Capítulo 18

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Luciana acordou cedo e bem-disposta. Satisfeita, levantou-se, vestiu-se e foi
tomar seu café na copa. Vendo-a, Egle não escondeu a alegria.
— Como você está bem-disposta está manhã! Corada.
— Sinto-me feliz, vovó. Tenho vontade de cantar, dançar. Já notou como os
passarinhos cantaram hoje cedo?
Egle balançou a cabeça.
— Acho que sei porque essa alegria toda... Tem a ver com os Fontes.
Luciana corou mas concordou sorrindo.
— É verdade, vovó. Nesses dois meses que Maria Lúcia está fora, eles têm sido
companheiros ideais.
— Vocês não se largam. Todos os dias, nunca vi coisa igual!
— É que eles são mesmo especiais. Adoro Margarida. Nunca conheci ninguém
como ela. Seu Otimismo, sua inteligência, sua bondade, me comovem e ajudam.
Tenho aprendido muito com ela.
— Eu sei. Margarida é uma mulher duzentos anos na frente da nossa época. É
original, espirituosa e você tem razão. Muito bondosa.
— Sinto-me muito bem ao seu lado. Desde aquele domingo maravilhoso que
fomos almoçar lá, minha vida se transformou.
— Você agora me parece mais feliz.
— Estou, vovó. Eu vivia bem. Mas agora, sinto-me ainda melhor. Havia muitas
coisas que não conseguia entender. Margarida tem me mostrado aspectos que eu
nunca havia notado e que modificaram muito minha maneira de pensar.
— É verdade, Luciana. Amim também ajudou.
— Você?
— Sim. Desde que Suzane morreu, e você ficou comigo, sempre receei ter que
partir e deixá-la só no mundo. Temia a crueldade dos outros, pensava que eu
necessitava estar aqui, a seu lado, para protegê-la.
— Você nunca me disse!
- Não queria preocupá-la. Mas, apesar de saber que a vida continua, que a morte
é uma ilusão, temia ter que ir, deixando-a no mundo. Quando José Luiz apareceu,
fiquei mais aliviada. Contudo, ele tem família que desconhece o passado. Sempre
me perguntei como Maria Helena receberia a verdade. Margarida mostrou-me o
quanto estava enganada. Se eu precisar ir amanhã, irei em paz.
Luciana levantou-se e abraçou a avó com carinho.
— Não fale assim. Você ainda ficará muito tempo comigo.
- Eu gostaria de ficar, mas se precisar partir, não será um drama.
— Margarida faz milagres. Como foi?
— Sabe Luciana. nossa educação, a sociedade, a posição da mulher em nosso
mundo, a religião que sempre procurou nos dominar pelo temor e não pelo amor,
as ilusões das pessoas, acreditando no mal como solução de suas dificuldades,
tornou o nosso mundo muito triste e cruel. A bondade confunde-se com a
fraqueza, a dignidade com o orgulho, o amor com a paixão, a honestidade com
aparência. Tudo isso vem confundindo nossos sentimentos e, por isso, colocamos
os medos em nossas vidas. Sentimos medo de viver, de morrer, das pessoas, da
natureza e até do castigo de Deus. O medo tem atormentado nossas vidas e
impedido que enxerguemos a verdade. Ele deturpa os fatos, paralisa nosso
desempenho, escurece nossas decisões.
— É verdade, vovó. Já notei isso.
— Margarida fez-me compreender que isso tudo não passa de ilusão, de mentiras
nas quais acreditamos ao longo de nossas vidas. São crenças profundas que
determinam todas as nossas atitudes no dia-a-dia.
— Claro. Se eu creio que algo é de certa forma, tomarei atitudes sempre em
relação a isso.
— Pois é. Compreendi que os medos são gerados pela crença de que o mundo é
perigoso. Esquecida de que Deus está cuidando de tudo. Que ele é bom, perfeito,
justo e muito mais do que podemos imaginar, já que ele controla e mantém o
equilíbrio do universo. E o mais importante, que ele nos criou para a alegria e
felicidade. O paraíso. Rodeou-nos de beleza, colocou-nos na Terra, um planeta
cheio de flores, deu-nos tudo, previu os mínimos detalhes. Nossos medos não seriam meras pretensões? Nossa falta de fé não será uma infantilidade espiritual?
— Vovó! Como você cresceu.
— Disseste bem, Luciana. Eu cresci. Além disso, os espíritos dizem sempre que é
preciso dar para receber. Que cada um recebe de acordo com o que dá.
— É verdade.
— Então eu descobri que isso se aplica não só à esmola que damos na igreja, o
dinheiro na mão do pobre, mas às energias que acumulamos com nossos
pensamentos e distribuímos a todo instante.
— É mesmo. Cada pessoa distribui suas energias por onde passa. Posso sentí-las
muitas vezes.
— Os sensitivos sentem. Margarida disse-me que essas energias que damos
naturalmente, fruto de nossa forma de sentir, de pensar, é que atraem e repelem
os fatos o pessoas em nossas vidas.
— Ela falou-me sobre isso.
— Logo, se isso é verdade, você que só pensa no bem, irradia o bem, estará
protegida. Nenhum mal a atingirá.
— O mal é ilusão, vovó. Não acredito nele. Até o mais triste assassino, um dia,
compreenderá isso.
— Concordo. Mas a presença de José Antônio concorre para seu entusiasmo.
— Gosto dele, vovó. É carinhoso, inteligente, culto. Já notou como ele trata
Margarida?
— Já. São pessoas muito especiais. Parece que gostam de nós. Ele já
se declarou?
— Vovó!
— Por que essa admiração? É o que ele fará nos próximos dias, se é que ainda
não o fez.
— Você acha mesmo?
— Acho. Desde já digo que concordo. Abençoarei vocês com alegria.
A sineta tocou.
— Espera alguém?
— Sim, vovó. Eles me convidaram para escolher alguns tecidos. Pretendem
reformar a sala de estar.
Egle balançou a cabeça.
— Não há o que justificar, os motivos aparecem sempre. Vá abrir logo.
Luciana corada e alegre apressou-se em obedecer. Margarida e José Antônio
entraram e abraçaram Luciana carinhosamente. Egle apressou-se
em cumprimentá-los. Minutos depois, vendo-os sair, Egle sentiu-se feliz.
Gostava deles o bastante para desejar têlos na família. Luciana seria feliz, com
certeza.
Percebera o interesse do moço e a aprovação de Margarida. Aquele era
um namoro que tinha tudo para dar certo, embora ele ainda não houvesse
se declarado.
Naquele fim de semana, em Petrópolis, Maria Helena recebeu o
marido aparentando uma alegria que não sentia. Havia dois meses que estava lá
com a filha e não desejava voltar ao Rio. Voltar, significava enfrentar o
problema de Luciana, e ela não conseguira ainda encontrar uma desculpa para
afastá-la de casa. Inconformado, José Luiz insistia para voltarem dizendo-se
muito só. João Henrique, depois de uma semana, regressara, mas pouco se viam.
O rapaz esforçava-se para esquecer a desilusão passada, e mergulhara no
trabalho, tendo voltado aos projetos de sanidade e urbanização da cidade, sonho
maior de sua juventude. Fora isso, tornara-se assistente de um grande
engenheiro, trabalhando o dia inteiro, visando praticar e tornar-se um bom
profissional.
Tinha pouco lazer, ao contrário de outros tempos, não ia a concertos ou teatros.
Preferia recolher-se para trabalhar em seus projetos, voltara-se mais para coisas
bucólicas, preferindo sentar-se nos parques, ou ir a Paquetá, quase sempre
sozinho, perdido em seus pensamentos. Seus amigos, voltados às atividades
mundanas, raramente o seguiam.
Jarbas, algumas vezes, o acompanhara, porém, João Henrique mostrara-se tão
distante e introspectivo que ele afastara-se, percebendo que o amigo preferia a solidão.
Em casa, ficava em seu escritório, estudando, e José Luiz permanecia realmente só.
Uma tarde, José Luiz a sÓs com Maria Helena na sala de estar, foi direto ao
assunto:
— Maria Helena, vim buscá-la. Amanhã voltaremos para casa. Não agüento
mais ficar lá sem vocês.
— Reconheço que tem razão. Contudo, sinto-me tão bem aqui, que apreciaria
ficar mais um pouco.
José Luiz olhou-a sério:
— Aconteceu alguma coisa? Tenho notado que há momentos em que você me
parece distante. Por acaso, arrependeu-se? Não deseja mais viver a meu lado?
Terá o passado mais força do que o presente?
Ela apressou-se em dissimular
— Não, Por que diz isso?
— Porque não estou entendendo. Primeiro você disse que me amava, que
sempre Sonhou com nossa felicidade. Compreendi o quanto a amava também e
nos entendemos como nunca. Não consigo esquecer as noites que passamos
juntos depois disso. Pensei que não houvesse mais sombras entre nós, que
Pudéssemos viver bem agora. Porém, você, de repente, me abandona decide
ficar longe de casa e sempre que desejo levá-la de volta, vem com desculpas.
Hoje, estou disposto a esclarecer. O que está acontecendo? Quero a verdade.
Maria Helena Sentiu que precisava encontrar uma saída. Olhou-o nos olhos e
decidiu:
— Está bem. Direi a verdade. Não vai recriminar-me? Rir de minha fraqueza?
Ele abanou a cabeça.
— Seja o que for, Posso entender. Sabe que sou Compreensivo
— Muito bem. Notou que agora meu relacionamento com Maria
Lúcia melhorou?
- Notei e a felicito. Vocês nunca se entenderam. Agora tornaram-se atenciosas
uma com a outra. Maria Lúcia mudou muito.
- Quando percebi que me havia enganado a respeito dela, julgando-a incapaz,
Senti enorme remorso. Claro que ela nunca seria como João Henrique, sempre inteligente e sagaz, mas ela pode ser pessoa comum, o que chega a ser bom na
mulher. Não percebi isso e sempre a tratei de forma inadequada. Contudo, ela
mostrava-se ressentida comigo, mesmo quando resolvi conquistar seu afeto,
acabar com os desentendimentos que havia entre nós. AI, percebi que ela
gostava de Luciana muito mais do que de mim. Fiquei arrasada de ciúme.
— Que despropósito. Logo com Luciana!
— Foi mais forte do que eu. Ela só falava em Luciana, tudo era Luciana. Só
Luciana. Eu nada representava para ela.
— Por que não me disse?
