Foi uma semana depois, tomando chá em casa de Luciana, que José Luiz
mencionou os filhos. Abriu o coração. Falou do desejo que sentia de aproximar-
se deles e da culpa que guardava por não haver se dedicado a eles como deveria.
Sentia-se triste, deprimido. Diante de Luciana, ficava àvontade para falar dos
seus sentimentos. Desabafou amargurado:
— Não sei porque estou falando nesse assunto. Trazendo meus problemas. Eles
não têm remédio. Agora é tarde para fazer qualquer coisa.
Luciana que o ouvira em silêncio, colocou sua mão no braço do pai com carinho.
— Não desanime. Não nos é dado conhecer o futuro. De um momento para
outro, tudo pode mudar para melhor.
José Luiz abanou a cabeça com tristeza:
— As coisas não vão mudar.
Luciana sorriu levemente.
— Tudo muda neste mundo. A cada minuto, todas as coisas estão diferentes. É a
pulsação da vida. Ninguém consegue parar o tempo, as mudanças. Quer
estejamos conscientes delas ou não, quer a desejemos ou não. Minha vida, de
repente, modificou-se completamente, para melhor.
Encontrei você. Não sou mais a órfã com receio de ficar só no mundo.
José Luiz fixou o belo rosto da filha e um brilho de emoção refletiu em seus
olhos.
— É verdade! Para mim tudo mudou depois que nos encontramos. Ter uma filha como você, fez-me sentir que não estou só. Que há alguém que me quer bem e
que se preocupa por mim. Que se interessa pelo meu bem-estar.
Luciana sacudiu a cabeça:
— Não está sendo injusto com sua família?
— Não — respondeu ele. — Eles apenas me suportam. Não demonstram nenhum afeto. Ao contrário, sinto que ficam aliviados quando me afasto.
— Sua esposa também?
— Maria Helena é mulher fria, indiferente, Incapaz de amar.
— Todos somos feitos para amar. O amor é lei da vida. Ninguém pode viver sem
amor.
— Maria Helena vive. A ela só interessam os preceitos sociais. Não sente nem
um pouco de afeto por mim. Não se importa se me sinto bem ou como gasto
meu tempo. Desde que eu compareça pontualmente a seu lado em nossos
compromissos sociais, tudo está bem.
— Com os filhos ela também é assim?
José Luiz suspirou com tristeza:
— Com Maria Lúcia é. Não a culpo. Nossa filha desanima qualquer pessoa. É
apagada, retraída, tímida. Temos desgosto vendo-a tão insignificante. Maria
Helena tenta ajudá-la, mas não consegue nada. Com João Henrique, ela é
diferente. Nosso filho éapegado a ela, eu diria até, que de forma doentia. É o seu
preferido. Estão sempre juntos, conversando, e ela o defende sempre.
— Eu sabia que ela não agüentaria viver sem dar amor. Ninguém pode. É lei de
Deus. Toda a afetuosidade dela canaliza-se para ele.
— Você acha certo isso? Maria Lúcia também é filha.
— O que é certo ou errado só Deus sabe. O que eu percebo é que D.
Maria Helena, como todos nós, tem muito amor no coração.
José Luiz admirou-se:
— Ela é uma mulher indiferente, fria. Só com João Henrique ela muda.
Isso é egoísmo. Se fosse amorosa, seria afetiva com a filha e com todos que
a cercam.
Luciana levantou para o pai os seus olhos brilhantes onde se
refletiam compreensão e afeto.
— A indiferença, a frieza, podem ser a forma de impedir o sofrimento, de ferir o coração. Uma maneira de defesa para evitar a dor.
— Maria Helena? Você não a conhece. Sempre teve tudo. Nasceu em berço de
ouro. Nunca a vi chorar, nem lamentar-se, mesmo diante dos problemas com
Maria Lúcia. É mulher forte, dirige a casa com energia.
— Ela se casou por amor?
Apanhado de surpresa, ele pensou um pouco antes de responder.
— Não sei. Acho que não. As mulheres se casam por vários motivos.
Para obedecer os pais, por medo de ficarem solteiras e até por curiosidade.
— Ela nunca lhe disse que o amava?
— Nunca. A princípio, cheguei a pensar que sim. Mas depois, quando nosso filho
nasceu, ela apegou-se a ele. Antes dele nascer, para dar-lhe mais conforto, fui
dormir em outro quarto. Ela gostou da situação, nunca me chamou de volta.
— Eu também não chamaria.
— Por quê?
— Porque a decisão foi sua. Competia a você tomar a iniciativa.
— Se existisse amor, essas coisas seriam secundárias.
— Pode ser. Mas a forma de educação, os preconceitos e até o orgulho, podem
influenciar mesmo quando existe amor. Eu não o chamaria de volta. No lugar
dela, eu lutaria. Não teria perdido o seu amor.
José Luiz riu gostosamente.
— Você me aprecia. É diferente.
— Se ela se casou com você, foi porque o apreciava. Uma mulher como ela,
sempre sabe o que quer. Deve ter percebido que não era correspondida e retraiu-
se. Seu orgulho foi mau conselheiro. Ele sempre prejudica. Por causa dele, ela
atirou fora a felicidade.
José Luiz sentiu que a filha podia ter razão. Ele não amava sua mulher. Iludira-a demonstrando um interesse que não sentia.
— A culpa foi minha. Casei com ela apaixonado por outra.
Luciana fixou o pai com seriedade.
— Não se trata de culpar ninguém. A culpa também pode ser uma desculpa para
não fazer o que se deve. Reconhecer a culpa, até certo ponto, é válido, contudo,
corrigir o erro, refazer o prejuízo, é mais importante.
José Luiz suspirou:
— Nada posso fazer agora. Eles não gostam de mim.
Luciana sorriu.
— Pensar assim é uma maneira cômoda de alimentar a culpa e de justificar a
inércia.
As palavras da filha calavam fundo no coração dele. Querendo dissimular a
emoção, ele disse em um tom que esforçou-se por tornar natural:
— Nosso casamento começou errado. Jamais daria certo.
— Apesar de tudo, se eu fosse ela, teria tentado. Você é um homem encantador.
Tenho certeza de que ela se casou por amor. Eu lutaria para conquistá-lo. Não
teria aceitado passivamente os acontecimentos.
— Se ela me amasse, teria feito isso. Porém, entre nós não existe amor.
Luciana sacudiu a cabeça pensativa.
— Ela teve uma educação austera, como todas as mulheres de hoje.
