🌪 Prólogo

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Mary devolveu a xícara de chá de tília ao braço da poltrona acolchoada, enquanto balançava melodiosamente a cabeça no ritmo da música. Fechou os olhos castanhos e sorriu fracamente, presa ao embalo das notas do piano que ressoavam em seus ouvidos e lhe traziam o famoso aconchego familiar. Katrina, vidrada no instrumento, apenas deu prosseguimento à sucessão de notas. Era algo automático para ela, a criança prodígio que todos pais sonham em ter.

As ondas se alteraram do agudo para o grave de maneira sucinta, indicando o fim da sinfonia. Mary abriu os olhos, e pôde ver as pupilas líquidas de Katrina encarando-a pelos ombros com ansiedade.

— Gostou, mamãe? — a menina indagou, colocando para trás da orelha os cabelos cacheados que insistiam em cair sobre seu rosto com pequena irritação.

A mais velha sorriu com ternura. Katrina era a garotinha mais competitiva que já conhecera, mesmo depois de anos no magistério infantil. Frank certamente tinha uma culpa nisso: sempre pegando em seu pé, sempre lhe pressionando pra que fosse a melhor.

— Eu amei, querida. — disse, por fim. A voz maternal de Mary encheu os olhos de Katrina de brilho. — E tenho certeza de que o papai também amará. Temos muito orgulho de você.

Um ar deslumbrante atravessou seu rosto assim que ouviu a palavra "orgulho". Nada satisfazia tanto sua índole vaidosa quanto orgulhar seus pais. Abriu os lábios em um sorriso vanglorioso, exibindo o vácuo formado pela recente queda de dois dentes de leite.

— Agora venha aqui, minha pequena leoa. — Mary chamou, dando um tapinha na própria coxa coberta pela calça de moletom. — Deixe-me fazer uma trança em você.

O corpinho gorducho da criança se esforçou para descer do banco do piano e colocar os pés no chão. Uma vez que o fez, foi até a poltrona onde sentou-se no colo da mãe para que a mesma lhe passasse a mão pelos cabelos negros.

— Você não vai chamar o papai? — Katrina perguntou, inquieta.

Mary sorriu assim que percebeu as intenções da menina. Sua essência assertiva era implacável, ainda que fosse apenas uma criança.

— Vou sim. Assim que... — a voz harmoniosa de Mary foi interrompida por três estalos altos que se converteram em puro pavor ao entrarem em seu canal auditivo.

Um arrepio lhe percorreu toda espinha, sentiu o calor da adrenalina se irradiando por todo seu corpo.

Ela já sabia do que se tratava.

Mary engoliu a seco, sufocando o grito de pavor que insistia em emanar de suas cordas vocais. A mão trêmula foi erguida com rapidez assombrosa até a boca de Katrina, impedindo a menina de dizer qualquer coisa. O coração palpitava-lhe no ouvido, e ela tentou pensar com clareza no que faria a seguir.

Aquilo doeria como o inferno. Segurou firmemente o rosto de Katrina entre as mãos e disse, num sussurro quase inaudível:

— Katrina, me escute. — suplicou. A menina fixou seus olhos nos castanhos da mãe. —Nada disso foi nossa culpa. Se esconda no armário do banheiro. Fique em silêncio. — respirou fundo, sentindo a visão ficar turva e os olhos marejados. — Eu te amo. Eu te amo. Eu te amo muito.

Agarrou a menina contra si com força, enterrando-a em um abraço urgente enquanto já podia sentir as lágrimas correndo-lhe o rosto. Depositou o último beijo na testa da filha, já sabendo qual seria sua sina. A pequena não moveu um músculo sequer, estática.

— Katrina, faça o que eu mandei! — Mary arfou, tentando manter-se o mais silenciosa possível. Seus olhos arregalados e úmidos se mantiveram vívida e assustadoramente abertos. A pequena a encarou com pavor, colocando seus pés no chão e correndo em direção ao banheiro.

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