— Tive vergonha. Afinal, sou mulher amadurecida. Não quis confessar meu
ciúme. A situação chegou a um ponto, que eu não suportava vê-las juntas. Então
eu pensei que se me afastasse dela por algum tempo, conseguiria vencer esse
ciúme. Contudo, só em pensar em voltar, fico horrorizada. Aqui, longe dela,
Maria Lúcia achegou-se mais a mim. Ao voltar, Luciana virá nos ver e tudo
voltará a ser como antes. Eu não quero! Não suportaria perder o amor de minha
filha para uma estranha!
José Luiz surpreendido podia perceber a raiva que Maria Helena colocava nas
palavras. Sentia que ela falava seriamente. Jamais imaginara que isso pudesse
acontecer. Estava desgostoso.
— Eu estranhei seu silêncio sobre Luciana. Afinal ela tornou-se habitual em
nossa casa.
— Agora, sinto-me sem coragem de enfrentar a mesma situação de novo. Meu
ciúme continua mais vivo do que nunca. Não permitirei que ela roube o amor das
pessoas que amo!
Disse isso com tal veemência que José Luiz assustou-se.
— Parece que você a odeia, no entanto ela nos fez muito bem.
— É isso que eu odeio. Ela é maravilhosa e vocês a amam. E eu? Sou absolutista.
Me recuso a dividir o amor de minha família com uma estranha por melhor que
ela pareça ser.
— Nesse caso, o que pretende fazer?
— Também desejo voltar para nossa casa. Quero que me prometa que essa moça não mais porá seus pés lá.
José Luiz levantou-se irritado.
— Não acha que está sendo infantil, depreciando uma pessoa que deu o melhor
de si e não tem culpa de seus complexos pessoais?
— Eu disse que você não ia entender. Eu não quero mais essa situação.
Por outro lado, Maria Lúcia vive pendurada em Luciana. Precisa
ser independente. Até quando ficará apoiada nela?
— Por causa disto, você não tem o direito de desfeitear Luciana afastando-a da
nossa casa, sem motivo justo. “Ele a ama!” — pensou ela com raiva. “A defende
com veemência.”
Procurou esconder o que sentia e dizer com naturalidade:
— Claro que não penso em ofendê-la. Conversarei com ela e com Egle.
Pedirei que se afaste por algum tempo. Explicarei que é para o bem de
Maria Lúcia. Para que ela aprenda a ser auto-suficiente. Tenho certeza de
que compreenderão Depois de algum tempo, quem sabe, quando eu estiver
mais segura com minha filha, a chamaremos de volta.
José Luiz Suspirou contrariado, mas aqueles eram os sentimentos da esposa, seria
melhor mesmo Luciana afastar-se por certo tempo.
— Está bem — disse. — Se é assim que quer, seja. O que dirá para Maria Lúcia?
Ela vai querer ver Luciana.
— Esses dois meses aqui foram muito positivos. No começo ela perguntava
muito, agora, esqueceu. Se Luciana alegar Outras ocupações, ela aceitará.
— Sendo assim, regressaremos amanhã.
— Sim. Amanhã.
José Luiz abraçou-a, beijando-lhe os cabelos procurando seus lábios com ardor.
— Estou saudoso, — disse emocionado.
Maria Helena entregou-se ao prazer doloroso daquele beijo que a
fazia estremecer de emoção mas que, ao mesmo tempo, como um punhal
remexia a ferida em seu coração. Maria Lúcia no quarto, sentada no chão, Costas apoiada na cama, sentia-se profundamente entediada. Estava só.
Ansiosamente aguardara a presença de Ulisses. Ele não aparecera nem lhe
enviara uma palavra sequer.
Nos primeiros tempos, entretera-se em recordar suas palavras de amor, e
os beijos que haviam trocado. Tinha pressa em voltar ao Rio, em revê-lo. Ali, em
Petrópolis, tudo era difícil. Ele desejava manter segredo. Cada sábado, esperava
ansiosa. João Henrique não vinha. Se ele viesse, Ulisses teria pretexto para vir
junto. Sozinho, não teria desculpa. Desejava pedir à mãe para voltar, porém,
vendo-a tão triste e sofrida, não tinha coragem. Compreendia o que ela deveria
estar sentindo. Por isso, achegara-se mais a ela tentando ser solidária. Foi com
satisfação que à mesa do jantar, ouviu do pai a noticia de que regressariam no
dia seguinte. Seu rosto cobriu-se de rubor, e os lábios entreabriram-se em um
sorriso. Na tarde de domingo, eles regressaram ao Rio. Foi com alegria
que Maria Lúcia à noite, vestiu-se com capricho e esperou. Embora João
Henrique estivesse em casa, Ulisses não apareceu. Na manhã de segunda-feira,
Egle recebeu com alegria um telefonema de Maria Helena dizendo que iria
visitá-las à tarde.
Com prazer, Luciana arrumou a sala colocando flores frescas, e Egle preparou
guloseimas para o lanche. Eram quase 16 horas quando Maria Helena chegou e
para decepção das duas, estava só. Cumprimentou-as educadamente e disse que
precisava conversar. Reunidas na sala, Maria Helena disse que se preocupava
com a dependência da filha e por isso estava interessada em afastá-la por algum
tempo mais da convivência com as duas amigas.
— Tenho notado — expôs ela, — nestes dois meses a sós com ela, que ela
melhorou muito. Está mais independente, mais adulta. Por essa razão, gostaria
que ficassem algum tempo afastadas dela. Quero ver se ela se liberta.
— Sempre desejei que ela se tornasse mais dona de si. Contudo, D. Maria
Helena, ela ainda não me parece pronta. Eu mesma tencionava fazer isso, mas
temo que seja cedo demais. Ela ainda não se integrou socialmente — disse
Luciana.
— Pois eu não penso assim. Ela está muito bem. Vim pedir-lhe que por algum
tempo, não nos procure. Não desejo aborrecê-las, mas isso é muito importante
para mim. É um pedido que lhes faço em nome da nossa amizade. Quando eu
achar oportuno, virei procurá-las. É só por algum tempo, para ajudar minha
filha.
— Claro — concordou Egle. — Está no seu direito. Nós compreendemos. Não se preocupe. Terá o tempo que quiser.
— Por certo, D. Maria Helena. Gosto de Maria Lúcia e farei tudo pela sua
felicidade.
Lutando com seus sentimentos de mágoa e rancor, Maria Helena dissimulou ao
máximo. Despediu-se em tom quase carinhoso, deixando as duas surpreendidas e
pensativas. Depois que ela saiu, Luciana comentou:
— Aconteceu alguma coisa, vovó. Sinto que algo muito grave se passou. O que
será?
— Tem razão. A atitude dela é estranha e me pareceu um tanto falsa.
— Eu me senti angustiada. É como se todo tempo ela me empurrasse. Ela está
contra mim. Mas, por que? Nada fiz que pudesse aborrecê-la
— Por certo. Sempre lhes deu apoio, amor.
— Não consigo entender. Está claro que ela me Colocou para fora de sua casa.
Por quê? Nosso relacionamento sempre foi bom e eu sentia que ela me
apreciava.
Seja o que for, uma Coisa eu sei: — não fizemos nada para aborrecê-la. Por isso,
coloque isso nas mãos de Deus e conservemos nossos corações em paz. A
verdade sempre aparece.
— Tem razão, vovó. Sinto-me triste por Maria Lúcia. Tenho saudades. Estará
bem mesmo? Não gosto deste pressentimento que me oprime o coração.
— Pois não o cultive dentro de si. Ele não vai ajudar em nada.
Temos consciência das nossas atitudes. Convém lembrar as palavras de
Suzane.Tudo sempre acontece pelo melhor. Pensemos na paz.
— Tenho consciência de que agi sempre visando o bem de Maria Lúcia. Mas sei,
sinto que ela ainda precisa de apoio. Sua Postura é mais desembaraçada, mas
seus sentimentos ainda estão distorcidos. Há coisas que não consegue perceber e
reage com certa tendência depressiva. Espero que D. Maria Helena esteja certa.
Sua paixão por Ulisses pode complicar sua vida.
— Ele não gosta dela, o que é um bem. Com o tempo ele vai desiludi-la. É
jovem. Vai aparecer um amor verdadeiro e então, tudo vai acabar bem.
— Não sei o que é pior para ela. Se o desprezo de Ulisses, ou o interesse que o vi manifestar.
— Ele quis vingar-se de você. Sabe que não o tolera e não deseja que Maria
Lúcia o namore.
— Seja como for, vi como ela reagiu. Sei que ele não é sincero. Se a deixar, ela
cairá na depressão; se ficar com ela, será por outros interesses e ela viverá
infeliz. Maria Lúcia não é como as outras moças. É muito sensível. Mais do que
deixa transparecer. É perspicaz, percebe as coisas, mas as interpreta sempre da
mesma maneira. Não se valoriza. As coisas mais simples, na cabeça dela,
tomam forma de rejeição, de critica, de incapacidade pessoal.
— Tanto assim?
— É. Foi difícil conseguir que ela começasse a olhar-se como é e não como
imagina ser. Por isso, D. Maria Helena, sem saber, contribuiu para agravar seu
estado, criticando-a constantemente, vigiando-a, comentando suas falhas,
valorizando João Henrique, comparando-os todo o tempo.
— Notei como Maria Helena preocupa-se com as aparências.
— Ela tentou educar a filha, deu o melhor de si, partindo do princípio de que a
crítica, a punição, conserta e modifica a pessoa. Fez o que seus pais fizeram com
ela, nunca a ouviu contar como eles foram exigentes e rígidos em sua educação?
— Só que com ela não aconteceu o mesmo que com Maria Lúcia.
— As pessoas são diferentes. Cada um reage a sua maneira. Contudo, embora D.
Maria Helena tenha se tornado uma dama de classe, sua rigidez de princípios, sua
forma de ver a vida através do que aprendeu dos pais, têm dificultado sua
felicidade familiar, afetiva.
— Felizmente, agora parece que ela mudou. Está mais humana e melhor.
Entendeu-se com José Luiz.
Luciana abanou a cabeça.
— Sei que algo aconteceu, vovó. Quem nos visitou hoje não foi a D. Maria
Helena dos últimos tempos. Foi aquela que conheci no primeiro dia. Com uma
mágoa no coração que ela habilmente procurava dissimular.
— Também notei certa diferença. José Luiz não disse nada?
— Talvez não saiba.
— Não podemos fazer nada. Ela nos afastou claramente.
— Só nos resta esperar e rezar para que tudo se harmonize. Por maior que seja
nossa amizade, não temos o direito de interferir. Elas escolheram. Quando
mudarem de idéia, as receberemos da mesma forma.