José Luiz assentiu com a cabeça. Ela prosseguiu:
— Essa rigidez de princípios unida ao orgulho podem ter bloqueado
seus sentimentos. O medo de não ser correspondida, de sofrer. Nesses casos,
é preciso haver um entendimento, uma conversa franca que esclareça
a situação.
— Isso não era possível. Eu jamais teria contado a verdade. Não
desejava aparecer como interesseiro, nem humilhá-la.
— O seu desinteresse pode tê-la humilhado muito mais do que a verdade o faria.
Vocês sequer se conhecem. Ela não sabe o que vai em seu coração e você, por sua vez, desconhece seus sentimentos íntimos. Como pode haver compreensão,
afeto, entendimento, sem isso?
— Realmente não há. Respeito-a como mãe dos meus filhos; convivemos educadamente. Mas amor, não há. Vivemos em quartos separados.
Hoje, eu teria constrangimento de ir ao seu quarto.
Luciana olhou-o nos olhos dizendo com emoção:
— Ela deve sofrer com isso.
José Luiz sacudiu a cabeça:
— Não creio. Jamais demonstrou desejo de aproximação.
Luciana colocou a mão no braço do pai enquanto dizia:
— Você não está percebendo a verdade. Arrependeu-se de haver abandonado
minha mãe, gostaria de pedir-lhe perdão, reconhece que errou casando-se por
interesse com outra mulher. Não conseguiu ser feliz. Culpa-se por isso. Diz que
deseja reparar o passado. Cerca-me de amor, luxo, conforto.
E D.Maria Helena? Não terá sido também uma vítima? Não terá colocado
em você todas as suas esperanças de mulher e colhido apenas
desinteresse, indiferença, desamor?
José Luiz empalideceu. Era duro para ele admitir que ela tinha razão. No fundo
de sua consciência, ele sabia que a havia iludido, representando o papel de
homem apaixonado. E que, depois de alcançado o objetivo com o casamento,
não mais se dera ao trabalho de continuar a representar seu papel.
Vendo que ela não exigia nada, acomodara-se.
Era-lhe agradável pensar que ela não o amava e assim diminuir a consciência de
sua culpa.
Cumprindo socialmente o papel de marido, pensava oferecer-lhe
certa compensação.
— Você está sendo dura comigo.
— Desculpe, papai. Não desejo entristecê-lo. Mudemos de assunto. Os franceses
conseguiram segurar os alemães em Verdum, li nos jornais. Tenho esperanças de
que a guerra acabe.
— Pois eu não. Há muitos interesses em jogo. Os alemães estão muito fortes. Estão jogando bombas até no povo nas cidades. Seus Zepelins espalham terror e morte. É monstruoso!
Luciana concordou:
— É cruel a morte de pessoas inocentes que não criaram a disputa e encontram-
se desamparadas, dentro de suas casas.
— Nunca houve guerra tão cruel como esta! Se os alemães vencerem, o mundo
sofrerá ainda mais. Eles pretendem dominá-lo!
— Não acredito que possam vencer. Todos os que tentaram conquistar esse
domínio, nunca conseguiram. César, Napoleão, foram derrotados. O Kaiser
também o será. Deus não permitirá.
Luciana falava convicta. José Luiz objetou:
— Se Deus estivesse interessado, teria impedido esse morticínio. Só em Verdum
morreram centenas de pessoas dos €ois lados. Por que ele permite tal coisa?
— A guerra foi invenção do homem, sua ambição, sua ânsia de poder,
seu egoísmo. O homem tem livre-arbítrio, pode optar, escolher seu caminho.
Você mesmo, se decidir amanhã pegar sua arma e matar uma pessoa, nada
o impedirá. Contudo, ao escolher um caminho, você provoca uma resposta,
uma reação da vida, das pessoas, das coisas ao seu ato e perceberá
suas conseqüências, sentindo-lhe os resultados.
— Numa guerra, morrem inocentes. Até os soldados estão obedecendo ordens.
Só os governos são responsáveis, mas todos pagam, sofrem.
— É verdade. Porém, amadurecem, ganham experiência. Muitos que
são inocentes agora, nesta guerra, em vidas passadas cometeram
crimes, acreditaram na violência, abusaram do poder. Numa guerra, o homem
é provado em sua fé, em seu amor pelo próximo e em sua dignidade.
Aparecem os assassinos e os heróis; os abnegados, os líderes verdadeiros,
os sanguinários. Há como uma aferição de valores. É como uma prova difícil,
que o próprio homem escolheu, mas que Deus permite para acelerar seu
progresso ainda que pela dor.
José Luiz permaneceu pensativo. A filha dizia coisas muito originais obrigando-o
a pensar, vendo as coisas sobre outros ângulos.
— Isso de vidas passadas é tolice. Não acredito ter vivido outras vidas.
Não me recordo delas. Que utilidade teria?
Luciana olhou o pai e sorriu:
— Se você vivesse só esta vida, que utilidade teria? Como amadurecer, aprender,
crescer, vivendo apenas 60 ou 70 anos neste mundo?
— Este é um problema em que o homem se debate há séculos. Nunca conseguiu
saber.
— Não lhe parece mais lógico que voltemos ao mundo outras vezes
para continuar aprendendo?
— Para quê?
Fomos criados para sermos eternos. Para desenvolvermos nossos potenciais,
como espírito, e aprendermos a cooperar com a natureza e as forças da criação.
— Como chegou a essa conclusão?
— Observando. Se fomos criados simples e ignorantes, de onde vêm
as diferenças de aptidões, dos graus de inteligência, de bondade, de beleza,
de personalidade e até de objetivos? Você tem dois filhos, da mesma mãe,
e criados no mesmo lar, por que são tão diferentes um do outro?
— Não saberia dizer.
— Porque já viveram outras vidas, outras experiências, outras
situações; escolheram seus caminhos de forma diferente...
— Mesmo assim, é difícil crer.
— Como conciliar a justiça perfeita de Deus com a desigualdade entre
as pessoas no mundo?
— Muitos descrêem de Deus por causa disto.
— Porque sua justiça não se circunscreve a uma só existência. Ela se estende
através das muitas vidas que cada um vive na Terra, respondendo as suas
escolhas adequadamente.
— Tem lógica, contudo...
Luciana sorriu novamente.
— Não pretendo cansá-lo com minhas idéias. Peço-lhe que observe certos fatos e tente compreendê-los.
