1. | Parte I

71K 1.8K 204
                                    

PARTE I – QUEBRA NA ROTINA

1.

Não há muito a contar sobre como esperava que fosse ser o primeiro dia de aulas a seguir às férias de Natal. Provavelmente, iria ser igual ao que tinha sido o primeiro período do ano letivo e igual ao ano e meio anterior: iria ser gozada pelos outros alunos, empurrada nos corredores e responderia bem nas aulas. Era sempre assim.

Saí de casa depois de me despedir da minha mãe, com a mochila bege às costas e uma mais pequena de Edução Física pendurada no pulso. Vestia umas calças de ganga escuras e apertadas às pernas, uma camisola larga de lã verde escura, botas castanhas claras de cano alto e uma gabardina cor de azeitona que me dava pelo fim das coxas; o meu cabelo castanho encontrava-se preso num carrapito.

Fui a pé até à escola, como sempre ia quando não estava a chover. Alguns alunos começavam a chegar de carro, à boleia dos pais. A escola tinha bastantes alunos, sendo que tinha ensino desde o início do 2º ciclo do Ensino Básico até ao fim do 3º ciclo. Maior parte vinha de autocarro ou a pé, mas, mesmo assim, os que vinham à boleia dos pais ainda eram muitos, impedindo a boa circulação na rua durante algum tempo. Por esse mesmo motivo, a Câmara Municipal investira na construção de um parque de estacionamento próprio para os veículos que lá ficassem a longo prazo: era usado maioritariamente por professores e outros empregados do estabelecimento de ensino. Desses carros que paravam por mais de quinze minutos, era raro o que eu não conhecia: quando se chega cedo à escola e se tem intervalos monótonos como eu tinha, o dom da observação torna-se quase obrigatório.

Conhecia também todos os rostos dos estudantes. Nos intervalos costumava intercalar o meu tempo entre ler e observar. Além disso, quando ninguém parece notar que existes sem ser para te gozar, acabas por ouvir algumas conversas e descobrir alguns nomes.

Naquele dia, notei uma diferença.

Uma figura desconhecida aos meus olhos dirigia-se ao portão da escola. O rapaz era alto, com cabelo castanho muito escuro e encaracolado e um corpo magro. Não consegui ver o seu rosto por causa da distância que nos separava, mas tive a certeza de que ele era jovem e de que não o conhecia. E essa certeza foi confirmada quando, à medida que ele avançava em direção à entrada do edifício, as cabeças dos alunos se viravam para o encarar. No entanto, ele não voltou a cabeça para nenhum deles, limitando-se a olhar em frente. Podia muito bem ser um professor, mas não me pareceu. Pelo pouco que consegui ver da sua face quando passou mais perto de mim, a pele era bronzeada e nada enrugada. Podia ser um professor jovem, mas eu continuei a achar que era um aluno pelo andar leve e descontraído e as roupas casuais e despreocupadas.

Retirei os meus olhos dele e só aí reparei que estava parada no meio do passeio, com pessoas a passarem por mim em grupos de amigos. Claro que passavam por mim... Porque parariam? Eu era a esquisitóide da escola, aquela que não arranjava amigos, que não usava saias curtas e camisolas a mostrar a barriga; aquela que se dedicava aos estudos e tirava boas notas a todas as disciplinas; era a aluna mais velha que não alinhava nas brincadeiras estúpidas, a rapariga que todos achavam uma seca.

Caminhei também eu até ao edifício. Entrei e fui até ao meu cacifo. Abri-o e tirei o meu horário da mochila (a escola havia-o publicado no site e eu imprimira), colando-o com fita-cola à porta de metal e verificando-o: a minha primeira aula seria Matemática, mas ainda faltavam dez minutos para tocar. Arrumei a mochila, deixando apenas de fora os materiais necessários para a aula e o meu telemóvel. Nem sabia porque o tinha. Ninguém me ligava ou mandava mensagens, só a minha mãe, de vez em quando. Podia simplesmente ter comprado um MP4, tendo em conta que eu só usava o aparelho para ouvir música.

Nem Todos Os Espelhos RefletemOnde histórias criam vida. Descubra agora