Naquela noite, José Antônio, sentado na varanda da casa, olhos perdidos em um
ponto distante, não percebeu quando Margarida aproximou-se com a xícara de
café. Eles costumavam, no verão, sentarem-se na varanda, após o jantar
e saborearem o café, acomodados nas largas e gostosas poltronas estofadas que
Margarida caprichosamente mandara fazer.
Vendo o irmão absorto, sorriu maliciosa e estendendo a xícara fumegante disse
bem-humorada:
— Eis seu café.
Arrancado de seus devaneios, o moço sobressaltou-se ligeiramente e apressou-se
a pegar a xícara. Margarida foi buscar outra e acomodou-se por sua vez com
satisfação.
— Margarida estive pensando..
Ela não disse nada e ele depois de sorver um gole de café continuou:
— Luciana é encantadora. Também acho.
— Tão verdadeira, tão inteligente. Depois, ela não é piegas como a maioria das
moças que conhecemos
— Ela não é piegas. É até muito prática e firme nas suas Convicções.
— Aprecio muito isso. Ela é uma mulher de verdade. Natural, fala da vida de
maneira simples, me encanta.
— Além disso é linda. De corpo e de alma.
— Vejo que também a aprecia.
— Luciana possui uma lucidez que me encanta. É um espírito iluminado. José
Antônio entusiasmou-se.
- Nunca Conheci ninguém como ela.
— Posso dizer o que penso?
— Claro.
— Você está apaixonado. Salta aos olhos.
José Antônio colocou a xícara na mesinha lateral e coçou a cabeça pensativo.
— Nota-se tanto assim?
Margarida riu sonoramente Seu riso era contagiante e o moço riu também.
— Penso que Luciana o fisgou. Você já capitulou. Daí, só para a declaração.
— Isso me preocupa.
— Você? Com a experiência que Possui?
— Sinto-me inseguro.
— As mulheres nunca resistiram ao seu charme. E você nunca teve dificuldade
de se declarar.
— Com Luciana é diferente. Fico emocionado, inseguro. E se ela não me quiser?
— Isso não vai acontecer. Ela gosta de você.
— Até agora, como amigo. Mas, daí ao casamento...
— Casamento? Então é mesmo sério. Você nunca pensou nisso. Receei que
ficasse para titio.
— Luciana é a mulher que escolhi e com a qual desejo viver para sempre.
Margarida ficou séria e respondeu com suavidade:
— Fico contente por você e por mim. Soube escolher.
— Desde que nossos pais morreram, temos vivido juntos e sempre
nos relacionamos muito bem. Nos compreendemos e nos apreciamos
mutuamente. Nunca pensei em casar porque eu não desejava truncar essa
harmonia. Luciana ampliou o circulo integrando-se naturalmente. D. Egle
também é pessoa agradável e bondosa.
— D. Egle é mulher de fibra e sensibilidade. É forte sem ser rude, suave sem fraqueza. Descobriu o ponto de equilíbrio que as pessoas buscam, às vezes
durante toda a vida. Quando vai declarar-se?
— O quanto antes. Acha que me aceitará?
Margarida disse maliciosa:
— Vá lá agora e fale com ela.
— É tarde. Não as quero incomodar.
— Vai esperar até amanhã com essa dúvida?
— Vai ser duro. Agora que resolvi, estou ansioso por saber.
— Não é tão tarde assim. Apenas 20 horas. Resolva logo.
José Antônio levantou-se entusiasmado.
— Tem razão. Irei agora mesmo.
Arrumou-se com capricho e saiu. Quinze minutos depois, estava em casa de
Luciana. Notou surpreendido o carro parado em frente da porta.
— Ela tem visitas, — pensou contrariado. — Voltarei outro dia.
Sentia-se ansioso. Podia ser que as visitas não se demorassem.
Baixou as cortinas do carro e resolveu esperar.
O tempo foi passando e nada da visita ir embora. Estava quase desistindo quando
viu a porta da sala abrir-se e o Dr. José Luiz sair abraçado a Luciana. Seu
coração deu um salto. Eles estavam sozinhos e abraçados. Amoça acompanhou-
o até o portão do jardim, e ele viu quando o visitante a beijou na face. Depois,
entrou no carro e afastou-se, enquanto
Luciana se recolhia.
O inesperado deixou-o angustiado e infeliz. Luciana, a mulher que amava e com
a qual pretendia se casar, estaria mantendo relações amorosas com o Dr. José
Luiz? O caso parecia-lhe mais sério, sabendo da amizade que, segundo Luciana,
unia as duas famílias.
Estaria a moça apaixonada pelo pai de sua melhor amiga? O Dr. José Luiz era homem bonito, elegante, rico e de aparência jovem, qualquer mulher poderia apaixonar-se por ele. Nervoso, ligou o carro e voltou para casa. Margarida
correu a seu encontro e observando-lhe o ar transtornado, perguntou-o:
— O que aconteceu? Parece que viu uma assombração.
— Estou decepcionado. Podemos estar enganados sobre Luciana. Ela pode não
ser aquela que pensamos.
— O que aconteceu?
José Antônio Contou a cena que presenciara e finalizou:
— Infelizmente ela deve estar apaixonada por ele. Estavam abraçados.
Por mais amizade, a intimidade sugeria algo além. Depois ele estava sem
a família. Por que iria procurá-la à noite e a sós?
— Eles não estavam sós. D. Egle deveria estar na casa.
— É verdade. Ela faz tudo que Luciana quer. Pode haver facilitado as coisas.
Margarida abanou a cabeça:
— Não D. Egle. Sabe o que penso? Você está com Ciúmes!
— Estou mesmo. Eles estavam abraçados.
— Não seja malicioso. Não julgue o que não conhece. Depois, eu não me
engano; além de D. Egle, sei que Luciana não se prestaria a esse papel. Namorar
um homem casado e ainda mais pai de sua melhor amiga! Já notou como ela
fala de Maria Helena? Se estivesse lhe roubando o marido, não agiria dessa
forma. Depois, confio em Luciana. É uma moça digna e sincera. Você está
enganado!
— Acredita mesmo?
— Tenho certeza. Vá lá amanhã e esclareça tudo. Verá que tenho razão.
— Não tenho o direito de intrometer-me em sua vida particular.
— Tem agora. Se a vai pedir em casamento, precisa saber o que ela sente. — Acha mesmo?
— Acho.
— E se você estiver enganada. E se ela estiver mesmo apaixonada por ele? —
Não creio. Mas se eu estiver enganada, sempre será melhor saber. A dúvida,
além de penosa, pode ser pior do que a verdade. Acalme seu coração. Para que
julgar o que não sabemos? Amanhã vá até lá e fale o que sente.
— Está certo. Tem razão. Irei logo cedo.
Apesar de lutar para acalmar-se, José Antônio não dormiu bem naquela noite.
Não desejava perder Luciana. Amava-a sinceramente. Sua alegria, sua beleza,
seu espírito lúcido, seus olhos brilhantes e seu sorriso leve, deram novo encanto à
sua vida, fazendo-o abdicar da sua liberdade. Era a primeira vez que pensara em
casamento, embora já estivesse perto dos trinta e cinco anos. Em vão tentava
convencer-se de que a cena que presenciara não denotava relacionamento
amoroso. Recordando-a, sentia o coração apertado e uma angústia que o fazia
remexer-se no leito sem conseguir adormecer.
Levantou-se cedo e Margarida vendo seu rosto tenso comentou:
— Pelo jeito, não dormiu bem.
— Tentei, não consegui.
— O ciúme dói. Vamos tomar café. Vai lá agora?
— Ainda é muito cedo. Vou esperar um pouco. Talvez ali pelas dez...
— Não precisa esperar tanto. Sei que elas levantam cedo. Às nove está bem. José
Antônio concordou, contudo o tempo para ele não passava. Às Oito ele já estava
no carro, disposto a sair. Margarida sorriu. Os apaixonados sempre são
impulsivos.
— Vá logo — aconselhou. Não agüento ver a sua ansiedade.
— É, eu vou, não dá mais para esperar.
Coração aos saltos, tocou a sineta em casa de Luciana. Foi a moça quem abriu e
vendo-o, seu rosto distendeu-se em alegre sorriso.
— Você! — disse. Que bom vê-lo! Entre.
Na sala, ele desculpou-se:
— Desculpe ter vindo tão cedo. Não é de bom-tom.
— Aconteceu alguma coisa? Margarida está bem ?
— Está. Não aconteceu nada... isto é, eu...
Egle apareceu na sala abraçando-o com carinho:
— Bom dia. Tudo bem?
— Sim. — disse ele tomando coragem. — Vim aqui porque não agüentava mais
esperar. Preciso falar com Luciana.
- Nesse caso, sente-se, fique à vontade. Vou cuidar do café na cozinha.
A sós com ela, José Antônio aproximou-se e tomando a mão de Luciana levou-a
aos lábios beijando-a várias vezes, depois, puxando-a para si, abraçou- a,
beijando-a nos lábios repetidas vezes.
Sentindo-se correspondido, não ocultou seu entusiasmo, dizendo-lhe aos ouvidos
com voz emocionada:
— Eu a amo, Luciana! Amo como nunca amei ninguém em minha vida!
Por favor, diga que me ama!
Luciana, sentindo grande emoção, respondeu:
— Sim. Eu também o amo! Você é o meu primeiro e único amor.
— Vim para pedir que se case comigo. Quer ser minha esposa?
— Sim.
Beijaram-se repetidas vezes. Depois, Luciana puxou o moço, fazendo-o sentar a
seu lado no sofá.
— Precisamos conversar. Há uma coisa que desejo contar-te.
José Antônio empalideceu. Temia a verdade.
— Nós nos amamos. Seja o que for que houver no passado, não vai mudar esse fato.
— Você é generoso. Mas não posso casar com você omitindo a verdade. Precisa conhecer nosso segredo.
Coração apertado, José Antônio esperou. Luciana contou toda história de sua
mãe, seu reencontro com o pai e seu relacionamento com a família
dele. Sentindo-se aliviado à medida que ouvia, José Antônio não escondia
sua alegria. Luciana finalizou:
— Devo dizer-lhe que nunca pedi, nem pedirei nada a meu pai. Não sou herdeira
de seus bens. Temos apenas esta casa. Sou moça pobre e sem nome de família, o
que não é seu caso.
— Não continue, peço. Eu a amo! Se me quiser, serei o homem mais feliz do
mundo. Só isso me importa.