Ao sair da casa da filha, José Luiz estava pensativo. As pàlavras de Luciana
tinham remexido a ferida que ele lutava por ignorar. Apesar de tudo, reconhecia
haver induzido Maria Helena ao casamento, iludindo-a vergonhosamente. Se não
a houvesse envolvido em suas ambições, ela teria tido a chance de encontrar
outro homem que a pudesse amar, dando-lhe o afeto que ele nunca dera.
Agora, era tarde. Infelizmente não podia fazer nada. Suzane estava morta, e
Maria Helena irremediavelmente presa a ele e aos filhos, sem amor nem
esperança.
Naquela noite, não conseguiu dormir de pronto. Sua consciência incomodava-o.
Remexia-se no leito pensando:
— O que havia feito de sua vida? Se a vida de fato respondia às escolhas de cada
um, já lhe dera uma amarga resposta. Seu egoísmo, sua ambição, haviam sido
satisfeitos. Ele quisera dinheiro, poder, projeção social, aparência.
Possuía tudo isso, alcançara seus objetivos. Mas, a que preço? Passara por cima
de sentimentos, ferira pessoas, enganara, iludira. Vencera. Mas, a
vitória mostrava-se insignificante frente ao que perdera. Ele se enganara. Tinha
de reconhecer que depreciara os sentimentos e que colocara, em primeiro
plano, coisas secundárias. Nunca, como naquela hora, José Luiz sentiu o
gosto amargo da derrota, do fracasso.
A única coisa boa de sua vida era Luciana. Fracassara como marido, como pai.
Tinha diante de si uma vida vazia, sem felicidade. Sua família não o apreciava.
Não os culpava. Ele nunca fizera nada para aproximar-se dos filhos.
Respeitavam-no, porém, não o amavam. João Henrique demonstrava até
certa aversão.
Naquele instante, José Luiz admitiu sua culpa. Ele criara a situação.
Ninguém, senão ele, era o responsável por ela.
Só muito tarde da noite foi que ele conseguiu conciliar o sono.
Nos dias que se seguiram, José Luiz procurou conformar-se. Nada havia para
fazer. Sua oportunidade de ser feliz passara. Precisava continuar a levar a vida
como sempre, mesmo guardando o arrependimento e a desilusão no coração.
Entretanto, apesar disso, pensamentos novos começaram a incomodá-lo.
As palavras de Luciana, por vezes, povoavam-lhe a mente,
despertando indagações, chamando sua atenção para outros aspectos de sua vida.
Fixando o rosto bonito de Maria Helena, seu porte elegante, suas maneiras
educadas, pensava:
—“Ninguém pode viver sem amor. Maria Helena teria amado? Embaixo daquela
indiferença, ela ocultaria sentimentos, desejos de amar?”
Vendo-a controlada, segura, isso parecia-lhe quase impossível. Luciana era
inexperiente, não conhecia Maria Helena; enganara-se por certo. Sua esposa só
se importava com a sociedade, as aparências, com os filhos. Ou melhor, com o
filho.
— “Eu sabia que ela não poderia viver sem dar amor.
Ninguém pode”. Seria essa maneira de amar de Maria Helena?
Teria ela colocado toda sua capacidade de amor em João Henrique?
Essa idéia, agora, parecia-lhe muito provável. Não amando o marido, nem sendo
amada, seus sentimentos canalizaram-se para ele. Apesar de inexperiente,
Luciana poderia ter razão.
Seria mesmo verdade que ninguém agüenta viver sem dar amor? Seria esta a
razão dele não esquecer Suzane, de sentir esse vazio dentro do peito, essa
amargura, esse desconforto?
Ao dar amor para Luciana, experimentava satisfação e alegria. Tornara- se mais
sensível, humanizara-se. Ah! Se pudesse abraçar Suzane, dar-lhe todo amor que
sufocara no coração, como seria feliz! Pela primeira vez, sentiu que o amor era
o sentimento mais profundo dentro dele, essencial à sua satisfação interior.
Como pudera subestimá-lo a ponto de colocá-lo em segundo plano? Como pudera
considerar mais importante os valores sociais e materiais?
Olhou para a esposa que sentada à cabeceira da mesa, depois do jantar, tomava
tranqüilamente seu café. O filho não jantara em casa, e Maria
Lúcia permanecera no quarto, o que era comum.
Preso ao fio de seus pensamentos íntimos, José Luiz perguntou fixando-a:
— Você acha que alguém pode viver uma vida inteira sem dar amor?
A pergunta era inusitada e Maria Helena estremeceu sem encontrar de pronto
uma resposta. Procurou ganhar tempo para ocultar a emoção.
— A que vem sua pergunta?
— Eu estava só pensando na importância que cada pessoa dá ao amor.
Não só o amor entre um homem e uma mulher, mas de um modo geral,
entre pais e filhos. O que pensa a respeito?
José Luiz jamais havia procurado conhecer os sentimentos íntimos da esposa. Ela
olhou-o admirada. Ele pareceu-lhe diferente. A que atribuir essa mudança?
Procurando controlar-se, respondeu:
— O amor de mãe é muito gratificante. Principalmente quando o
filho corresponde e merece ser amado.
O marido continuou a olhá-la, buscando compreender o que ela dizia:
— Sua forma de amar se resume só em seu filho. Você não acha que é egoísmo?
Você tem dois filhos e ama só a um?
Ele sabia que, de certa forma, estava sendo maldoso e encontrava até prazer
nisso. Queria testar até onde a indiferença dela chegava. Sentia curiosidade em
descobrir se ela era mesmo tão fria quanto aparentava.
Maria Helena sentiu brotar dentro de si uma onda de indignação. Ele que a
envolvera sem amor, que não amava a família, que era o homem mais egoísta e
frio que conhecera, atrevia-se a julgá-la, a classificá-la de egoísta?
Ele que sempre só se preocupara com o próprio sucesso, só se interessava
em aparecer a seu lado na sociedade, que nunca se importara com sua
desilusão, sua mágoa, sua renúncia de afeto, tinha o desplante de chamá-la de
egoísta?
Eles nunca haviam discutido antes. Resolviam as questões educadamente. José
Luiz não dava à esposa muitas explicações sobre os negócios e deixava sempre a
critério dela o governo da casa e dos filhos.
Maria Helena tentou controlar a raiva. Procurou tornar a voz fria quando disse:
— Se há aqui alguém egoísta, não sou eu. Nesses anos todos de casamento, tenho
procurado desempenhar minhas responsabilidades com dedicação. Jamais faltou
nada a você ou aos nossos filhos. Se tenho mais afinidade com João Henrique,
não significa que tenha cuidado menos de Maria Lúcia. Você sabe que ela é diferente. Não se aproxima de nós. Não gosta de mim como ele gosta. Não posso
impingir a ela um amor que ela não deseja.
