Cap. 17

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23 de dezembro de 1963

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Os primeiros raios de sol do dia começavam a surgir e Eveline permanecia acordada, sentada na cadeira de balanço, acariciando sua barriga que carregava um pequeno ser já havia sete meses. Seus olhos estavam avermelhados e ardiam, deixando claro que não havia dormido nem um pouco naquela noite.

John ficaria preocupado, ela sabia, mas não podia negar que realmente deveria. Ela mesma estava preocupada, por isso não dormira, sendo atormentada por pesadelos mesmo estando acordada.

Ela sentiu uma lágrima quente escorrer pelo seu rosto e rapidamente a secou com a ponta dos dedos frios. Não deveria se sentir triste, deveria estar conformada, afinal, Eveline sabia muito bem o que o destino reservara para ela e sua pequena família que mal havia começado a ser construída.

Desde que chegara naquela casa ela havia sentido alguma coisa estranha, algo ruim que mexeu não somente com ela, mas com seu pequeno bebê. Ele ficara agitado, dando chutes e mais chutes em seu ventre e, muitas vezes, fazendo sua pobre mãe chorar de dor.

Mas somente no dia em que John havia saído para procurar um emprego, quando estavam somente Eveline, seu filho e o novo gato da família em casa, ela havia descoberto o porquê.

Aquelas bonecas aprisionadas no sótão, com suas faces sujas paralisadas e os olhos estáticos e atentos, como se estivessem de olho não somente nas coisas deste mundo, mas no dos mortos também, o que obviamente deixara Eveline um pouco incomodada.

Mas ela ignorou, ignorou até que tudo tomou rumos que ela jamais desejou. Os pesadelos, as alucinações e as bonecas aparecendo espalhadas pela casa mesmo quando o sótão permanecia trancado e, sua chave, escondida no meio das coisas de Eveline.

A garotinha pedira ajuda, disse que não queria mais ficar sozinha, que tinha medo, então, num gesto inocente demais, Eveline fora até uma pequena loja de brinquedos no centro e comprara a mais bonita e mais cara boneca que encontrara ali, depois a deixando no sótão, junto das outras que encontrara.

Era grande e pesada, feita com porcelana, e tinha o rosto mais belo e angelical que alguém poderia ver, mas nada disso importava.

Era apenas burrada. Todos os outros haviam feito exatamente a mesma coisa, cometido exatamente o mesmo erro: levar tudo como algo superficial, algo simples e que não precisava de muita atenção para ser resolvido, o que irritara a pequena menina por ser justamente aquilo o que ela queria: um pouco mais de atenção.

Mas as pessoas costumam ser egoístas quando estão ocupadas demais se sentindo felizes com suas próprias vidas. Família nova, casa nova, uma cidadezinha bonita e tranquila... Quem não se sentiria feliz com aquilo? Quem não ficaria preso ao seu próprio mundinho pessoal, esquecendo das pessoas que estão precisando e pedindo por ajuda?

Então acabavam levando como irrelevantes os problemas dos outros, inclusive da pequena Abby que, se tivessem prestado um pouco mais de atenção e procurado entender, saberiam que ela sofria há quase um século, sempre procurando por alguém que ajudasse e sempre encontrando somente pessoas ignorantes que a temiam e só tentavam ajudá-la para que ela as deixasse em paz, sempre ignorando os sinais que a pequena dava sobre a real raiz do problema.

Agora Eveline se sentia tão culpada... E ela sabia que havia sido exatamente como todos os outros se sentiram, porque era fácil ignorar alguém até esse alguém resolver devolver à você tudo o que estava sentindo, então você se culpa e tenta reverter a situação.

Ela sabia que Abelle não queria ser má, que nunca desejara realmente machucar alguém, mas se não davam o que ela queria, a menina, já tão machucada e desesperada por ajuda, acabava tomando à força.

E fora assim com Eveline. Abelle só havia pedido por alguém que se importasse com ela e fosse sua amiga, que acabasse com a sensação de solidão e vazio que ela vinha sentindo aqueles anos todos, alguém que a salvasse. Mas Eveline havia ignorado todos os pedidos e sinais, e agora, seu marido e seu filho pagariam por seus erros como uma pessoa egoísta e ignorante.

Abelle não estava certa em fazer o que fazia, mas a mulher sabia que aquilo só mudaria quando ela encontrasse alguém como ela, alguém que a entenderia e ajudaria de verdade, e não da forma que mais lhe conviesse.

Ela ouviu uma porta abrir no segundo andar e passos lentos e arrastados seguirem o corredor, em seguida descendo as escadas.

– Bom dia meu amor – John disse com a voz sonolenta, indo até a noiva enquanto coçava os olhos e dando um beijo na testa da loura. – Adrian me ligou, ele quer que eu comece hoje na loja...

– Não! – Eveline disse em tom urgente, o puxando pela mão com os olhos marejados. – Quero dizer, fique aqui hoje, comigo. Só hoje.

– O que foi? Não está se sentindo bem? – John perguntou preocupado e Eveline negou com um sorriso triste.

– Não, eu só... Quero passar o máximo possível de tempo com você - ela disse e ele franziu as sobrancelhas. – Por favor.

O homem por fim assentiu e a abraçou, ainda sem entender o porquê daquilo tudo, mas de alguma forma sabendo que ambos realmente precisavam daquele momento.

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