Abraçou-a e beijou-a com carinho.
— Venha, pediu ela com os olhos brilhantes de alegria. —Vamos contar a vovó.
Egle chorou de alegria. E ali mesmo, sentados ao redor da mesa na cozinha,
saboreando seu delicioso café com bolo, eles fizeram planos para o futuro.
Em casa de Maria Helena, o ambiente não era o mesmo. Havia uma atmosfera
pesada. João Henrique mergulhara no trabalho, Maria Lúcia voltara a fechar-se
no quarto do qual encontrava desculpas para não sair, e Maria Helena tentava em
vão esconder sua tristeza, procurando ser a mesma de antes, sem ter a
espontaneidade e o mesmo brilho.
Entristecido, José Luiz não encontrava mais em casa o aconchego e a satisfação
de antes. O que teria acontecido? Algo havia mudado, mas o que?
Inconformado, tentou falar com a esposa. Ela porém negou que houvesse algo:
— As coisas mudaram por aqui. Maria Lúcia não toca mais, você anda quieta,
sem entusiasmo. João Henrique mal pára em casa.
— É impressão sua. Tudo está como sempre foi.
José Luiz abraçou-a com carinho:
— Não quero que seja como antigamente. Quero que seja como alguns meses
atrás. O que houve, não me ama mais?
— Amo — a voz dela tremia. — Amo a cada dia mais! José Luiz satisfeito,
beijou-a com ardor.
— Gosto de você ardente, apaixonada. É assim que me faz esquecer todas as
tristezas.
— Por que nunca fala delas?
— Para quê? São coisas sem remédio. Prefiro esquecer, mergulhar em seus
braços, viver!
— É verdade o que me diz? Ainda quer o meu amor?
— Claro! O que a faz pensar o Contrário?
— Nada. Às vezes penso que você preferia estar em outros braços.
Ele apertou-a de encontro ao peito.
— Não existe nenhuma mulher no mundo que eu desejo mais do que você. Por
que duvida?
— Não sei. Mas, se você me quer, vivamos esse momento de felicidade.
Maria Helena beijou-o apaixonadamente. Depois desse dia, ela resolveu reagir
ao ciúme e a dor que a atormentava. Se queria preservar a família e
o casamento, precisava tornar o lar alegre e acolhedor.
Procurou unir mais a família, tentou conversar com a filha. Maria
Lúcia esperava a visita de Ulisses com redobrada ansiedade. Porém, ele nunca
mais a procurara. Jarbas, ao contrário, tentara de todas as formas alegrá-
la, enviando-lhe flores, convidando-a a passeios, sem êxito. Quando ela
aceitava falar com ele, era para saber notícias de Ulisses, e o moço
delicadamente desviava o assunto.
— É ciúmes, — pensava ela com raiva. As raras vezes em que ele aparecera ao
lado de João Henrique, evitara falar-lhe a sós, e a moça, triste, não entendia sua
atitude depois do que lhe dissera. Maria Helena foi encontrá-la fechada no
quarto. Bateu chamando-a e quando ela abriu, percebeu o quanto ela mudara.
Não se arrumava mais, e ela observou que Maria Lúcia assemelhava-se ao que
era antes, descuidada e triste. Fingiu não perceber e foi dizendo:
— Maria Lúcia, esta casa anda triste e sem vida. Sinto que é hora de mudar. Por
isso, amanhã à noite, teremos um sarau. Desejo que toque também.
Amoça abanou a cabeça:
— Não quero. Você pode tocar, eu nem sei mais como se faz isso.
— Eu toco clássico, mas você conhece as canções em voga. João Henrique e seus amigos vão apreciar. Pensei convidar os Medeiros, os Cardosos, e até os
Souzas. Todos eles têm filhos na sua idade e de João Henrique. Vamos alegrar
nossa casa.
— Você nunca foi disso. Por que agora?
— Vamos ajudar João Henrique — mentiu ela. — Ele anda triste. Acho que
ainda não esqueceu aquela cantora. Gostaria que ele encontrasse alguma moça e
se apaixonasse. Preciso da sua ajuda.
— Isso não vai dar certo.
— Tente pelo menos. Não sente vontade de dançar? Você gostava tanto!
— Bobagem. Já passou. Eu gosto mesmo é de sossego.
— Então vamos fazer o sarau?
Ela deu de ombros.
— Tudo bem — disse por fim.
— Quando João Henrique chegar, falaremos com ele hoje ao jantar.
Você me ajuda?
— Fale você mesmo. Não tenho jeito para isso.
Maria Helena fingiu não perceber o ar desanimado da filha.
— Não se atrase para o jantar.
Maria Lúcia não respondeu. Quando a mãe se foi, fechou a porta e voltou a
sentar-se no chão, encostando na cama. Não tinha vontade de festa. Para quê?
Ela era uma moça feia, sem graça. Certamente Ulisses encontrara alguém mais
interessante e a esquecera. Ela não passava de uma boba, desajeitada, feia,
quem iria apaixonar-se? Lembrou-se de Jarbas. Ele a cortejava! Mas, Jarbas era
um moço bondoso, delicado, com certeza sentia pena, vendo-a tão desprezada.
Sua mãe que tocasse no sarau. Ela não se prestaria mais a isso. Pensou em
Luciana. Mentirosa! Como pudera crer em suas palavras? Enquanto a enganava,
buscava os braços de seu pai. Que horror!
O mundo não era um lugar confiável. As pessoas eram más, sem caráter. Seu próprio pai não hesitara em trazer a. própria amante dentro de casa. E se Ulisses
casasse com ela e fizesse o mesmo, como se sentiria? Um suor frio passou pelo
seu corpo. Pela primeira vez sentiu pena de sua mãe. Ela, tão segura de si, tão
cheia de regras, com tanta classe, tocando com maestria, fora tão desvalorizada!
De que lhe adiantara tanto esforço, tanta cultura? Isso não lhe dera felicidade.
Percebia o esforço que ela sempre fizera para ocultar o amor que sentia. A vida
inteira notara sua emoção dissimulada quando o pai aparecia, seu autocontrole. E
agora, depois de tudo, o pior.
Aquela paixão louca por uma jovem. Sim, porque só uma louca paixão
poderia explicar o que ele fizera. Maria Lúcia suspirou desalentada. Viver não
era bom. Não se sentia com coragem de dissimular convivendo socialmente com
as pessoas, guardando a amargura e a tristeza no coração. Ulisses a
esquecera! Ficou ali, remoendo seu desencanto, sem perceber o tempo passar.
Só saiu dessa apatia quando a criada bateu na porta insistentemente.
Levantou-se contrariada e a abriu.
— D. Maria Helena pede para senhorinha descer. Estão todos à mesa para o
jantar.
Maria Lúcia fechou a porta irritada e não respondeu. Não sentia fome, nem
vontade de ver o resto da família. Quando a criada tornou a chamar, minutos
depois, resolveu ir. Desceu e mal respondeu aos cumprimentos dos pais e do
irmão.
Maria Helena notou com desgosto que ela não mudara de roupa nem penteara os
cabelos. Apesar de irritada, não disse nada. Estava disposta a melhorar o
ambiente do lar. A filha estava abalada com o que acontecera. Era jovem, logo
esqueceria. Tentou animar o ambiente, mantendo uma conversação
agradável. José Luiz, interessado em cooperar, procurou conversar alegremente.
João Henrique animou-se. Falou de seus projetos, do saneamento que planejava
propor ao município, da melhoria do nível da cidade.Maria Lúcia, calada, ouvia
sem interessar-se. Maria Helena falou do sarau. Expôs suas idéias ao que João
Henrique respondeu:
— Faça como quiser. Eu não disponho de tempo para saraus. Até perdi o gosto
por eles. Falta gente inteligente, interessante, culta, nesse Rio de Janeiro.
— Não diga isso, meu filho — rebateu Maria Helena. —Conheço muita gente
interessante para convidar. Pessoas de minhas relações das quais nos afastamos
com o tempo, mas que são excelentes. Têm filhos jovens, como vocês. Desejo
  renovar nossas relações. Alegrar nossa casa!
— Como quiser, mamãe.
— Você se encarrega de convidar Ulisses e Jarbas. Os outros eu mesma o farei.
Ouvindo o nome de Ulisses, Maria Lúcia interessou-se.
— Farei isso. Jarbas virá com certeza. Ulisses não sei. Anda apaixonado.
— Verdade? Quem é ela?
— A filha mais jovem dos Albuquerques. Além de linda é muito rica.Estudou na
Europa. Ulisses está fascinado. Já fez o pedido. Deseja casar-se com ela a
qualquer custo.
Maria Lúcia sentiu que o ar lhe faltava. Empalideceu.
— O que foi? — perguntou José Luiz. — Não se sente bem?
— Estou com dor de estômago.
— Não comeu nada — disse Maria Helena.
— Não estou com fome.
Bebeu um copo de água. Esforçou-se para acalmar-se. Desejava saber mais.
Ulisses ia casar-se! Divertira-se com ela! Nunca a amara! José Luiz lançou-lhe
um olhar preocupado. Percebia claramente como a filha modificara-se. Falaria
a Maria Helena. O afastamento de Luciana não a beneficiara. Ao contrário.
Maria Helena vendo que Maria Lúcia estava mais corada, tentou retomar o
assunto:
— Nesse caso, convidaremos a moça também. Sempre nos relacionamos bem
com os Albuquerques. Conheço Marianinha desde criança.
— Está certo, mamãe. Se ela vier, ele virá com certeza.
— Estão noivos?
— Ainda não. Ele pediu, mas ela ainda não se decidiu.
— Aceitará certamente. Ulisses é um belo rapaz, de muito boa família.
— Nessas coisas do coração, é difícil prever.
— E você, não encontrou ninguém?
O rosto de João Henrique contraiu-se.
— Não, mãe. Não desejo entrar no rol dos imbecis. Amor, nunca mais.
— Você está muito amargo — disse José Luiz. — Não é fácil esquecer uma
desilusão de amor, mas o tempo é santo remédio. Um dia, quando
menos esperar, acontecerá novamente. A vida é cheia de surpresas.
Maria Helena empalideceu e tentou controlar-se. Ele por certo falava dos seus
sentimentos por Luciana. João Henrique franziu o cenho:
— Não comigo.
Vencendo a mágoa, Maria Helena considerou:
— Algum dia, deverá se casar. Constituir família. Não é bom viver só a vida
inteira.
— Quando eu achar que devo, escolherei para casar uma mulher honesta, de boa
família, rica, educada e viveremos em paz. A amizade é um belo sentimento.