Ele ficou pensativo durante alguns segundos. Teria Maria Helena agido com ele
da mesma forma que com a filha? Objetou:
— É assim que você pensa? Só dá afeto a quem demonstra ostensivamente que a
ama?
Apanhada de surpresa, ela não encontrou resposta de pronto. Depois, conseguiu
dizer:
— Sim. O amor só merece correspondência quando éprovado.
— Você seria incapaz de amar alguém que não a amasse, ou não demonstrasse
seu amor?
— Seria. Ainda que sofresse muito, arrancaria esse amor do coração. Por que
essa discussão agora? Nunca falamos sobre esses assuntos. Qual a razão desse
seu súbito interesse em conhecer minha forma de pensar?
— Estou lendo um livro de um pensador, — mentiu ele — que afirma
que ninguém no mundo pode viver sem dar amor. Que o amor é essencial à
própria vida. Curiosidade apenas.
Embora aparentando tranqüilidade, Maria Helena ainda lutava com a emoção.
— Para mim, o único amor verdadeiro e capaz de todos os sacrifícios é o amor
de mãe. Só ele é sincero e merece ser alimentado.
José Luiz admirou-se:
— Você não crê no amor entre um homem e uma mulher?
Maria Helena conseguiu imprimir um tom frio ao responder:
— É só um jogo de interesses onde cada um se acomoda às conveniências.
Assim, é o casamento. Um arranjo prático, nada mais.
Ele irritou-se com a resposta. Seria ela tão segura de si como parecia?
Resolveu provocá-la:
— E os grandes amores da história? E aqueles que abandonam tudo, posição, família, dinheiro para seguir o amor?
Maria Helena abanou a cabeça:
— Ilusão. Só ilusão. A paixão é como doença, destrói os valores e esmaga a
quem a sente.
— O amor para você só é válido no casamento.
— Seria , se existisse.
— Você está generalizando. Nós conhecemos casais que se amam, dentro do
casamento.
Ela sacudiu a cabeça em negativa enquanto dizia:
— Aparências, conveniências. A família é uma instituição social sagrada.
Toda pessoa de bem luta para preservá-la. Acredito na amizade, na convivência
educada. É vantajoso para o casal preservar esses valores. Há os filhos. — E o
sentimento? E o amor?
— Não existe. Todos estão tão interessados em demonstrar felicidade,
em aparentar, que acabam por iludir-se acreditando que o sentem. Na verdade,
só
Deus sabe o que guardam no Intimo, escondido no coração.
— Você também esconde o que lhe vai no coração?
Havia uma ponta de ironia em sua voz quando ela respondeu:
— Não posso guardar dentro de mim sentimentos nos quais não creio. Há muito
que as ilusões não fazem parte de minha vida. Estou estranhando essas perguntas
partindo de você, sempre preocupado com outros interesses.
José Luiz irritou-se. As palavras dela, embora veladas, faziam alusão ao motivo
que o levara a casar-se. Colocou-se na defensiva. Ele podia acusar-se, porém,
ainda não se sentia com forças para aceitar que ela o fizesse. Olhou-a sério,
dizendo com firmeza:
— Engana-se. Se algum dia pensei de forma diferente, hoje sei que estava
enganado. O amor existe e é a maior força da vida. Está acima de tudo.
— Do dinheiro, do nome, da posição, do poder? — inquiriu ela, dura.
— Sim. Acima de tudo. Eu concordo com o livro. Ninguém pode viver sem dar
amor.
Maria Helena sentiu um aperto no coração. Estaria ele amando alguma outra
mulher? Isso explicaria sua mudança, sua humanização. Sentiu medo.
Empalideceu.
— Desculpe — disse — estou cansada, vou recolher-me.
— Você não me parece bem. Minha conversa a desagradou?
— Absolutamente. Estou cansada. Vou repousar um pouco e logo estarei bem. —
Minha curiosidade é só literária. Em tese, tudo é possível neste mundo, até o
amor.
Ela levantou-se e procurou aparentar a mesma serenidade de sempre, porém,
sua respiração um pouco acelerada, sua palidez, o brilho nos
olhos, demonstravam o contrário.
— Boa noite — disse ela.
— Tem certeza de que está bem? — insistiu José Luiz que também se levantara
oferecendo-lhe o braço. — Acompanho-a até o quarto.
— Obrigada. Não é preciso. Boa noite.
— Boa noite — repetiu ele.
Sentado em uma poltrona em seu quarto, José Luiz tinha entre as mãos um livro
entreaberto, sem ler. Seu pensamento tentava compreender a atitude de Maria
Helena. De uma coisa tinha certeza: ela não era tão fria e controlada quanto
deixara transparecer. Reconheceu que Luciana estava certa em um ponto. Ele
não conhecia a esposa tanto quanto pensava.
Acreditava também que ela não guardava ressentimentos pelo passado.
Chegara a pensar que ela houvesse aceito sua falta de interesse e de amor, como
uma coisa natural na rotina do casamento.
Suas palavras, entretanto, haviam demonstrado o contrário. Apesar
dele esforçar-se por ser educado e socialmente irrepreensível como marido, Maria
Helena percebera que não era amada, e que ele se casara por conveniência.
Sentiu-se desconfortável. Sabia ter agido mal, arrependera-se, porém, seu
orgulho não aceitava que a esposa soubesse disso. Para encobrir essa verdade é
que se esforçava para atender suas obrigações diante dos outros, representando o
papel do bom marido e do bom pai.
Pensou em João Henrique. Ele também teria percebido a verdade?
Apaixonado pela mãe, seria essa a razão pela qual ele não o apreciava?
Guardaria por causa disso algum ressentimento no coração? Julgá-lo-ia também
um oportunista, um interesseiro?
Levantou-se sentindo certo mal-estar. Seu filho sempre fora um jovem idealista.
Apesar da. falta de afinidade com o pai, pudera observar seus projetos, suas
idéias profissionais, sempre objetivando a arte, a beleza, os benefícios para o
povo, a vontade sempre manifesta de melhorar o padrão de vida na sua cidade.
João Henrique era muito bem-visto até pelos mais velhos que o elogiavam com
entusiasmo. Como pai, orgulhava-se disso. A idéia que ele pudesse conhecer a
verdade e desprezá-lo, era-lhe insuportável.
