-se mais calmo. Se eles pensavam em acabar
com ele, enganavam-se. Não lhes daria esse gosto. Em Portugal, tinha alguns
amigos com quem pretendia recomeçar a vida. Formara-se na universidade com
dificuldade. Não se interessava pelos estudos, nem pela profissão. Não pretendia
trabalhar para ganhar a vida. Não se contentava com migalhas. Queria mais. Em
todo caso, o diploma servia-lhe para dar-lhe posição e conseguir impressionar.
Uma vez lá, onde ninguém sabia de nada, poderia continuar a representar seu
papel de rico herdeiro e conseguir o casamento que precisava.
Haveria de mostrar aos dois falsos amigos o quanto valia, quando rico e bem-
posto, regressasse ao Rio de Janeiro. Eles haviam de ver. Então, sena ele quem
lhes daria as costas e não os queria para relacionar-se.
No dia seguinte, Eufrásia voltou à delegacia para ver o sobrinho, levando na bolsa
as informações que ele pedira.
Ulisses esperava-a ansiosamente. Apanhou os folhetos das viagens e leu-os com
atenção.
— Veja, tia, há um vapor que sairá na próxima semana, dia cinco, vejamos,
terça-feira. Iremos nele. Falou com o seu Manoel?
— Falei. Disse-lhe que queria ir-me para São Paulo, por causa do escândalo,
conforme mandou.
— E ele?
— Mostrou-se interessado. Quer ficar com a casa.
— Por quanto?
— Oito contos de réis.
— É pouco. Está se aproveitando da situação. A casa vale pra mais de quinze.
Trata-se de um palacete.
— Isso disse-lhe eu.
— Diga-lhe que há outro interessado em pagar dezoito contos e vamos vender a ele.
— Mas não há ninguém.
— Faz de conta que há. Diga-lhe isso e verá que ele pagará mais. É preciso saber
negociar.
— Ah! se eu pudesse sair daqui! — reclamou Ulisses.
— Talvez piorasse as coisas. Ele não sabe que pretendemos ir juntos.
— Nem deverá saber. Se descobrem nosso plano, estarei perdido. Vocêvai fazer
o seguinte...
Ulisses cuidadosamente ensinou o que a tia deveria fazer, desde reservar as
passagens até a venda da casa e os preparativos para a viagem onde usaria
documentos falsos de identidade.
Quando ela saiu, sentiu-se aliviado. Sempre fora inteligente e soubera defender-
se muito bem. Não seria agora que iriam derrubá-lo.
Quando o carcereiro apareceu, encontrou-o triste e encolhido em um canto. —
Se quiser que eu vá comprar comida, tem de ser agora, enquanto o delegado foi
almoçar. Afonso oferecia-se todos os dias, esperando embolsar a gorjeta.
— Estou sem fome — disse Ulisses fingindo-se arrasado — e o pior, é que não
posso viver sem essa mulher! O que será de mim de hoje em diante?
O outro coçou a cabeça e sugeriu:
— Deixe disso. O coronel não é sopa não.
— Estou desesperado. Eu adoro a Marianinha!
— Você está se desgraçando por causa dela. Não vale a pena. Um moço como o
senhor, rico, bem-posto. Deixe disso!
Ulisses levantou-se e aproximando-se de Afonso disse-lhe com voz súplice:
— Se ao menos eu pudesse vê-la pela última vez!
— Melhor não fazer mais besteira.
— Vou contar um segredo. Você tem sido meu amigo. Posso confiar em você?
— Pode. Se eu puder ajudar...
— Minha tia deu-me uma triste notícia. Mas, é segredo.
O outro aproximou-se mais, baixando o tom de voz:
— Fale! Confie em mim!
— Sei de fonte limpa que o coronel me jurou de morte.
Afonso empalideceu:
— Cruz-credo! Como soube?
— Não posso dizer. Minha tia descobriu. Planejaram tudo na terça-feira.
O matador virá aqui.
— É impossível! Vou falar com o delegado. Dobrar a guarda.
— Não vai adiantar. Isso só vai adiar minha morte.
— Que situação!
— Estou desesperado. Preciso sair daqui antes que seja tarde. Você é meu
amigo. Se me ajudar, não se arrependerá. Minha tia está vendendo a casa. Estou
disposto a dar-Iher bom dinheiro pelo favor.
Os olhos de Afonso brilharam.
— Não posso permitir que cometam esse crime.
—Sem falar que o matador pode até matá-lo para entrar aqui.
— Deus me livre! Vire essa boca pra lá!
— Então, vai me ajudar?
— Não posso recusar.
— Vamos planejar tudo.
Ulisses explicou a ele o que fazer, combinando que o deixaria amarrado para
inocentá-lo da fuga. Tudo acertado, ele aguardou as providências da tia
epreparou-se para a fuga.
O vapor partiria no começo da noite. Ele fugiria assim que escurecesse e iria ao
encontro da tia em uma pensão no cais, onde trocaria de roupa e colocaria uma
barba como disfarce. Embarcariam no navio, onde as bagagens já teriam sido levadas pela manhã.
Eufrásia não conseguiu vender a casa por quinze contos de réis, mas Manoel,
pressionado, chegou aos doze, e Ulisses aceitou prontamente. Isto feito, tudo
acertado, no dia combinado quando o delegado saiu para jantar, Afonso, tendo
recebido o dinheiro adiantado e colocado em lugar seguro, deixou-se amarrar
por Ulisses e quando escureceu, ele saiu pelos fundos dirigindo-se à pensão do
cais conforme o combinado.
Quando o navio apitou dando o primeiro sinal, Eufrásia, tendo colocado um
grande chapéu cujo véu lhe cobria o rosto, dando o braço ao
sobrinho, envelhecido por uma barba que lhe cobria metade do rosto, subiu as escadas que conduziam ao convés. Ninguém desconfiou, e eles, satisfeitos e aliviados, fecharam-se no camarote, fazendo planos para o futuro.
Era já noite quando o navio levantou âncora e zarpou.

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