Amor, nunca mais.
— Um casamento sem amor não o fará feliz — disse José Luiz, pensativo.
— Engana-se, meu pai. Um relacionamento sem amor será calmo, sem dor. —
Você é jovem e ainda não esqueceu a desilusão. O amor é a melhor coisa da
vida. Quando o encontramos, precisamos segurá-lo para sempre. O que você
sentiu, talvez fosse só paixão, não amor. Há muita diferença entre uma coisa e
outra.
— Já decidi. Sei o que quero. No momento, desejo dedicar-me totalmente ao
projeto. Estou entusiasmado.
— Ë muito bonito de sua parte. Sei o quanto ama nossa cidade, nossa gente.
Vamos dar tempo ao tempo.
Maria Lúcia sequer ouvia. Que loucura pensar que um moço como Ulisses
pudesse gostar dela! Agora sabia. Nem ele, nem ninguém jamais a amaria. Ela
era feia, sem graça e desajeitada. Deu graças a Deus quando o jantar terminou e
ia subir para o quarto quando Maria Helena sugeriu:
— Hoje estamos juntos, que tal um pouco de música? Maria Lúcia, gostaríamos
de ouvi-la. Quer tocar para nós?
O rosto da moça coloriu-se de intenso rubor, e Maria Helena sentiu um aperto no
coração.
— Não posso, mamãe. Não me Sinto bem — balbuciou ela. —Quero ir para o
quarto.
— Você está de novo fechada no quarto. Uma moça! Vamos lá, toque para nós.
Maria Lúcia apertou os lábios trêmulos e seus olhos encheram-se de lágrimas.
José Luiz interveio:
— Deixe-a. Se ela não está bem, fica para Outro dia.
— É melhor, mãe, — concordou João Henrique. — Eu preciso mesmo trabalhar
no projeto.
— Quando os dois se recolheram, José Luiz voltou ao assunto:
— Maria Lúcia piorou! Ela estava tão bem!
— Não sei a que vem essa atitude dela.
— Parece infeliz! Terá acontecido alguma coisa que a tenha desgostado?
— Não aconteceu nada.
— Talvez sinta falta de Luciana. Separá-las não foi uma boa idéia.
— Ela não pode viver dependente de Luciana a vida toda Precisa aprender a
viver sozinha.
— Temo que não consiga. Seria melhor pedir a Luciana que volte.
— Nunca! Sei cuidar bem de minha filha e não preciso de ninguém entre nós. —
Terei ouvido bem? Estará com ciúmes de Luciana? Pensa que Maria
Lúcia poderá gostar mais dela do que de você?
Maria Helena irritou-se.
Isso já passou. Agora não sinto mais ciúmes de ninguém. Só penso que eu posso resolver esse assunto.
— Sei que é inteligente e tem todo o direito como mãe de tomar certas
atitudes. Ás vezes, chego a pensar que tem alguma coisa contra Luciana. Se
não é ciúme, o que é?
— Nada — mentiu ela. — Só penso que posso cuidar de minha família
sem a interferência de estranhos.
— Luciana não é uma estranha. É uma amiga dedicada. Sempre pensei
que a apreciasse.
— Isso não vem ao caso. O que eu quero é cuidar da minha família do
meu jeito. Só isso.
José Luiz olhou-a e não respondeu. Começava a desconfiar que alguma
coisa acontecera e Luciana tinha razão ao pensar isso.
Teria Maria Helena descoberto a verdade? Saberia que Luciana era sua
filha? Várias vezes pensara em abrir-se com ela, agora que haviam se
entendido. Mas, sabia-a formal e preconceituosa em alguns aspectos. Temia
que ela, conhecendo a verdade, se recusasse a conviver com Luciana.
Agora, começava a pensar que talvez ela já houvesse descoberto tudo.
Seria isso? Teve vontade de perguntar, esclarecer. Hesitou. Logo agora que
estavam vivendo melhor, dizer-lhe que a desposara por dinheiro e posição e
conservara o amor de outra no coração todos aqueles anos, não seria fácil.
Poderia arruinar definitivamente seu casamento.
Isso ele não queria. Descobrira que a amava e desejava estar com ela. O
amor de Suzane transformara-se em linda recordação da juventude, apenas isso. Um sonho romântico que ele havia acalentado inutilmente e que o
impedira de ser feliz com a mulher com quem se casara por livre opção e com
a qual se dispusera a viver toda sua vida.

José Luiz tinha sede de viver, de ser feliz. A felicidade estava ali, com
Maria Helena que estava viva, de carne e osso, que o amava com paixão a ponto de despertar nele sentimentos novos, de alegria e de ternura. Queria
aproveitar todos os minutos dessa felicidade, beber da fonte da vida a todo
instante. Vivera anos de solidão isolado em um sonho impossível. Perdera
tempo demais. Agora, compreendera que a realidade podia ser melhor do que
o sonho e sentia-se inebriado. A solidão acabara. Amava os filhos, começava a
compreendê-los. Dizer a verdade agora, não seria atirar fora tudo isso? Maria
Helena era mulher orgulhosa.
Por outro lado, e se ela já soubesse o seu segredo? Sua atitude com
Luciana era injustificada. A não ser que...
Luciana dissera-lhe que Maria Lúcia ainda não estava preparada para
seguir por si mesma. E a prova disso era que a filha regredia a olhos vistos. Ao
jantar, parecera-lhe vê-la igual aos velhos tempos. O que fazer?
Iria procurar Luciana para conversar. Talvez D. Egle o aconselhasse como
proceder. Gostava dela, apreciava sua dignidade, seu equilíbrio. Não insistiu
com a esposa. Resolveu contemporizar. Pediu-lhe que tocasse, o que ela fez
de bom grado. Nutria esperanças de que ele esquecesse Luciana. Às vezes
perguntava se ele continuava se relacionando com ela. Sentia-se tentada a voltar lá, às escondidas, saber se eles ainda estavam juntos. Contudo, não
ousava. Se presenciasse a mesma cena de antes, o que faria? Teria forças
para separar-se dele definitivamente?
Não. Isso não. Havia os filhos, a sociedade e seu amor por ele. Apesar
de tudo, queria estar a seu lado.
José Luiz notou seu nervosismo, sua palidez.
Preocupado, na tarde do dia seguinte, dirigiu-se à casa de Luciana.
Recebido com carinho, confidenciou sua tristeza, suas desconfianças.
As duas o ouviram atentamente. Ao final, Luciana considerou:
— Eu sabia que havia algo. Amudança de D. Maria Helena conosco foi
visível. Terá mesmo descoberto a verdade?
— Pode ser — considerou Egle, pensativa. — Conversei muito com
Maria Helena, em várias oportunidades. Ela é formal, educada com rigor,
exigente quanto a amizades, mas, por outro lado, demonstrou que apreciava
Luciana, que a estimava sinceramente, a ponto de aceitar suas opiniões e seu
relacionamento íntimo com a família. Não creio que apenas esse preconceito,
por um deslize anterior a seu casamento, pudesse modificá-la tanto. Ela possui
agudo senso de justiça. É uma verdadeira dama. Sua classe é inata. Para
proceder assim, deve ter havido algo pior. Algo que nos rebaixe a seus olhos,
fazendo-a desejar afastar-nos do seu convívio.
— Isso não pode ser, vovó. Não aconteceu nada que pudesse dar
margem a nenhum mal-entendido. A última vez que estive lá, nosso
relacionamento foi o de sempre.
José Luiz suspirou e disse:
— Não sei o que foi, mas algo realmente aconteceu. Não sei que atitude
tomar. — Se eu pudesse sugerir algo, diria que a verdade sempre será
adequada. Talvez tenha chegado a hora de abrir seu coração e dizer-lhe tudo.
— Já pensei nisso. Porém, temo não ser compreendido, O que tenho a
dizer-lhe não é nada lisonjeiro para mim. Receio que ela não me perdoe. Logo agora... — parou indeciso.

— Que você descobriu que a ama! — completou Luciana com os olhos
brilhantes.
Ele baixou a cabeça envergonhado. Egle levantou-se e abraçou-o
comovida:
— Até que enfim! Eu sempre soube que você a amava. Ela é uma mulher
forte, com encantos demais, muito ligada a você, para que saísse ileso desse
relacionamento. Se não estivesse preso por um sonho de amor impossível,
teria percebido há mais tempo.
— Ainda amo Suzane!
— Eu sei — concordou Luciana — mas Maria Helena está aqui, e você a
ama também. Fico feliz por vocês. O amor é a grande força da vida.
— É verdade. Você tinha razão quando disse que a vida me deu uma
família maravilhosa e que era um homem feliz. Eu sou! Sei que amo meus
filhos, Maria Helena, vocês, Suzane! E esse amor enche meu coração de
alegria. Não quero perdê-la de novo.
— Não perderá. Verá. Tudo vai se esclarecer.
A sineta da porta soou e Luciana foi abrir. Voltou instantes depois com
José António. José Luiz surpreendeu-se. Conhecia-o e a sua família.
Cumprimentaram-se.
— Foi bom encontrá-lo aqui, dr. José Luiz. Pensava procurá-lo um dia
destes. Temos um assunto urgente a conversar.
— Podemos marcar uma hora em meu escritório.
— O assunto é importante, porém, pessoal. Gostaria de falar agora.
— Pois não. Estou às ordens.
— Desejo pedir a mão de sua filha Luciana em casamento. Tenho o
consentimento dela e a aprovação de D. Egle, mas gostaria de sua
autorização.
Apanhado de surpresa, José Luiz não soube o que dizer. Seus olhos
foram do rosto corado de Luciana ao rosto emocionado de Egle.
— Conhece nossa família, pode tomar informações pessoais se julgar
conveniente. Garanto que posso oferecer a Luciana muito amor e boa posição
social. — O que me diz, Luciana?
— Amo José António, pai. Nos compreendemos. Desejo casar-me com ele. — Nesse caso, sinto-me honrado em aceitar seu pedido. Quais são os
planos?
- Sentem-se novamente e, antes dos planos, vamos comemorar. Tenho
um vinho especial que abrirei agora. Depois falaremos - propôs Egle com
satisfação.
Luciana abraçou o pai comovida e José Antônio também. José Luiz
estava embargado de emoção. Luciana merecia a felicidade. Sua escolha fora
acertada. Sentiu-se bem ali, no aconchego amoroso daquele lar. E, ao
despedir-se uma hora depois, pediu a Luciana:
— Filha, reze por mim. Peça a sua mãe que nos ajude. Gostaria que
também Maria Helena, Maria Lúcia e João Henrique, pudessem estar conosco
e usufruir a felicidade que temos aqui.