Apesar disso, começou a perceber que as pedras daquele quebra-
cabeça começavam a encaixar-se. Pela primeira vez, encontrava um motivo
que pudesse justificar a aversão do filho por ele.
Arrasado, sentou-se novamente. Como não percebera isso Reagiu. Afinal, apesar
de não se ter casado por amor, sempre cercara Maria Helena de atenções, apoio.
Nunca haviam tido atritos sérios e Maria Helena em tempo algum mostrara-se
infeliz. Passou a mão pela testa como a afastar dali
pensamentos desagradáveis. Não estaria exagerando? Sentindo remorsos pelo
passado, não estaria fantasiando?
Suspirou fundo e tentou ler o livro que detinha nas mãos, mas foi-lhe difícil
concentrar a atenção na leitura.
Na manhã seguinte, à mesa do café a família reuniu-se. NãO era sempre que isto acontecia. José Luiz fixou o rosto de Maria Helena procurando analisá-lo. Ela estava como sempre. Parecia calma e interessada apenas na disposição da mesa para que nada faltasse.
Depois do “bom dia”, sentados todos ao redor da mesa, enquanto servia-se de
café com leite, José Luiz procurou conversar com o filho.
— Vai à universidade?
— Vou.
— Outro dia, o dr. Mezara falou-me com entusiasmo sobre um projeto seu.
Teceu muitos elogios. Gostaria de conhecê-lo.
João Henrique surpreendeu-se:
— Você nunca se interessou por arquitetura. Iria maçá-lo.
— Engana-se. Embora não conheça detalhes técnicos, sei apreciar um projeto,
seja de uma bela casa, de uma ponte, de uma praça ou de uma rua.
Dizem até, os meus amigos, que tenho senso para isso. Quando você tiver tempo
disponível, apreciaria vê-lo.
— Está bem. Qualquer dia destes, eu o mostrarei.
— Vale a pena, meu filho — lembrou Maria Helena com entusiasmo. — É uma
beleza!
Olhou para o marido ligeiramente desconfiada. Ele estava diferente. Nunca
procurara aproximar-se do filho.
— Você exagera, mãe!
— Penso que não — retrucou José Luiz. — Várias pessoas elogiaram esse
projeto. Pessoas que entendem do assunto.
Maria Helena sentia-se feliz. Vibrava com a capacidade do filho.
José Luiz fitou Maria Lúcia que, de cabeça baixa, pausadamente, tomava seu
café. Tentou conversar com ela.
— E você, minha filha, o que está fazendo de bom?
Ela olhou-o assustada. Gostava de passar despercebida. Ele repetiu:
— Então, filha, o que tem feito de bom? Ela balbuciou:
— Nada. Eu não sei fazer nada.
Maria Helena franziu o cenho, mas nada disse. Olhando o rosto da filha,
José Luiz penalizou-se. Ela estava um pouco trêmula. Sabia que, se insistisse, ela
chegaria às lágrimas. Não queria isso. Assim sendo, respondeu calmo:
— O que você não sabe, pode aprender. Para isso há professores. Se todos
soubéssemos fazer tudo, não precisaríamos deles. O que é preciso é ter vontade
de aprender.
— Sim, senhor.
O silêncio se fez. João Henrique pediu licença e saiu; Maria
Helena acompanhou-o até a porta como de costume. José Luiz perguntou à filha:
— Você gosta de música?
— Um pouco.
— Que tipo de música?
— Mamãe diz que é preciso apreciar o clássico.
— Você gosta?
Ela baixou a cabeça. Ele repetiu:
— Você gosta?
Ela queria dizer que odiava, porém balbuciou:
— Mais ou menos.
— Parece que não é uma entusiasta.
— Eu tento, papai. D. Eudóxia quer que eu estude três horas por dia. Não consigo.
— Só música clássica?
— Só. Essa é a boa música. A única que mamãe me permite aprender.
José Luiz sentiu uma sensação desagradável. Maria Helena era muito exigente
com a filha. Era preciso tentar ajudá-la, perceber o que ela realmente gostava.
Levantou-se, aproximou-se de Maria Lúcia, colocando a mão em seu ombro.
— Hoje, antes do jantar, gostaria de ver seus cadernos de música.
Ela sobressaltou-se:
— Para quê?
— Para saber o que D. Eudóxia está fazendo com você. Não se preocupe, não
vou avaliar você, nem criticar. Preciso ir agora. Até logo, filha.
Beijou-a na testa e fingiu não perceber o rubor que coloriu seu rosto.
— Até logo, — murmurou ela.
Aquela tarde, ao chegar em casa, José Luiz cumpriu o prometido.
Mandou chamar a filha e pediu para ver as partituras e os cadernos de
música nos quais ela estudava.
Amoça obedeceu em silêncio. Ele folheou-os e perguntou:
— Onde você está? O que tem para estudar?
Ela separou as músicas. Ele pediu:
— Toque para mim.
Maria Lúcia estremeceu.
— Desculpe, papai, eu não posso. Iria errar tudo. Acredite, eu não sirvo para
pianista. Não consigo aprender!
Maria Helena entrou e tendo ouvido as palavras da filha, Irritou-se.
Sua incapacidade era um horror.
— Vamos, menina. Toque. É preciso lutar. — Olhando as partituras, continuou: —
Você sabe essa lição, estudou-a muitas vezes. Vamos ver como está. Maria Lúcia
enrubesceu e seus lábios começaram a tremer. José Luiz não queria provocar
uma cena. Por isso, interveio:
— Se ela não sente vontade de tocar, não é preciso. A execução de uma música é
um prazer, não um sacrifício.
Maria Helena olhou-o com reprovação
— Dessa maneira ela jamais vencerá a timidez. É preciso enfrentar o medo. — Ela poderá fazer isso depois. Eu não pretendo julgar seus conhecimentos
musicais. O que eu quero é conhecer essas musicas. Pode tocá-las para nós?
Maria Helena surpreendeu-se. Decididamente, ele estava diferente.
Apanhou as partituras, foi ao piano e executou-as.
José Luiz a custo conseguiu dissimular o enfado. Eram peças pesadas e sem
graça. Teve pena da filha, tendo que tocá-las durante três horas seguidas, todos os
dias. Lembrou-se de D. Egle, de Luciana, que transformavam o piano em um
instrumento agradável e belo.
Quando Maria Helena acabou, ele agradeceu e pediu para Maria Lúcia guardar
suas partituras. Quando se viu a sós com Maria Helena, desabafou:
— Que coisa horrível. Não me admira que Maria Lúcia odeie estudar piano.
Maria Helena ressentiu-se.
— Não diga isso. São peças básicas, exercícios que darão segurança à execução.
— Poderiam encontrar músicas mais alegres, mais bonitas com a
mesma finalidade. Essa professora pareceu-me antiquada.
— D. Eudóxia é excelente professora! O problema é Maria Lúcia. Temos que
reconhecer que ela tem dificuldade de aprender.
— Por isso é preciso ajudá-la. Perceber o que ela gosta, o que lhe dá prazer.
Agüentar essas músicas três horas ao dia, é sacrifício para qualquer um. —
Espero que você não me desautorize com nossa filha. D. Eudóxia é excelente. t
mulher de boa moral e seriedade.
— Não duvido. Mas gostaria que você procurasse uma outra professora.
Mais jovem, talvez, que possa ajudar a desenvolver o gosto de Maria Lúcia pela
música. Alguém mais alegre, que não tocasse só clássico.
— Não concordo. Durante a formação musical é preciso só utilizar a música
clássica para não deturpar o estilo e comprometer a execução.
— Talvez para alguém que pretenda dedicar-se exclusivamente à música; tornar-
se uma virtuose. Maria Lúcia não tem essa pretensão. Depois, não são todas as pessoas que têm habilidade, para os clássicos. Há aquelas que são excelentes
musicistas na execução da boa música popular. Dos choros, das valsas, dos
lundus.
— Você nunca interferiu em minha orientação com nossos filhos.
— Não quero interferir. Porém, Maria Lúcia não é como as Outras moças.
A cada dia se torna mais dependente e insegura. Precisamos estudar
uma maneira de ajudá-la. Gostaria que procurasse outra professora.
— Está bem. Vou tentar. Mas desde já asseguro que não vai adiantar. O problema
está nela, em sua falta de capacidade e não na professora que é excelente.
— Veremos — respondeu ele.
Maria Helena olhou-o séria. Era-lhe muito desagradável despedir D.
Eudóxia. Ela era mulher muito conceituada entre as famílias. Cobrava caro pelas
aulas. Estudar com ela era “chic” e de bom-tom. Além disso, Maria Helena
reconhecia-lhe os méritos profissionais. Suas execuções eram impecáveis.
Ela não confiava em outra professora. Porém, José Luiz nunca se interessara
pelos problemas dos filhos e era a primeira vez que lhe pedia algo. Não desejava
parecer intransigente. Mesmo contrariada, resolveu concordar.
Nos dias que se seguiram, ela não conseguiu atender o pedido do
marido. D.Eudóxia continuava. Nenhuma das professoras que haviam sido
indicadas pelas amigas, conseguira satisfazer suas exigências.
— Eu estou procurando — alegava ela ao marido. — Não éfácil encontrar uma
pessoa do nível de D. Eudóxia.
— Não estará sendo muito exigente?
— Não é qualquer pessoa que pode conviver com nossa filha. É preciso ser
alguém de confiança.
José Luiz aborreceu-se. Percebia o constrangimento de Maria Lúcia, sendo
obrigada a fazer coisas das quais não gostava. Era partidário da boa educação, do
respeito, da preservação de valores da família, mas D. Eudóxia era severa
demais principalmente para uma menina delicada como Maria Lúcia. Por certo
a intimidava com sua maneira rígida, seus trajes escuros, sua mania de
perfeição.
Preocupado, desabafou com Luciana:
— Receio que Maria Helena esteja sendo muito exigente com Maria Lúcia. — Por quê?
José Luiz olhou a filha pensativo. Gostava de conversar com ela, contar-lhe suas
preocupações. Nesses momentos, esquecia-se de que ela era jovem e sua filha.
Aprendera a respeitar suas opiniões, sempre muito diferentes da maioria das
pessoas, às vezes, até da sua própria, porém, muito verdadeiras.
Ela percebia coisas que ele não via e mostrava-as com simplicidade e afeto.
— Maria Lúcia não é uma moça como você, ou como as outras. É acanhada,
enrubesce, chora por qualquer coisa. Não gosta de estudar, tranca- se no quarto o
tempo todo. Maria Helena luta para educá-la, fazê-la aprender, estudar,
inutilmente. A cada dia ela me parece pior. Sua mãe preocupa-se em fazê-la
mudar e nesse esforço, exige dela coisas que talvez sua inteligência não tenha
meios de aprender.
— Acredita que ela não possa aprender?
— Acredito.
— Ela tem alguma deficiência física?
— Aparentemente não. Foi sempre retraída, tímida, mas os médicos
não encontram nela nenhuma doença.
— Seu desenvolvimento quando bebê foi igual as outras crianças?
Sentou, andou no tempo certo, etc.?
— Nunca teve problemas quanto a isso. Seu desenvolvimento físico é normal.
Poderia dizer que goza de excelente saúde.
— O que pensa D. Maria Helena?
— Que ela é incapacitada. Admira-se porque enquanto João Henrique é dono de
brilhante inteligência, Maria Lúcia é o oposto. Sempre apagada. Não gosta de enfeitar-se como as moças de sua idade. Veste-se mal, eu diria que não tem bom
gosto. Insiste em parecer mais feia e desajeitada do que é.
— Não é bonita?
José Luiz hesitou, depois disse:
— Não é. Pareceria melhor se tivesse bom gosto. Infelizmente não tem. Maria Helena sofre muito com isso. É mulher bonita, fina, sabe apreciar
a beleza.
— Imagino. Ter uma filha com esses problemas, não deve ser agradável para
ela. Provavelmente deve ter se ligado muito com o filho.
— Tem razão. Apegou-se a ele. É o seu preferido. O seu orgulho.
— Talvez isso contribua para que Maria Lúcia se sinta mais incapaz.
— Ela é incapaz. João Henrique sempre sobressaiu-se em tudo. Ela sempre foi
um fracasso. O que me causa admiração éque ambos são filhos dos mesmos
pais. Por que nasceram tão diferentes?
Luciana olhou o pai com carinho. Seus olhos brilhavam mais quando respondeu:
— É que os pais só dão o corpo de carne para os filhos. O espírito que o habita é
criado por Deus, que é o dono da vida.
José Luiz surpreendeu-se:
— Não sou contra a religião. Sei que temos uma alma criada por Deus.