Amoça beijou-o na face com carinho.
- Por certo. Eles são minha família também. Confio em Deus e sei que a
verdade aparecerá. Tenho vontade de abraçar Maria Helena, de ajudá-la. Tudo dará certo, verá.
Quando José Luiz saiu, sentia-se mais calmo. Confiava que tudo iria
melhorar.
Sentados na sala, mãos enlaçadas, Luciana comentou:
- Você foi corajoso. Não esperava que fosse formalizar o pedido.
- Acha que eu perderia essa oportunidade? Desejo casar o quanto
antes. Agora já podemos marcar a data.
- Preciso de tempo para comprar o enxoval.
— Um mês será mais do que suficiente.
- É pouco. Pelo menos três ou quatro.
- Vai ser difícil esperar.
- O tempo passa rápido.
Luciana calou-se e baixou a cabeça pensativa.
— O que foi? Não está feliz com meu pedido?
— Claro! Estou muito contente.
- Pareceu-me triste. Algo a aborrece?
- É verdade. Estou tão feliz! Gostaria que todos os que amo se
sentissem felizes como eu. Gosto de Maria Lúcia. Ela é tão meiga, tão
delicada! Estava em fase de recuperação. Eu sabia que ela não estava pronta
ainda para enfrentar a vida sozinha! Se ao menos eu houvesse tido mais algum
tempo!
- Vá vê-la! Tente alguma coisa. Você é feiticeira. Consegue maravilhas
com as pessoas.
- D. Maria Helena mudou conosco. Não sei o que houve. Mas algo me diz
que aconteceu alguma coisa que a afastou de nós. Percebi claramente que ela
de repente mudou e nos impediu de ver Maria Lúcia.
- Será ciúme? Certas mães são ciumentas dos filhos.
Luciana abanou a cabeça.
- Não creio. Ela é inteligente. Sempre nos relacionamos muito bem.
- Por que não a procura e tenta esclarecer o que houve?
- Já tentei. Ela não deseja nos ver ou falar. Tem se esquivado.
- É... você pode ter razão. Teria descoberto o segredo do marido? Seu
relacionamento com sua mãe?
- Pode ser. Papai teme que isso tenha acontecido. Julga-a preconceituosa.
Por que ele não se entende com ela a respeito?
- Tem medo. Maria Lúcia não está bem. Gostaria de vê
la.
- Talvez possamos dar um jeito nisso.
- O que pretende fazer?
- Deixe comigo! Sabe se o dr. José Luiz e O. Maria Helena costumam
freqüentar saraus?
- Sei que freqüentam a casa dos Albuquerques, esporadicamente,
outros. O que vai fazer?
- Falar com Margarida. Ela nos ajudará nisso.
- O que está tramando? -
- Vamos tentar descobrir alguma coisa. Ela é muito bem relacionada
com eles e conhece Maria Helena. Veremos.
- Faria isso por mim?
- O que eu não faria para vê-la feliz?

José Antônio beijou delicadamente a mão que detinha na sua.
- Você me compreende. Eu o amo muito - disse Luciana com suavidade.
- Sei de uma pessoa que poderia nos ajudar.
- Quem?
— Jarbas. Um rapaz amigo de João Henrique. Ë ótima pessoa, e além
de tudo, sei que está apaixonado por Maria Lúcia. Faria tudo para ajudá-la.
— É uma boa idéia. Convide-o a vir aqui e falaremos com ele.
— Como não pensei nisso antes? Certamente será um precioso aliado.
Hoje mesmo entrarei em contato com ele.
Naquela mesma tarde, Luciana enviou um portador à casa de Jarbas
convidando-o ao chá na tarde do dia seguinte. Jarbas nunca havia ido à casa
de Luciana, mas aceitou o convite de bom grado. Nunca pudera entender a
causa do afastamento da moça. Apreciava-a e percebia o quanto ela havia
ajudado Maria Lúcia.
Chegou pontualmente às 17:30. José Antônio o esperava na sala com os
demais. Cumprimentaram-se. Falaram do próximo casamento de Luciana e
depois, como não podia deixar de ser, sobre o que os preocupava.
Infelizmente Jarbas não sabia nada sobre o assunto. Contudo
esclareceu:
— Concordo que deve ter havido algo. Notei que D. Maria Helena,
naqueles dias, andava adoentada, abatida. E as poucas vezes que referiu-se a
você, foi com mágoa, amargura, eu diria até com raiva. Mas com Maria Lúcia,
foi pior. Ela estava muito amargurada. Quando perguntei por você, disse que
nunca mais queria vê-la. Que você não era sua amiga. Era fingida, mentirosa.
— Ela disse isso? — perguntou Luciana dolorosamente surpreendida. —
Não pode ser! Nós nunca tivemos a mais ligeira briga!
— Posso ser sincero? Não vai ofender-se?
— Claro que pode. Por favor, fale.
— Não sei se devo... não quero criar problemas. Talvez esteja sendo
ousado...
— Fale logo. Não vê que estou angustiada? Seja franco. O que
percebeu?
— Você sabe que gosto dela. Eu diria mesmo que a amo. Aquele seu ar
ingênuo, seu sorriso lindo, seu rubor, tudo me encanta. Se ela me quisesse, eu
seria o homem mais feliz do mundo. No entanto, ela não me quer, gosta do
Ulisses e ele...
— Fale — insisti... Luciana.
- Ele estava gostando de você. Ele mesmo me disse. Estava
apaixonado por você. Maria Lúcia sentia ciúmes.
- Sei disso. Eu mesma tentei mostrar-lhe o quanto estava enganada,
Ulisses não ama ninguém e não merece que ela goste dele.
- Sou suspeito para opinar. Eu gosto dela, e ele é meu amigo. Porém,
reconheço que ele não é digno de confiança.
- Não é mesmo.
- Às vezes, penso que isso tudo tem o dedo dele. Surpreendi-o falando
de você com raiva para Maria Lúcia.
- Verdade?
-
Ele tinha sérios motivos para ter raiva de você --considerou José
Antônio. -- Foi escorraçado.
Jarbas surpreendeu-se:

- É mesmo? Nunca me contou isso.
Pois foi graças a ele que nos conhecemos. De algum modo devemos-
lhe isso.
Depois de conhecer o episódio, Jarbas concluiu:
- Então foi ele! Aprontou alguma coisa. Conheço-o. É extremamente
vingativo.
- O que teria feito? - indagou Egle, preocupada.
- Tentarei descobrir através de Maria Lúcia. Anda arredia de novo.
Tenho ido lá com João Henrique, mas está sempre trancada no quarto.
- Pobre Maria Lúcia -- lamentou Luciana. -- O que lhe terão feito?
- Hei de descobrir.
- Contamos com você para nos ajudar, -- disse Luciana --nós a amamos
muito, ela merece a felicidade.
- Por certo. Farei o que puder. Tentarei aproximar-me dela. Veremos.
- Obrigada, Jarbas. Sabia que nos ajudaria.
- Desejo que ela seja feliz ainda que não seja comigo. Gosto de vê-la rir,
tocar, adoro seu jeito manso de falar mais com os olhos do que com os lábios.
Farei tudo para devolver-lhe a alegria.
- Vamos ao chá - sugeriu Egle. - Os bolinhos vão esfriar.
A partir daquele dia, Jarbas procurou pretextos para ver Maria Lúcia.
Aproximou-se mais de João Henrique, o que lhe foi fácil. Admirava o amigo e
aprovava seus projetos. Interessava-se muito por eles e várias vezes
oferecera-se para cooperar. Estudaram juntos, formaram-se na mesma
profissão, eram amigos. Desde o principio, tivera intenção de juntar-se a ele em seus projetos de sanidade e melhoria da qualidade de vida da população.
Contudo, vendo-se preterido por Maria Lúcia, resolvera afastar-se para
tentar esquecê-la. Arrependia-se disso. Retomou os antigos interesses com
redobrado entusiasmo, e João Henrique sentindo-se compreendido e apoiado
pelo amigo, a cada dia encorajava-se mais. Tornaram-se inseparáveis. José
Luiz aprovava esses projetos e estimulava-os a continuar. Por alimentar idéias
novas em relação a maioria dos engenheiros, João Henrique não se adaptava
com facilidade em um emprego. Compreendendo isso, José Luiz cooperou
para que os dois moços montassem seu próprio escritório, oferecendo-lhes
empréstimo que pagariam quando pudessem.
Entusiasmados, os dois não se largavam. Essa situação permitiu que
Jarbas estivesse constantemente em casa de Maria Lúcia. Ela continuava
arredia. Havia duas semanas que estivera com Luciana e ainda não conseguira
falar-lhe.
Interessada nos projetos do filho, Maria Helena convidou-o a almoçar no
domingo e Jarbas exultou. Certamente veria Maria Lúcia.
Foi com tristeza que constatou o quanto a moça havia mudado. Apática,
apagada, calada, indiferente, sequer parecia a garota pela qual ele se
apaixonara. Tinha a certeza de que acontecera alguma coisa, mas o que?
Estava disposto a descobrir.
Após o almoço, antes que Maria Lúcia se afastasse, aproximou-se dela.
- Como vai, Maria Lúcia?
- Bem.
Gostaria de dar uma volta pelo jardim com você. Precisamos conversar.
- Sobre o que?
- Sobre muitas coisas. Faz tempo que não nos vemos. Tenho novidades

para contar.
— Desculpe, mas vou para o meu quarto.
Ele segurou-a pelo braço.
— Não vai não. Desta vez não a deixarei escapar.
— Largue o meu braço.
— Então venha comigo.
— Minha mãe está olhando.
— Não quer que ela intervenha, quer?
Ela sacudiu os ombros:
— Não me importa — disse desafiadora.
— Pois a mim, sim. Vou falar com você hoje de qualquer forma. Estou
decidido.
Maria Lúcia olhou-o curiosa. Jarbas sempre tão delicado, agora parecia-
lhe diferente. O que teria acontecido?
— Está bem — disse — vamos ao jardim.
— Assim é melhor.
Foram andando em silêncio até que Jarbas parou:
— Sentemo-nos aqui.
Ela obedeceu.
— O que quer? — perguntou.
— Falar com você. Esclarecer algumas coisas que não estão bem.
Maria Lúcia não respondeu, ele continuou.
— Eu a amo, Maria Lúcia. Ouviu? Eu estou apaixonado por você!