Mas ainda penso por que Deus os fez tão diferentes? Por que deu tudo a João
Henrique e nada a Maria Lúcia?
Luciana sorriu:
— Está afirmando que Deus foi injusto?
Ele deu de ombros.
— Não tenho condição para afirmar isso. O que eu digo é que não
posso compreender.
— Se você pensar que Deus cria o espírito das pessoas na hora em que nascem
no mundo, não poderá mesmo entender. Mas se perceber que Deus cria os
espíritos todos iguais, simples, ignorantes, colocando-os no mundo
para desenvolver e aprender, nascendo e morrendo, renascendo de novo
e morrendo, muitas vezes, perceberá que cada um vive em uma fase
de aprendizagem. Uns têm mais conhecimentos; viveram mais, aprenderam
mais, enquanto outros são mais jovens na criação e têm menos experiência.
Ele admirou-se:
— É uma teoria audaciosa. Parece-me fantástica. Nascer de novo! Que idéia!
Você já falou sobre isso.
— A reencarnação tem sido estudada por muitas pessoas esclarecidas, sábios,
pensadores. Só ela pode explicar diferenças como essas de seus filhos. Se Deus
pode colocar um espírito em cada ser que nasce no mundo, por que
obrigatoriamente teria que criá-lo nessa hora e fechar a porta a um que viveu
apenas uma vez e não teve oportunidade para aprender tudo quanto necessitava?
Já pensou como é curta uma vida na Terra, mesmo quando se vive sessenta ou
setenta anos? E as crianças que morrem? Teria sido negada a elas oportunidade
para aprender?
José Luiz estava boquiaberto. As idéias da filha eram muito avançadas.
Os padres passavam a vida inteira estudando e afirmavam coisa diferente.
Como uma menina como Luciana poderia saber mais do que eles?
— Essa sua filosofia vai longe demais — disse ele. — A igreja ensina diferente.
— A igreja foi feita por homens. Para conhecer a verdade, precisam olhar as
coisas de Deus. A vida é o livro divino onde cada um deve aprender. E a vida nos
mostra que a reencarnação é a única crença que explica as desigualdades e as
diferenças no mundo e se harmoniza com a justiça de Deus que nunca erra.
José Luiz calou-se. O argumento da filha impressionou-o. Era um bacharel.
Militando na justiça dos homens, muitas vezes questionara a justiça de Deus.
Estaria errado?
Luciana continuou:
— Tudo é perfeito na obra de Deus. Nosso espírito é eterno. Viveu outras vidas,
amou, aprendeu, errou, sofreu, e a cada morte do corpo, liberta-se e regréssa à
morada espiritual de onde tinha vindo, guardando o progresso feito.
Quando se torna oportuno, volta novamente a nascer na Terra, trazendo
no inconsciente as experiências vividas e as condições para desenvolver
suas aptidões.
José Luiz abanou a cabeça admirado:
— Para que tudo isso?
— Para aprendermos a responsabilidade de escolher nossos próprios caminhos.
Para amadurecermos e nos tornarmos cooperadores do Criador no universo.
— Você vai longe demais em suas fantasias. De onde tirou essa idéia?
— Tem outra melhor, que possa explicar o que vai pelo nosso mundo?
Que possa conciliar a justiça e a bondade de Deus com a desigualdade reinante
ao nosso redor? Você mesmo tem dois filhos tão diferentes; Deus teria sido
injusto dando tudo a João Henrique e nada a Maria Lúcia?
Ele não encontrou palavras para responder. Luciana prosseguiu:
— Tudo está certo da maneira que é. Deus jamais erra ou comete injustiças. É
preciso aprender a enxergar a vida com realismo. Fantasia é fechar os olhos á
verdade que todos os dias nos bate à porta, para dar lugar a preconceitos que as
religiões colocaram em nossa cabeça e nos impedem de perceber o que a vida
mostra a cada passo. O conceito de um Deus vingativo que pune, castiga, que é
parcial na distribuição de bens e exige severas contas é irreal e ilusório.
José Luiz ouvia estupefato. A voz de Luciana tornara-se mais grave e fê-lo
lembrar-se muito de Suzane. Emocionou-se.
— Você diz coisas estranhas — disse — de certa forma incoerentes.
Há momentos em que parece ter fé, crer em Deus e há outros em que combate
as religiões.
Luciana sorriu levemente:
— Eu posso confiar em Deus, ter fé e não aceitar o que os homens fazem.
Gostaria muito de conhecer Maria Lúcia.
José Luiz concordou:
— Seria ótimo para ela conhecer uma moça como você. Poderia ajudá-la muito.
Luciana olhou o pai pensativa, depois disse:
— Não será possível. É pena.
— Por quê?
— Não posso apresentar-me em sua casa como sua filha mais velha. D. Maria Helena não sabe de nada.
Era verdade e ele não respondeu. Como apresentar Luciana à sua família? Maria
Helena não conhecia seu passado, seu amor por Suzane e, mesmo que lhe
contasse, ela era uma mulher rígida de princípios, não aceitaria a presença de
uma filha ilegítima em sua casa, em convivência com seus próprios filhos.
Como não respondesse, Luciana continuou:
— Não importa. Mesmo assim, eu gostaria de ajudar Maria Lúcia. Ela deve
sofrer muito.
— Ela é muito calada, prefere passar despercebida em casa. Não tem amigas e
se a deixarmos, não sai do quarto.
— Gostaria de conhecê-la. Ninguém em sua casa precisaria saber quem sou. —
Não acho justo. Orgulho-me de você e gostaria de gritar aos quatro cantos do
mundo que é minha filha!
— Basta-me seu amor. Não é preciso perturbar a vida de sua família.
José Luiz passou a mão pelos sedosos cabelos da filha.
— Você é muito nobre. Mas, não vejo como conseguir isso.
Luciana sorriu e seus olhos brilharam maliciosos e alegres quando disse:
— Você acha que eu seria uma professora de piano muito ruim?
Ele assustou-se:
— Você não está pensando...
— Estou. Eu poderia dar aulas de piano a Maria Lúcia. Seria um
pretexto excelente para estar com ela. Poderia conhecê-la melhor, ajudá-la a
encontrar a alegria de viver.
Ele estava indeciso:
— Não sei se daria certo. Depois, você não precisa fazer esse sacrifício.
Seria cansativo, trabalhoso. Maria Helena é exigente e muito formal. Tratá-la-
ia como uma subalterna. Não acho justo.
Luciana colocou a mão no braço do pai e respondeu:
— Nada disso importa. Maria Lúcia é minha irmã. Sente-se infeliz. Eu sinto que poderia ajudá-la. Terei grande prazer em realizar esse trabalho. Quanto a D.
Maria Helena, saberei comportar-me a altura. Você se esquece que
sempre trabalhei para viver? Sei como tratá-la, não se preocupe.
— Não duvido. O que me preocupa é vê-la entrar em minha casa como uma
assalariada, quando deveria ser recebida como da família.
— Se queremos ajudar Maria Lúcia, temos que deixar o orgulho de lado.
Esqueça esse aspecto. O que me preocupa é a parte profissional. Acha
que, como professora, D. Maria Helena me aceitará?
— Precisaria ter método, programar as aulas, qualquer coisa assim.
— Quanto a isso não há problema. Vovó deu aulas e tem tudo isso. Inclusive,
poderá orientar-me.
Ele abanou a cabeça indeciso, preocupado.
— Mesmo assim, não sei...
— Papai, deixe-me fazer alguma coisa por Maria Lúcia. Sou professora. Entendo
um pouco desses assuntos. Por favor!
Ele decidiu-se:
— Está bem. Verei o que posso fazer. Você é muito moça, preciso arranjar um
forte argumento para convencer Maria Helena.
Luciana levantou-se e passou os braços pelos ombros do pai, beijando-
o levemente na face.
— Obrigada, papai. Não se arrependerá. Vou me preparar muito bem. Verá. José
Luiz sorriu:
— É uma loucura, mas sempre será uma tentativa.
Ao sair da casa de Luciana, José Luiz ia emocionado. A cada dia mais admirava
a filha. Seu espírito nobre e generoso impressionava-o.
Ele que infelicitara sua vida pela ambição, percebia que Luciana era o oposto,
colocando os sentimentos, o amor, a amizade, sempre em primeiro lugar. Ela já
sabia o que ele estava começando a aprender a duras penas.
Admirava-a.
Ela, em sua casa, ao lado de Maria Lúcia, seria o raio de sol que levaria a beleza,
a bondade, o amor, a alegria. De volta à casa, foi pensando como convencer a
esposa. Na noite seguinte, depois do jantar, foi que José Luiz julgou oportuno
tratar do assunto.
Sozinho com Maria Helena, perguntou por João Henrique, seus projetos,
seus ideais.
O rosto de Maria Helena iluminou-se. Falar do filho era sua alegria. O marido
ouviu-a atencioso, comentando esta ou aquela idéia. Quando ela se calou, ele
perguntou:
— E Maria Lúcia, você já despediu D. Eudóxia?
Maria Helena suspirou:
— É uma tarefa desagradável. Depois, ela é tão eficiente! Tem certeza de que
devemos substitui-la?
José Luiz olhou-a sério.
— É tão difícil para você atender um desejo meu?
Maria Helena remexeu-se na cadeira e não respondeu imediatamente.
Ele olhava-a esperando por uma resposta. Por fim, ela disse:
— Se você faz questão, farei isso amanhã. Ainda não encontrei ninguém à altura
de substitui-la. Por isso, guardava a esperança de vê-lo reconsiderar esse assunto.
— Não mudei de idéia. Ainda penso que D. Eudóxia é muito velha e antiquada
para agradar a Maria Lúcia.
— Não se trata de agradar Maria Lúcia. Aliás, não há nada que consiga torná-la
feliz. Não vejo porque uma preceptora precisa outra coisa que não seja sua
competência, sua moral, sua educação. Hoje os costumes estão mudando e
precisamos cuidado com esse modernismo que destrói as famílias.
— Você diz bem, os tempos estão mudando e nós não podemos parar.
Gostaria que encontrasse uma professora jovem. Quem sabe assim, nossa filha
pudesse aprender a alegria de viver!
Maria Helena olhou-o admirada. Positivamente ele parecia-lhe
diferente, modificado.
— Verei o que posso fazer — disse por fim.
José Luiz não tocou mais no assunto. Foi dali a dois dias que disse a Maria Helena:
— Encontrou a professora para Maria Lúcia?
— Não. — Foi a lacônica resposta.
— Hoje, eu soube casualmente de uma moça que dá aulas de piano.
— Você a conhece?
— Não — mentiu ele. — Foi o Dr. Alfredo quem me indicou. Trata-se de uma
moça de excelente família, que reside com a avó. Ficou órfã. Parece que quer
ocupar-se e gosta de dar aulas de piano. Segundo ele, trata-se de moça fina e
muito educada. Tomei a liberdade de anotar o endereço para você.
Ela concordou:
— Está bem. Vou conversar com ela, marcar uma entrevista e avaliar
seus conhecimentos.
— Se quiser, posso mandar o rapaz de recados solicitar que venha até aqui. —
Fico-lhe grata. Pode mandá-la amanhã às quatro.
— Está bem.
José Luiz baixou os olhos para que Maria Helena não visse a alegria que sentiu.
Conversou sobre outros assuntos. Não queria que ela desconfiasse de nada. No
dia seguinte pela manhã, foi pessoalmente à casa de Luciana.
— Você ainda pode desistir — disse com seriedade.
Luciana sacudiu a cabeça.
— Desistir eu? Você não me conhece. Passei estes dias me preparando.
Vovó estudou num grande conservatório de Londres. É lá que eu me “formei” professora. Ela contou-me tudo, os métodos, as aulas.
— Veja lá o que vai fazer.
— Não se preocupe. Quando eu programo uma coisa, vou até o fim.
Haveremos de vencer! Verá!
— Está bem. Esteja lá às quatro. Maria Helna é muito exigente
com pontualidade..
— Eu também. Não se esqueça que tenho educação britânica.
José Luiz sorriu. Quando ele saiu, Luciana procurou pela avó.
— Vamos preparar aquela peça. Precisa estar impecável.
— Está bem — concordou Egle. — Se deseja obter êxito, precisa estudar muito.
Lembre-se que vai ser examinada por uma boa pianista.
— D. Maria Helena toca muito bem, mas eu, quando quero, não sou tão ruim assim.
Aproximando-se do piano, sentou-se e pela décima vez, repassou a música que pretendia tocar na entrevista da tarde.
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Quando a Vida Escolhe
SpiritualConheça a história da doce Luciana e aprenda, por meio dessa adorável personagem, que cada um de nós é a própria vida tornando-se realidade. Isso quer dizer que, quando escolhemos, é a vida escolhendo em nós. A vida jamais erra. Assim, seja qual for...