Ela olhou-o assustada:
— Por que me olha assim? Sempre demonstrei meu amor. Ë verdade
que você nunca me encorajou. E ao dizer-lhe isto, não espero que me
corresponda. Só quero deixar claro que a amo de todo o coração e só desejo a
sua felicidade. Se eu a visse feliz, alegre, como era antes, nunca lhe falaria dos
meus sentimentos. Mas, vendo-a triste e só, destruindo a sua juventude, não
me conformo em cruzar os braços. Eu a amo tanto, que a sua felicidade é a
coisa mais importante para mim, mesmo que você nunca venha a gostar de
mim. Havia tanta firmeza, tanta emoção nas palavras de Jarbas, tanto
sentimento em seus olhos que Maria Lúcia não resistiu. Desabou a chorar. Um
pranto dorido, refletindo tanta dor que Jarbas a abraçou emocionado. Com a
cabeça encostada em seu peito, ela não conseguia reter o pranto.
— Chore, — disse Jarbas — alivie seu coração. Lave sua
Movido por um forte sentimento afetivo, ele alisou-lhe os cabelos
carinhosamente. Depois de alguns minutos, ela parou de chorar e tentou se
recompor.
— Desculpe — disse. — Não esperava ouvir o que me disse.
— Sente-se melhor?
— Tentei me conter. Desculpe.
— Por que se justifica? Todos nós precisamos desabafar de vez em
quando. Sente-se melhor?
— Sim.
— Agora, conte-me tudo.
— Contar o que? Não há nada para contar.
— Não minta. Sei que aconteceu alguma coisa muito forte que a fez
muito infeliz. O que foi?

— Bobagem. Não houve nada.
— Hoje eu lhe abri meu coração. Dei-lhe a maior prova de confiança que
um homem pode dar. Mesmo sabendo que não me ama, disse-lhe a verdade.
Por que não confia em mim?
— As pessoas mentem com facilidade. Você diz que me ama, eu não
acredito.
— Por quê?
— Porque não sou bonita, atraente.
— Acha que menti?
— Não é isso. Penso que está enganado. O que sente por mim é pena.
Eu não preciso da piedade de ninguém.
— Você só enxerga o que quer ver. Quem se engana évocê.
Os dois ficaram calados alguns minutos. De repente, Jarbas num gesto
rápido, tirou o pente que prendia os cabelos dela e os mesmo se soltaram.
— Por que fez isso?
— Porque seus cabelos são lindos e eu adoro vê-los soltos.
Antes que ela pudesse replicar, ele abraçou-a beijando-lhe os lábios
ardentemente.
— Eu a amo, entendeu? Eu quero você! Será que não sente nada?
Ruborizada, Maria Lúcia sentia o coração bater forte e a respiração difícil.
A surpresa a emudeceu. Ele esforçou-se para conter-se. Permaneceu em
silêncio novamente.
- Não deveria ter feito isso!
- Você está viva! É uma mulher. Queria que sentisse isso. Por que teima
em se destruir? Que prazer encontra em se depreciar? Senti que você gostou.
Por que não confessa isso?
- Sinto-me confusa.
- Não quis confundi-la. Eu também perdi a cabeça.
Novamente o silêncio.
- Estive com Luciana.
Silêncio.
- Não quer saber como ela está?
- Não.
- Ela quer ver você. Sente saudades.
- É mentira. Não quero ver aquela traidora nunca mais.
- O que foi que ela fez?
— Não quero falar nisso. Ela nunca foi minha amiga.
- Não é verdade. Ela se preocupa com o seu bem-estar. Sofre por não poder vê-la. Não sabe o que aconteceu.
- Mudemos de assunto, por favor.
- Ela vai se casar.
- Casar?
- Sim. Ficou noiva do dr. José Antônio Fontes. Você o conhece?
- Irmão de Margarida Fontes.
- Esse mesmo. Eles estão muito felizes. Amam-se muito.
- Eu pensei que... que ela nunca se casasse...
- Por que não? É uma bela moça. O Ulisses andou apaixonado por ela.
Levou um fora tão declarado que a odeia por isso.
contou.
- Ulisses a odeia?

- Sim. Vou contar-lhe uma história que o dr. Fontes me
Jarbas deliberadamente relatou o que sabia. Maria Lúcia estava muito
surpreendida. Se sua mãe não houvesse constatado que seu pai a visitava na
calada da noite, pensaria que Ulisses teria mentido.
- Será mesmo? Ulisses teria sido capaz de tal baixeza?
- O dr. Fontes é um cavalheiro. Não posso duvidar. Além do mais, foi
assim que eles se conheceram. Foi ele quem a socorreu.
- Que patife!
— Eu diria que quando a paixão comanda, nem sempre conseguimos nos dominar.
— Não a tal ponto. Você não seria capaz disso.
- Você percebeu meus sentimentos, e o meu beijo não a agrediu.
Obrigado por me dizer.
Maria Lúcia corou envergonhada.
- Você me confunde.
- Digo a verdade. Luciana gosta muito de você e sofre sua ausência.
Maria Lúcia abanou a cabeça.
— Não acredito. Prefiro não falar sobre ela.
— Ela gostaria muito de vê-la, conversar com você. Por que não a ouve?
Por que não a deixa esclarecer os fatos, se é que há alguma coisa?
— Não. Não quero vê-la nunca mais. Peça-lhe para deixar-me em paz.
Jarbas olhou-a com amor. Naqueles instantes, esquecida de sua rigidez,
cabelos soltos, rosto corado, olhos brilhantes, ela voltara a ser a moça bonita
que ele tanto amava.
— Você está linda - disse com naturalidade.
Ela baixou a cabeça e Jarbas tomou-lhe a mão com carinho:
— Prometa que não fugirá mais de mim. Se não pode me amar, pelo
menos pode ser minha amiga.
— Tentarei — balbuciou ela.
— Tenho vindo aqui muitas vezes e nunca a vejo. Não me aceita nem
como amigo?
Havia tanto carinho na voz dele que Maria Lúcia esboçou um sorriso.
- Adoro seu sorriso! Você foi feita para sorrir. Se dependesse de mim, estaria sempre assim.
Levou a mão dela aos lábios com ternura. Maria Lúcia não retirou a mão.
Sentiu-se bem ao lado dele. Lembrou que Jarbas nunca a magoara. Nem a ela
nem a ninguém. João Henrique o respeitava e o fizera seu sócio. Poderia
confiar nele, em sua amizade? Decepcionada e em meio a solidão em que se
encontrava, era bom saber que alguém a amava.
— Você é um amigo — disse ela por fim.
— Não se fechará no quarto quando eu chegar?
Ela abanou a cabeça negativamente.
— Não fico no quarto por sua causa. Gosto de pensar.
Ele passou a mão sobre a testa dela, acariciando-a levemente.
— Vive muito só. Ao invés de pensar sozinha, fique comigo. Faça-me
companhia. Falaremos, teremos nossos assuntos, nosso segredos. Promete?
— Está bem.
- Vamos conversar mais um pouco. Está uma tarde tão agradável!
Com satisfação, Jarbas procurou interessá-la em outros assuntos.
Na sala, João Henrique na soleira, vendo os pais sentados conversando,
perguntou:
— Viram o Jarbas?
— Está tentando conversar com Maria Lúcia. Graças a ele, ela ainda não
se fechou no quarto — disse Maria Helena. — Quer um café?
— Quero.
João Henrique apanhou a xícara que ela lhe ofereceu e sentou-se em
uma poltrona.
— Tem tido notícias de Luciana? — perguntou ele de repente.
José Luiz olhou-o interessado. Apanhada de surpresa, Maria Helena não
conteve o ar de desagrado. Por um instante, empalideceu, mas controlou-se
rapidamente.
— Por que pergunta? — disse com voz fria.
— Às vezes me pergunto porque ela nos esqueceu. Parecia tão nossa
amiga!
— Você a apreciava — disse José Luiz.
— Claro. É pessoa lúcida e equilibrada. Sempre a admirei.
— As aparências enganam! — retrucou Maria Helena, irritada. Não podia
suportar que seu filho a elogiasse!
— Por que diz isso? Luciana sempre me pareceu leal e dedicada.
— Se fosse assim, não nos teria esquecido — disfarçou ela.
— Mas, ela se foi e não vejo porque agora falarmos nela.
— É que Jarbas esteve com ela.
Maria Helena estremeceu.
— Disse que ela vai se casar.
— Casar?
— Sim. Com o dr. Fontes.
— Irmão de Margarida?
— Esse mesmo. Conheceram-se, apaixonaram-se e estão noivos.
Pretendem casar-se brevemente.
Maria Helena fixou o marido curiosa. Teriam rompido? Ele pareceu-lhe
calmo e satisfeito. Era surpreendente! Seu coração bateu forte. Então ele não a
amava? Teria sido apenas uma aventura? Era comum nos homens de meia-
idade. José Luiz observava-a em silêncio. A atitude de Maria Helena dava-lhe a
certeza de que algo acontecera mesmo, forçando-a a afastar-se de Luciana.
Saberia a verdade?
João Henrique tomou seu café, colocou a xícara sobre a mesa.
— Formam um belo par. — disse José Luiz. — Serão felizes, por certo.
Ele disfarça — pensou Maria Helena. Mas a satisfação com a qual ele
dissera essas palavras intrigava-a. Não teria ciúmes?
— Pode ser — retrucou João Henrique — se durar.
— Quando há afinidade e amor, é maravilhoso — considerou José Luiz.
— Você está cético. É natural. A desilusão dói. Mas, sempre será melhor do
que o engano. Para haver felicidade é preciso que ambos desejem a mesma
coisa, ainda que sejam duas pessoas diferentes.
— Tem razão. Quando só um ama, sempre dá errado —concluiu ele com
amargura.
— Se está falando de Antonieta, ainda penso que ela o amava também.
Ele fez um gesto brusco.
— Não creio.
— Amava sim. Tanto que quase abandonou tudo por sua causa.
— Quase, disse bem. Naquele tempo, eu teria deixado tudo
— Não sei se isso teria sido melhor ou pior. O que penso éque teria
acabado cedo ou tarde. O artista tem no palco sua maior paixão. Se ela o
abandonasse por sua causa se tornaria muito infeliz. Você não suportaria.
— Seja como for, acabou. Ela não representa mais nada para mim.
Agora, estou imunizado. Nenhuma mulher vai me fazer sofrer mais.
José Luiz balançou a cabeça.
— Você diz que a esqueceu, mas conserva o ressentimento no coração.
Precisa livrar-se dele.
— Está enganado, pai. Compreendo que ela amasse mais o teatro do
que a mim. Não guardo rancor. Mas não quero passar tudo de novo. Nenhuma
mulher me fará de joguete.
— Amar não é isso. Amor acontece. Ë espontâneo e enche nossa vida
de alegria, de razão para viver, de plenitude. Ë um sentimento que, quando
recíproco, nos leva a felicidade. Não é uma guerra onde cada um precisa
dominar o outro. E para merecêlo, há que correr o risco. Como pode encontrar
a felicidade sem tentar? Fechando o coração aos sentimentos mais
importantes da vida?
— Não sou um romântico como você. Quando achar oportuno, procuro
uma esposa culta, agradável, bonita, prendada a quem respeite e estime. Por
enquanto, casamento me dá náuseas.
— Isso também passará. Tudo passa a seu tempo. E, quando
acordamos, acabamos por lamentar o tempo perdido.
— Você é um sonhador.
— Fui. E por causa disso, desperdicei os melhores anos de minha vida.
Agora, penso diferente. A felicidade, nós a fazemos. Sempre está ao alcance
da mão. ~ só querer.
— Você fala como se ela dependesse de nós!
— Só depende.
— Não creio. Somos joguetes do destino. Ninguém sabe o dia de
amanhã.
— Isso, meu filho, é acreditar que a vida seja desordenada e caprichosa.
Não é o que podemos perceber olhando a natureza.
— Vivemos em um mundo misterioso, do qual na realidade sabemos
muito pouco. Mas isso, não significa que possamos comandá-lo.
— Tem razão quanto a isso. Conhecemos muito pouco, e por mais que
desejemos dominá-lo, manipulá-lo, não conseguimos. A vida é incontrolável!
Mas, a nossa felicidade não depende de conhecer o mundo ou de dominá-lo.
Nossa felicidade depende da forma como olhamos a vida, de como aceitamos
os nossos limites e do bom senso para avaliar o bem que já temos.
Escolhemos a forma que desejamos interpretar o que nos acontece e
geralmente, pressionados pelas ilusões, pelo orgulho, nos tornamos cegos aos
bens que possuímos e desejamos coisas discutíveis, sem saber se elas, uma
vez conquistadas, nos dariam felicidade. Perdemos muito tempo correndo atrás
das ilusões criadas pela nossa imaginação, e nos esquecemos de desfrutar e
viver situações, momentos reais que nos colocariam em estado de felicidade.
Maria Helena ouvia-o surpreendida. A que ilusões se referia? Seria à sua
paixão por Luciana? João Henrique deu de ombros:

— Você está falando a mesma coisa que eu. O amor é ilusão. O bom
senso é que me faz pensar em casar, se eu o fizer algum dia , com a pessoa
certa onde o amor não apareça, só o respeito e a amizade.
— Esses sentimentos são importantes, porém, se não houver o
encantamento do amor, perderá o sabor. A felicidade é saborosa, precisa
satisfazer o coração.
— Não acredito em amor. O que há é interesse, conveniência, nada
mais. José Luiz sorriu:
— Vamos dar tempo ao tempo. A vida guarda surpresas que modificam
nossa maneira de ver.
— Jarbas está demorando.
— Deixe-o com Maria Lúcia. Será bom para ela — pediu Maria Helena.
— Ela não anda muito bem.
— Você notou.
— Está arredia como antigamente. Parece uma ostra dentro da casca —
considerou João Henrique.
Maria Helena suspirou:
— Por isso não quero que chame Jarbas. Está conseguindo entretê-la.
João Henrique sorriu levemente:
— Às vezes penso que ele anda interessado nela.
— É?! — fez Maria Helena. — Seria muito bom se ela correspondesse.
Mas ela não me parece o tipo de moça que se apaixone. É muito fria.
— Eu não diria isso — considerou José Luiz — Ela é dissimulada, não
fria. — Por que acha isso?
— Tenho-a observado, quando toca, dança ou sorri.
— Isso era antes. Agora anda diferente.
— Maria Helena, o que aconteceu? Por que ela mudou tanto? Seria por
causa de Luciana?
Maria Helena estremeceu. Controlou-se para não mostrar emoção.
Respondeu com voz fria:
— Não creio. O mal é que Maria Lúcia não é igual as outras moças.
Nunca fala o que sente. Sempre fechada.
— Não adianta. Ela não me ouve. Só responde o necessário e eu preciso
arrancar as palavras. Ela é difícil mesmo.
— Houve tempo em que ela estava tão bem. Parecia tão feliz! —
considerou ele.
— É mesmo, papai — aduziu João Henrique. — Chegou a tornar-se
encantadora. Pensando bem, vocês têm razão. O que mudou? Ela me parece
tão triste! Como uma sombra do que foi. Teria sido alguma desilusão amorosa?
— Não creio — disse Maria Helena — Ela nunca interessou-se por
ninguém.
— Nunca se sabe o que vai no coração de uma mulher —disse José Luiz.
— A presença de Luciana fez-lhe bem. Pena que ela nos tenha esquecido.
— Ainda penso que deveríamos procurá-la. Convidá-la para vir em casa
— sugeriu José Luiz.
— Isso não. Nunca hei de correr atrás das pessoas. Se ela esqueceu-se
de nós, não a procuraremos.
José Luiz ia retrucar, porém calou-se vendo Jarbas e Maria Lúcia
aparecerem na soleira. Olhou a filha e percebeu que estava menos tensa.
Haveria esperança para ela?
Quando Jarbas saiu, ele estava certo de que algo desagradável
acontecera, afastando Luciana daquela casa.
A noite, Jarbas relatou a Luciana e José Antônio sua conversa com Maria
Lúcia. Quando acabou, Luciana não se conteve:
— Eu sabia que havia algo!
— Ela surpreendeu-se muito com a notícia do seu noivado. A princípio
chegou a duvidar.
— Jarbas, você é realmente nosso amigo e está se esforçando para nos
ajudar. Por isso, devo ser honesta com você e contar-lhe nosso segredo.
— Segredo?
— Sim. Há um segredo em nossas vidas, unindo nossas famílias.
Enquanto Egle preparava o chá, Luciana sentada no sofá,
tendo a mão de José Antônio entre as suas, contou a Jarbas a
história do seu nascimento. O moço ouviu-a com respeito e admiração e ao final não se conteve:
— Então, vocês são irmãs!
— Somos. Eu aproximei-me dela a pedido do meu pai para ajudá-la.
— As aulas de música foram pretexto.
— Isso! Sabe como O. Maria Helena é austera. Se soubesse a verdade,
jamais me permitiria freqüentar-lhe a casa. Depois de tudo que aconteceu, fico
me perguntando: terá ela descoberto a verdade? Será esta a razão da sua
repulsa por mim?
Jarbas meneou a cabeça pensativo.
— Não sei. Se ela houvesse descoberto tudo, não seria mais natural que
reagisse, falasse com você, com o dr. José Luiz, enfim, procurasse uma
explicação?
— Não creio. O. Maria Helena é sempre muito reservada. Agora, depois
do que me contou, só pode ter sido isso. Ela descobriu tudo e me afastou de
sua casa.
— Certo. Suponhamos que isso tenha acontecido. Mas e Maria Lúcia,
por que estaria contra você?
— Não sei o que lhe disseram. Ela é muito sensível e não estava ainda
bem o bastante para poder discernir. Sentiu-se enganada e magoada.
— Tenho uma idéia — disse José Antônio — na semana que vem, há o
sarau dos Albuquerques e D. Maria Helena costuma freqüentá-lo com o
marido. Poderia interessar Maria Lúcia e acompanhá-los?
— Certamente. Posso tentar. Ela anda muito isolada, mas insistirei. João Henrique disse-me que D. Maria Helena aprovou minha proximidade com Maria
Lúcia. Tenho bom pretexto. O que pensa fazer?
— Minha irmã costuma freqüentar os Albuquerques. Talvez possamos ir
com ela.
— Eu?
— Sim, Luciana. Afinal preciso apresentá-la aos amigos.
— Será embaraçoso. D. Maria Helena não vai gostar.
— Ë educada. Não se atreverá a demonstrar isso. Será uma boa
oportunidade para falar com Maria Lúcia e tentar desfazer esse mal-entendido.
— Não gostaria de forçar uma situação. Não quero prejudicar o relacionamento de meu pai com a família. Vamos esperar um pouco mais.
Maria Lúcia, depois de despedir-se de Jarbas, foi para o quarto. Sentia-se
confusa e emocionada. A confissão dele a sensibilizara, mas principalmente o
beijo de amor que lhe dera, fazia seu coração bater mais depressa. Nunca
ninguém a beijara daquela forma. Os beijos de Ulisses haviam sido tão
excitantes na época, agora, diante da sensação tão ardente e nova que sentira,
pareciam-lhe frios e distantes.
Seria ela tão sem pudor a ponto de emocionar-se quando um homem a
tocava? Ela não amava Jarbas. Por que sentira tanta emoção?
Sentou-se no chão e encostou-se na beira da cama, tentando encontrar
resposta para o que sentia. Não conseguia. Quando ele a tomara nos braços e
a beijara, fora arrebatador. Só ao recordar-se, sentia arrepio pelo corpo. Que loucura! E se acontecesse de novo?
Levou a mão ao peito como para impedir o coração de acelerar suas
batidas. Nunca havia sentido isso por Ulisses.
Estaria enganada? Lembrou-se de Luciana. Amaria o noivo de verdade?
Ou estaria fingindo? Continuaria a amar seu pai ou o teria esquecido?
Desejava saber a verdade. Ulisses! Seria tão sem-caráter a ponto de
forçar Luciana? Não podia duvidar. Jarbas não mentiria. Fora por causa disso
que eles se conheceram.
Sentiu saudades de Luciana. Seria bom conversar com ela, desabafar,
conhecer seus sentimentos, saber tudo.
Seu rosto entristeceu. Isso não era possível. Ela não era a pessoa que
ela gostaria que fosse. Tudo mentira. Interesse, nada mais. A pessoa da qual
ela gostava, não existia. Tudo ilusão. Ela era sozinha e não adiantava querer.
Pensou em Jarbas e seu coração apressou as batidas. Teve medo.
Poderia confiar? Não a estaria enganando, como Ulisses ou Luciana? Melhor
seria não envolver-se com ele. Sentiu-se muito só e sem vontade de lutar. O
melhor seria ficar ali, no seu canto, onde nada nem ninguém conseguiria
magoá-la mais.

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